“Ó Pedro, que é do livro da capa verde que te deu o avô?” Com mais frequência do que seria de esperar, António Ponces de Carvalho, bisneto do poeta João de Deus, cruza-se com alguém que lhe declama esta frase. O atual presidente da direção da Associação de Jardins-Escolas João de Deus não estranha. Quem aprende a ler pela Cartilha Maternal, hoje ou há 50 anos, aprende da mesma forma: ao fim de 17 lições, as crianças lêem, pela primeira vez, uma história. E é exatamente assim que ela começa.
“Acontece-me muitas vezes. Já me aconteceu com o Joaquim Chissano, antigo presidente de Moçambique, e com membros de diferentes governos. Se perguntar a um adulto como é que ele aprendeu a ler, se tiver sido pela cartilha, ele declama esta frase, sem pensar duas vezes. Fica marcada na memória das crianças porque é a primeira vez que lêem uma frase e uma história”, conta Ponces de Carvalho que, como não podia deixar de ser, aprendeu pelo método criado pelo seu bisavô.
João de Deus, poeta e pedagogo, idealizou e escreveu a Cartilha Maternal para servir de base ao seu método de ensino de leitura. Publicada pela primeira vez em 1876, ainda hoje é usada nas escolas João de Deus para ensinar as crianças a ler antes da entrada no ensino obrigatório.
Na sala da educadora Rita Durão, no jardim-escola da Estrela, em Lisboa, dois a dois, os alunos do bibe azul dirigem-se para perto do quadro de ardósia para ler a lição de uma Cartilha Maternal gigante. Antes disso, os miúdos de 5 anos estavam impacientes e só perguntavam à Rita se naquele dia não ia haver leitura. A educadora tem consigo um mapa com o número da lição em que cada criança vai e, quando são chamadas a ler, a educadora escolhe sempre alunos em níveis de aprendizagem semelhante.
“Cada um deles vai num nível diferente, de acordo com o seu interesse, a sua evolução, e até consoante a estimulação que tem em casa. Uns andam mais depressa, outros mais devagar”, explica Rita Durão. A educadora conta ainda que nem todos saberão ler quando chegarem ao 1.º ano, enquanto outros irão dominar a leitura. “Isso não é um problema, porque eles não têm de saber ler no pré-escolar. O que vejo é que todos os meus alunos querem e gostam de ler. Não viu que não paravam de perguntar por isso?”, diz-nos.
Ler aos 5 anos “não é educação precoce, é a tempo e horas”
Ponces de Carvalho sabe que o método seguido nos jardins-escolas João de Deus, principalmente a parte de ter alunos do pré-escolar a aprender a ler e a fazer contas, tem a sua quota parte de críticos. Mas não se importa e, claro, acha que o método que seguem é o mais adequado. Vai até mais longe e afirma que com 2 anos de idade, os alunos estão a aprender a ler.
“Eles começam a aprender aos 2, 3 anos através da estimulação, da compreensão da leitura. Todas as crianças têm o nome no bibe e reconhecem-no. Com isso, a criança não está a aprender a ler nem a escrever, mas com 3 anos está a compreender que aqueles grafismos, desenhos, querem dizer o seu nome. Nos cabides, os alunos têm, primeiro, a fotografia e o nome, depois só o nome, e eles começam a descodificar. Este trabalho tem de ser progressivo”, defende.
Ponces de Carvalho sublinha que para se conseguir fazer o trabalho que é feito aos 5 anos tem de haver um trabalho anterior, que até pode ser feito em casa, sempre de acordo com os interesses da criança. “A partir dos 5 anos entra em campo a cartilha. Se não aprenderem a ler, não há problema nenhum, continuamos o trabalho no 1.º ano. A progressão dos alunos não é linear. Às vezes andam devagar e, de repente, dão um pulo, noutros casos há retrocessos”, argumenta, sublinhando que o lado emocional tem um papel muito importante.
“Se uma criança tem livros, se tem quem lhe leia histórias, começa a ganhar gosto pela leitura e tem interesse em discriminar aqueles símbolos. Há alguns críticos que dizem que isso é aprendizagem precoce — isto é uma ideia errada, é no tempo certo. Se a criança gosta de brincar com letras é importante ter alguém que valorize isso e lhe diga ‘vamos escrever o teu nome’”, defende.
