Como ponto de partida, gostaria de reafirmar que sou adepto da elaboração e divulgação de rankings com os resultados escolares. Não sou dos que acham que a sua publicação é prejudicial, a menos que consideremos que quem os elabora ou lê o faz com preconceitos e não em busca de informação. Claro que prefiro rankings elaborados com cuidado, não se restringindo a seriar resultados e contextualizando as tabelas com outro tipo de informação.
Os rankings que vão sendo publicados nos últimos anos, em especial desde que alguns órgãos de comunicação social conseguiram ter acesso a mais alguma informação do que os tais resultados puros e duros, têm uma qualidade bastante acima das primeiras tentativas de há uma década. Por muito que os críticos deste tipo de tabelas argumentem contra a injustiça de uma seriação, em meu entender é muito mais útil conhecê-las do que não as conhecer.
Porque, à sua maneira, se os soubermos interpretar devidamente e inscrever no seu momento específico e não como peças de propaganda particular, os rankings ajudam-nos a compreender o projecto que uma sociedade ou que a sua elite governante foi construindo para a Educação. Não os devemos encarar apenas como uma arma de arremesso destes contra aqueles ou como manifestação de uma eventual superioridade de um sector sobre outro, mas sim como retrato de um trajecto.
E esse trajecto, no Portugal de 2013, é o da construção de uma Educação a várias velocidades, muito mais do que dual e muito além da clássica oposição público/privado. As leituras superficiais dirão que nos últimos dez anos se verificou uma progressiva dominação do topo da tabela pelas escolas privadas. Os seus aproveitamentos instrumentais são óbvios: as escolas privadas são melhores, devemos seguir o seu modelo e devemos subsidiar a liberdade de escolha das famílias que queiram abandonar o ensino público, assim como as rejeições ideológicas também são naturais… Os rankings são um instrumento que ajuda a manchar a imagem das escolas públicas e a promover o ensino privado.
Não querendo entrar, de novo, em tal debate mais do que repisado e aborrecido pela sua previsibilidade, gostaria antes de sublinhar que as constatações dos rankings deste ano são um retrato razoavelmente fiel dos resultados de políticas na área da Educação que, para além das polémicas coreográficas dos actores principais, mantêm uma assinalável coerência na última década.
E essa coerência passa pelo acentuar das diferenças das condições de funcionamento entre a rede privada de ensino e as escolas públicas e entre estas últimas, por seu lado objecto de uma evolução diferenciada ou dual.
No primeiro caso, temos um conjunto restrito de escolas privadas que funcionam de forma verdadeiramente independente do Ministério da Educação, viradas para a excelência, com regras restritivas de acesso não apenas no plano económico, em que as famílias investem e envolvem fortemente na educação dos seus filhos. São escolas de pequena ou média dimensão, em que o ensino é personalizado, em que a gestão é de proximidade, em que os projectos educativos não são uma formalidade a preencher e em que se reúnem as condições indispensáveis para que o sucesso seja a regra.
Por oposição temos uma rede pública de acesso universal e massificado, em que a gestão passou a ser cada vez mais longínqua e concentracionária, com unidades orgânicas de dimensão pouco compatível com um projecto educativo verdadeiramente mobilizador da sua “comunidade educativa” e em que a indiferenciação se torna a regra das relações estabelecidas, mesmo no plano pedagógico. São escolas para todos, onde se procura prestar o melhor serviço, mesmo aos que têm os maiores handicaps, sendo o primeiro dos quais a alienação crescente de muitas famílias em relação ao quotidiano escolar dos filhos – por incapacidade ou necessidade, pois a urgência da sobrevivência é a prioridade primeira.
Mas dentro da própria rede pública também encontramos uma Educação a duas velocidades, pois o Estado decidiu importar a lógica de algum ensino privado e apostou fortemente em investimentos num número restrito de escolas, em regra secundárias e urbanas, deixando o resto da rede escolar (80%, 90%?) entregue a si mesma e aos sucessivos cortes que lhe foram sendo impostos. Criaram-se potenciais nichos de excelência, ao que parece para competirem em igualdade de meios com os melhores projectos privados, deixando-se o resto lá para trás, à espera de melhores dias. Ou seja, a escola pública de teórica matriz inclusiva e promotora de uma desejável igualdade de oportunidades foi transformada numa fonte adicional de desigualdade.
Os rankings apenas reflectem esta situação, a de uma Educação que anda a diversas velocidades, em consequência de políticas que promovem activamente a desigualdade e o alargamento do fosso entre melhores e piores. Seja entre escolas privadas de topo e escolas públicas, seja entre escolas públicas de topo e as outras. As que se deixaram a si mesmas e se penalizam em vez de ajudar. Um modelo em que se recompensa o sucesso, levando não à sua multiplicação mas à sua reprodução em circuito fechado, e em que o insucesso parece ter o ferrete do vergonhoso fracasso que deve ser ainda mais penalizado.
Repare-se que nesta descrição deixei de fora o sector privado dependente de recursos do Estado, pois não se destaca de forma especial pela positiva (raramente estão ao nível das melhores escolas públicas) ou negativa (também não costumam aparecer nos piores lugares das tabelas). Embora exista actualmente um interesse forte em promovê-lo, alegadamente com a justificação da sua posição nos rankings.
Em todas as seriações há um topo e uma base. Haverá sempre o primeiro e o último. É uma falácia afirmar-se que os “piores” devem ser eliminados pela concorrência, pois existirão sempre últimos. A alternativa seria chegarem todos a par, em primeiro lugar, o que me parece ser uma enorme utopia em qualquer fenómeno social. Embora não seja utopia desejar que o topo e a base não se afastem cada vez mais, acentuando fenómenos de segregação e reprodução de desigualdades, para recuperar uma terminologia que deveria já ser arcaica mas que está de regresso.
O problema é que a última década foi, em matéria de Educação, bastante consistente em políticas que promoveram activamente a desigualdade, mesmo que agora apareçam alguns protagonistas a clamar que não, que existiram notáveis diferenças entre diversas governações. Não é verdade. A promoção activa de um sistema concorrencial no mau sentido – não de superação dos problemas existentes, mas de agravamento das clivagens – tem sido uma constante, assim como foi constante a degradação das condições de trabalho com os alunos na maioria das escolas públicas.
Os rankings não são assim tão perversos, nem distorcem tanto a realidade quanto alguns querem fazer crer. A realidade que eles retratam é que é perversa e foi sendo distorcida, esticada no sentido dos seus extremos. Infelizmente. Para mim, ainda bem que temos tais retratos para o demonstrar.
Paulo Guinote
Professor do ensino básico e autor do blogue A educação do meu umbigo.
In: Público
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