Para Ponces de Carvalho, não faz sentido “estar à espera dos 6 anos para começar a aprendizagem da leitura”, embora ressalve que o aprender dos 3 anos não é o mesmo dos 6. “Tem de haver progressão com harmonia. Somos contra um modelo de pré-escolar e outro completamente diferente no 1.º ciclo. A escola devia ser um contínuo.”
Mesmo o melhor avô do mundo não substitui o pré-escolar
Se perguntarmos a dois pedagogos para que deve servir o pré-escolar, teremos duas respostas diferentes, mesmo que com algumas semelhanças. Mas se lhes perguntarmos se é importante frequentar o pré-escolar, a resposta é sempre afirmativa. O psicólogo Eduardo Sá é categórico: “A frequência do pré-escolar não é importante. É incontornável. É indispensável. E é obrigatório que seja, tendencialmente, gratuita e para todos.”
Em Portugal, não é obrigatório frequentar o pré-escolar (o ensino obrigatório começa no 1.º ano), mas o Estado tem de garantir, em regime de gratuitidade, lugar para todas as crianças de 4 e 5 anos. A rede nacional divide-se entre a oferta pública e a privada e, desta, fazem parte as instituições do ensino particular e cooperativo e as IPSS — instituições particulares de solidariedade sem fins lucrativos. Se a opção da família for por estas últimas, o Estado garante o pagamento das cinco horas diárias de componente educativa. O que for para além disso, a chamada componente de apoio à família (CAF), terá de ser suportado pelos encarregados de educação que pagam uma fatura que varia consoante os rendimentos do agregado.
Este ano letivo, abriram mais 50 salas de pré-escolar, anunciou o ministro da Educação no Parlamento, em setembro, durante um debate de urgência pedido pelo PCP. Ao Observador, o gabinete de Tiago Brandão Rodrigues adiantou que ao longo da atual legislatura o reforço do número de salas permitiu criar lugar para mais 5500 crianças na rede do pré-escolar.
“Que sentido tem separarmos educação de infância e ensino obrigatório se sem a educação de infância o ensino obrigatório discrimina as crianças ainda antes de entrarem na escola?”, questiona Eduardo Sá. “E, no sentido contrário, que sentido tem que haja 21 mil crianças que deviam estar no ensino obrigatório e não estão porque muitas delas não têm vaga no 1.º ciclo? E que sentido tem que haja mais de 1500 crianças sem vaga no jardim de infância? Será que é possível falarmos do modo como a escola democratiza o mundo e, depois, ‘assobiarmos para o ar’ quando se trata de as discriminarmos com a educação de infância?”, critica o autor de diversos livros de parentalidade como Queremos Melhores Pais ou Querida Mãe.
Olhando para os números, Portugal conseguiu, antes do previsto, alcançar a meta europeia definida para 2020 de ter 95% das crianças de 5 anos inscritas no pré-escolar. As taxas de frequência das crianças com 3 e 4 anos também têm estado em curva ascendente e estão já acima da média da OCDE.
No entanto, segundo o relatório Education at a Glance, publicado pela OCDE no início de setembro, parte significativa desse aumento tem sido suportado pelo bolso das famílias: 36% da despesa com o pré-escolar é paga pelos orçamentos familiares, contra 64% de financiamento público. As médias da OCDE são de 16% e 83%, respetivamente. Acima de Portugal, só se encontra o Reino Unido e, em empate técnico, a Turquia. Portugal é assim o terceiro país da organização onde o financiamento das famílias é mais alto.
Outro dado importante é o recurso a colégios. Quase metade das crianças do pré-escolar (47%) estão inscritas em escolas privadas, onde se incluem as IPSS, como as escolas João de Deus, número muito superior à média europeia (22%), segundo os dados da OCDE.
Seja num privado ou num estabelecimento público, o urgente, segundo todos os especialistas ouvidos pelo Observador, é que as crianças não falhem a sua frequência, até porque a passagem pelo pré-escolar poderá influenciar o seu futuro académico e as suas relações com os outros, como cada vez mais estudos comprovam.
“O pré-escolar é uma escola de vida. Abre as perspetivas no reconhecimento do outro, da sua diferença e da integração dessa diferença”, defende Ana Teresa Brito, da Fundação Brazelton/Gomes-Pedro para as Ciências do Bebé e da Família. Por isso mesmo, ficar em casa, nos dias que correm, não é alternativa.
“Há uns anos, as experiências em casa até podiam ser parecidas com aquelas que hoje tentamos reproduzir: a entreajuda entre grandes grupos de irmãos, de primos e vizinhos. Mas as coisas mudaram, as famílias estão mais pequenas. Hoje, o contexto de educação de infância é um contexto de cidadania, é aprender a conviver com as diferenças. Os meus filhos, quando eram muito pequeninos, hoje são adultos, estiveram numa Misericórdia e a convivência que tiveram com crianças de diferentes estratos sociais, etnias, com competências muito distintas, mas complementares, foi de uma riqueza que ficou para a vida. As crianças aprendem envolvendo-se. Jacques Delors dizia isso muito bem quando dizia que o desafio era sabermos viver juntos”, sublinha Ana Teresa Brito, que é também doutorada em Estudos da Criança.
Hoje em dia, ver grupos de crianças a brincar na rua é um cenário que desapareceu das cidades portuguesas. No passado, como diz Ana Teresa Brito, encontrávamos o ambiente de recreio que hoje vemos numa escola quando grupos de crianças vizinhas desciam dos seus prédios para brincar em conjunto. Com o desaparecimento desta realidade, as relações sociais das crianças acontecem, na sua maioria, nas escolas.
A educadora Júlia Vale, que é também secretária nacional da Fenprof para o pré-escolar, concorda. “É no pré-escolar que os meninos começam a interagir com as outras crianças, é quando começam a aprender a relação com o outro, incluindo com os adultos, seja a educadora de infância, seja o pessoal auxiliar. Iniciam uma aprendizagem de socialização que é extremamente importante — é a base de como nos relacionamos com o outro. E é um espaço democrático, onde cada um pode dar a sua opinião.”
E esse é o motivo por que acredita que estar na escola não é o mesmo que ficar em casa à guarda de um familiar. “Por muito boa vontade que haja, ficar em casa com um familiar não é a mesma coisa que ir para o pré-escolar. A escola é um complemento da família”, defende Júlia Vale que, como educadora de apoio, passa um dia por semana com crianças dos 3 aos 5 anos.
Pediatra no Hospital de Viana do Castelo, Hugo Rodrigues lembra que há lições de vida que só se aprendem socializando com os pares e com adultos que não pertençam à família. “Por exemplo, a cedência é uma aprendizagem que só se adquire socializando. Também a existência de regras e de figuras de autoridade diferentes dos pais são uma construção que é preciso ir-se fazendo, pois espelha a realidade com que as crianças se vão confrontar mais tarde.”
Ponces de Carvalho concorda com esta visão. “A coroa de glória do João de Deus foi ter iniciado a educação pré-escolar que hoje todo o mundo defende”, sublinha o bisneto do pedagogo. “E ela não deve visar só tomar conta das crianças enquanto os pais trabalham, ou ocupar as crianças e deixá-las a brincar livremente. Deve servir, sobretudo, para ajudar a desenvolver capacidades, destrezas, habilidades, conhecimentos, valores e atitudes. Através de uma forma muito lúdica, através da brincadeira, a criança começa a desenvolver a estruturação cerebral. Tentamos estimular a criança até onde ela quer ir”, argumenta o doutorado em Educação Infantil e Familiar.
Aprender a brincar é o consenso possível
Se sobre a importância de frequentar o pré-escolar não há dúvidas, não há unanimidade sobre qual o melhor modelo pedagógico a seguir pelos educadores. A oferta pedagógica para o pré-escolar é variada e, em Portugal, encontramos métodos tão distintos como o João de Deus, mais orientado para o desempenho e sucesso escolares da criança, ou o da Escola Moderna, onde se promove a livre expressão individual, dentro de um espírito de entreajuda e cooperação. E há mais, como o modelo de orientação cognitiva, baseado nas teorias de Jean Piaget, que defende uma pedagogia ativa, ou seja, a criança aprende fazendo.
Cada vez mais, surgem escolas que vão beber a todos os modelos, criando os seus próprios caminhos pedagógicos.
“Há muitas teorias, há defensores com argumentos muito bem fundamentados sobre cada uma das teorias. Eu, aquilo que defendo — não há métodos certos, há vantagem em todos eles — é a aprendizagem no espaço exterior, com movimento livre, indo ao encontro da motivação dos miúdos. Defendo cada vez mais que os miúdos se mexam, que estejam na rua, na natureza, uma coisa que as crianças de hoje não sabem bem o que é”, explica Helena Gonçalves Rocha, terapeuta familiar.
Esta realidade, a falta de tempo para brincar, levou a Academia Americana de Pediatria a recomendar, num relatório divulgado em agosto, que os pediatras devem, em consulta, prescrever mais tempo para brincar. A este fator, junta-se outro fenómeno: as crianças de hoje passam cada vez menos tempo ao ar livre e em contacto com a natureza.
“Se alguns dos números sobre o brincar tiverem um fundo de verdade, então a vida da maioria das crianças, porque não brinca, está em perigo”, defende Eduardo Sá. “As crianças têm cada vez menos tempo para serem crianças. E brincam cada vez menos. Brincar, para muitas, passou a ser uma atividade — muito esporádica — de fim-de-semana.”
O psicólogo lembra alguns números revelados num estudo de 2016, intitulado Interação Criança-Espaço Exterior em Jardim de Infância, da sua colega de profissão Aida Figueiredo: 70% das crianças terão menos de uma hora por dia de brincadeira e 70% passam menos tempo ao ar livre do que os 60 minutos recomendáveis para o seu desenvolvimento saudável. Uma hora diária ao ar livre é o tempo mínimo apontado pelo Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos para garantir o bem-estar dos prisioneiros.
“Acresce que muitas crianças, em Portugal, têm até 55 horas por semana de aulas, trabalham das 8 às 8, têm recreios de 5 e de 10 minutos, têm demasiadas atividades extracurriculares e demasiada escola depois da escola. E, nos últimos 20 anos, terão perdido 8 horas de brincadeira por semana. Por tudo isto, receio que as crianças, tal como todos nós as imaginamos, possam estar à beira da extinção”, remata Eduardo Sá.
No entanto, não acredita que a brincadeira deva entrar no âmbito das prescrições médicas. “É proibido receitar aquilo que os pais têm a obrigação de perceber que é indispensável para a saúde das crianças. Mas será que, por acaso, alguém tem de receitar aos pais que é indispensável que as crianças se alimentem ou que durmam, por exemplo?”, questiona o psicólogo, que admite que os técnicos de saúde têm uma função indispensável na formação dos pais.
A alternativa que Eduardo Sá aponta é outra: “Temos de nos perguntar o que queremos da infância, da família e da escola para os próximos 20 anos. E temos de levar a efeito uma profunda mudança estrutural, sem a qual muda-se alguma coisa para que tudo fique como dantes.”
O relatório da Academia Americana de Pediatria sustenta que as crianças de hoje vão competir no mercado laboral com robots. E que é a brincar que irão desenvolver competências que nenhuma máquina consegue ter.
Na opinião do psicólogo, brincar é parte fundamental do que deve ser feito no pré-escolar, até porque “aprender sem brincar aproxima as crianças da inteligência artificial”, opinião partilhada pelo pediatra Hugo Rodrigues. “Até à entrada para o Ensino Básico, as crianças precisam de brincar. Precisam de conhecer o seu corpo, precisam de conhecer o ambiente que as rodeia, precisam de saber interagir com outras crianças e com os adultos, precisam de ouvir música, pintar, ouvir histórias e ser o mais criativas possível. É isso que vai fazer delas adultos mais competentes, seja em termos profissionais, seja principalmente em termos pessoais.”
Então, para que deve servir o pré-escolar? A resposta é dada por Eduardo Sá: “Serve para aprender a conhecer. Serve para aprender a pensar. Serve para ligar linguagem simbólica e raciocínio abstrato. Serve para ligar corpo e pensamento. Serve para ligar o eu e o nós. Serve para descobrir que mais importante do que encontrar as soluções é aprender a pôr perguntas. Serve para ligar brincar e aprender. Serve para trocar ideias e para as recriar. Serve para educar a sensibilidade e o corpo. Serve para aprender a escutar. Serve para ir de ‘O que é isto?’ ao ‘Porquê?’. Serve para ouvir histórias e aprender a contá-las e a criá-las. Serve para ir do observar à educação visual para que, depois, se vá da educação visual à escrita. Serve para acarinhar a curiosidade. Serve para ir da educação musical à aprendizagem da palavra, ao português e à matemática. E serve para brincar.”
Quando a pressão para aprender a ler é feita pelos pais
“Agora há muito esta moda de as editoras publicarem manuais para o pré-escolar. Eu acho que isso é uma aberração. Mas aberração maior é haver educadoras que adotam manuais para o jardim de infância e depois justificam-se, dizendo que foram os pais que quiseram. A nossa obrigação é dizer aos encarregados de educação que a educação do pré-escolar não se compadece com a adoção de manuais. Deixa de ser um espaço livre”, defende Júlia Vale, que lembra que para o pré-escolar não há um currículo, já que ele deve ser construído com as crianças.
O papel do educador, defende, é encaminhar os alunos em determinado sentido, num caminho construído com as crianças, numa lógica muito diferente do caráter obrigatório de ter de cumprir um programa no Ensino Básico ou no Secundário.
Embora não exista um currículo oficial, com diz Júlia Vale, existem as Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar. Ao ler o documento, que pode ser consultado no site da Direção-Geral da Educação, fica claro qual é o seu objetivo: as orientações “não constituem um programa a cumprir, mas sim uma referência para construir e gerir o currículo, que deverá ser adaptado ao contexto social, às características das crianças e das famílias e à evolução das aprendizagens de cada criança e do grupo”.
Mas e quando são os pais a querer, a insistir que os seus filhos têm de aprender a escrever ainda antes de entrarem para o 1.º ano do Ensino Básico? Se Júlia Vale já defendeu que o papel dos educadores é o de alertar os pais, Eduardo Sá aponta também para os profissionais de educação, a par dos técnicos de saúde, como alguém com uma função indispensável na formação dos encarregados de educação. No seu radar, está também a comunicação social que “pode ser mais preponderante no sentido de alertar, interpelar e cativar os pais para as transformações que têm de promover em função da saúde dos filhos”. E nessas transformações, a brincadeira tem de entrar.
“Na minha prática clínica, vejo muitos pais aparecerem no consultório a queixar-se de que os filhos ainda não sabem fazer as letras”, conta a terapeuta Helena Gonçalves Rocha, licenciada em Educação Especial e Reabilitação. O problema, na sua opinião, é que os pais se esquecem da importância que o aspeto lúdico da aprendizagem temnesta fase da vida das crianças.
“As crianças podem aprender a brincar, a fazer retas e curvas e que depois, quando vão para a escola, vão servir para desenhar as letras. Fazer as próprias letras em certas fases de desenvolvimento não faz sentido. Há outras coisas que fazem sentido. O que eu acho é que os pais se lembram pouco da importância do brincar”, lamenta a terapeuta familiar.
Muitas vezes, quando a família tem algum tempo livre a opção é ir para o centro comercial, diz. “Há muitos pais que acham uma idiotice esta ideia de andar a brincar na rua. Como diz o professor Carlos Neto, a propósito do modelo educativo da Finlândia, lá quando está a nevar ou a chover, as crianças calçam galochas e vai tudo para a rua brincar. Aqui, que temos este sol maravilhoso, cai a primeira pinga e vamos todos para dentro de casa. Podíamos aproveitar mais. E não é só porque os miúdos gostam, é porque eles aprendem imenso na rua”, defende Helena Gonçalves Rocha.
Esta realidade é confirmada pelas conclusões do estudo Interação Criança-Espaço Exterior em Jardim de Infância, da psicóloga Aida Figueiredo: durante os 4 meses da estação invernal, os bebés com menos de um ano a frequentarem a creche só saíram ao exterior duas vezes.
Para a terapeuta familiar, difícil é transmitir aos pais a ideia de que “brincar não é uma perda de tempo”, como defende o já citado relatório da Academia Americana de Pediatria. “A brincadeira não é frívola: melhora a estrutura e a função do cérebro e promove a função executiva (ou seja, o processo de aprendizagem, em vez do conteúdo), o que nos permite perseguir objetivos e ignorar distrações”, lê-se no documento.
“As crianças, para crescerem saudáveis, precisam de duas horas de tempo livre por dia. Para brincarem. Para imaginarem. Para confabularem. Para ‘falarem com os botões’. E para pensarem. Crianças sem tempo livre todos os dias transformam a infância num banco de horas. Que nunca se vivem. Nunca se recuperam. E que não permite que as crianças cresçam felizes”, alerta o psicólogo Eduardo Sá.
O pediatra Hugo Rodrigues reforça esta ideia acrescentando que a brincadeira é “fundamental” para o desenvolvimento da criança. “Brincar é um direito básico de qualquer criança e acho criminoso que não se respeite isso. Todas as crianças precisam de brincar para crescerem e se desenvolverem de forma harmoniosa, segura e feliz. Isso vai fazer delas melhores adultos, não tenho dúvidas nenhumas.”
Nenhuma pedagogia é 100% certa ou 100% errada
O relatório norte-americano deixa um outro aviso. À medida que a sociedade põe o seu foco na prontidão académica, as escolas estão a responder com um aumento de atividades estruturadas pensadas apenas para melhorar e promover os resultados académicos o mais cedo possível, começando logo no pré-escolar. E enquanto este foco aumenta, diminui, de forma proporcional, a aprendizagem lúdica. Mas brincar, elucida o relatório, “constrói habilidades de funcionamento executivo e contribui para a prontidão escolar”, para além de contribuir para “a aprendizagem das competências do século XXI (resolução de problemas, a colaboração e a criatividade)”, críticas para um adulto alcançar o sucesso.
“As orientações para o pré-escolar são muito claras e os princípios que enunciam são uma boa síntese daquilo que sabemos ser preciso do ponto de vista da investigação: a criança precisa de participar, de estar ativa na sua aprendizagem, precisa de a construir e de ter uma voz para que ela seja significativa, precisa de diversidade de experiências sensoriais. Tudo isto é essencial para que se constitua a linguagem que depois serve de trampolim para as funções cognitivas mais complexas”, defende Ana Teresa Brito, da Fundação Brazelton/Gomes Pedro.
“Quando colocamos as crianças todas perante a mesma questão — estou a pensar nas fichas de atividades — e esperamos que todas sejam capazes de atingir um determinado nível da mesma forma, isso não é correto, nem no pré-escolar nem em nível nenhum de ensino. Mas quando estamos quase a querer escolarizar a própria creche, temos de fazer a pergunta ao contrário que é: que seres humanos queremos nós no futuro, que tipo de aprendentes da vida queremos nós no futuro, que tipo de competências queremos que as crianças tenham para poder sobreviver num mundo competitivo. Temos de discutir com os pais e os educadores, porque todos queremos o melhor”, argumenta.
Ana Teresa Brito acredita que todos os modelos pedagógicos têm uma crença profunda de que essa é a melhor forma de resolver as coisas, mas, sublinha, “hoje há tanta evidência — nomeadamente sobre a participação da criança na sua própria aprendizagem, a sua voz ativa, o envolvimento da família — que quando não temos isso em conta não está certo nem para o pré-escolar nem para nenhuma outro nível de ensino. A reprodução do conhecimento, por si só não ajuda à missão de sermos adultos criativos, interventivos e ativos e é inibidor de tudo o que a criança tem para nos dar”.
E assim, voltamos à questão inicial: as crianças devem aprender a ler e a escrever ainda durante o pré-escolar, devem passar o dia a brincar ou há um outro equilíbrio?
“Devia ser obrigatório existir em todos os jardins de infância um letreiro imenso a dizer: É proibido ensinar a ler e a escrever no jardim de infância!”, diz Eduardo Sá. “Aprender os fundamentos do conhecimento e transformar crianças em ‘macacos de imitação’ são coisas muito diferentes. Não é porque as crianças aprendem a reproduzir conhecimentos mais cedo que os pensam, discorrem sobre eles e os recriam melhor.”
Aliás, os últimos relatórios do IAVE — o Instituto de Avaliação Educativa que cria e avalia as provas e exames nacionais — mostram que é quando os alunos do básico e do secundário precisam de raciocinar que mais falham, sejam bons ou maus alunos.
A posição do pediatra Hugo Rodrigues não é muito diferente da de Eduardo Sá e considera um “contrassenso absoluto” ensinar ativamente letras, números e leitura antes do 1.º ano. “No fundo, estamos a escolarizar o pré-escolar, o que é, no mínimo, absurdo. Isto não quer dizer que não se corresponda à curiosidade das crianças. Se ela tiver vontade de aprender deve-se satisfazer essa vontade. Mas o ensino padronizado quando o cérebro ainda está a desenvolver a sua capacidade de abstração é desadequado e pode até ser nocivo”, argumenta.
Importante, defende o pediatra do Hospital de Viana do Castelo, é deixar as crianças colocar dúvidas e questões e estimular a sua curiosidade natural. “Ensinar conceitos básicos sobre o corpo humano, o universo, regras cívicas (trânsito, respeito pelos outros, por exemplo), música e arte são apenas alguns dos exemplos do que se pode e deve desenvolver nessas idades. Para além disso, é também fundamental trabalhar a destreza motora com as crianças. Elas têm de saltar, trepar, correr e sujar-se — são experiências que ao crescer vão deixar de fazer. Diria até que na infância devia ser obrigatório passar por elas.”
Para o presidente da direção da Associação de Jardins-Escolas João de Deus, a questão não se coloca nos seus estabelecimentos de ensino, já que as crianças aprendem brincando. “A aprendizagem da leitura é um falso problema. Tal como a aprendizagem da escrita, ela é entendida logo desde o nascimento. Quando uma mãe conta uma história a um bebé que ainda está na barriga está a fazer um trabalho excecional de desenvolvimento da linguagem escrita e falada no sentido em que está a criar o gosto pelas histórias”, defende Ponces de Carvalho.
Os exemplos apontados continuam: “Quando uma criança de 2 ou 3 anos está a fazer garatujas está a fazer um trabalho que vai ser importante para a escrita porque está a desenvolver a motricidade fina, a coordenação óculo-manual, está a compreender que na nossa cultura se escreve da esquerda para a direita e na horizontal. A brincar, está a desenvolver habilidades que vão ser necessárias para toda a vida. Todos precisamos de motricidade fina nem que seja para apertar os botões da camisa. Na creche, aprendem a ler. Como? Não com o aspeto formal, mas através da estimulação para encontrar livros ou quando lhes é pedido que contem uma história. Trabalha-se o interesse e o entusiasmo pela leitura desde muito cedo. Fingir que se lê é uma atitude de pré-leitura.”
Tal como Eduardo Sá ou Hugo Rodrigues, também Ponces de Carvalho acredita que memorizar conhecimentos para depois reproduzi-los, sem os compreender, não serve o interesse dos alunos. E garante que não é esse o objetivo nas escolas João de Deus.
“A criança tem de fazer três coisas sobre a palavra lida: construir uma frase onde entre essa palavra, falar das suas vivências e dizer qual o significado, quando se aplica, essa palavra. Quando a criança lê ‘o urso come mel’ tem de perceber o que ali está. Uma criança que nunca viu um urso, que não sabe o que é o mel, de certeza que não percebe que o urso ficou com a pata pegajosa. A leitura só é importante se eu, de facto, conseguir traduzir e compreender a mensagem. Sobre a aprendizagem da escrita, ouço coisas absurdas. Se a criança estiver a fazer um grafismo está tudo bem, se estiver a fazer letras já é proibido. Qual é a diferença? É um grafismo na mesma. Uma criança que seja mantida quentinha, alimentada, mas que não é estimulada, não se desenvolve”, argumenta Ponces de Carvalho.
A educadora Júlia Vale, que considera “um crime” querer escolarizar crianças que não estão em idade de 1.º ciclo, lembra que aos 5 anos há uma tendência natural para querer escrever palavras. Quando isso acontece, acredita que devemos corresponder ao que é pedido. “Naquele momento, quando a criança pede para escrever o nome, devemos ajudá-la. Ela copia o nome, mesmo que com letras ao contrário, mas naquele momento foi ela quem o solicitou e fez da maneira que conseguiu fazer. Foi uma vontade dela.”
Ponces de Carvalho acredita que deixar as crianças fazerem só o que querem não é positivo. “Há escolas que defendem que os meninos devem só fazer o que querem no pré-escolar. Habituam-se até aos 5 anos a fazer tudo o que querem. Chegam aos 6 anos, entram na escola oficial, e é o contrário. Este modelo não os prepara para a vida já que nenhum ser humano pode fazer só o que quer. Há regras. As crianças que são educadas em famílias excessivamente permissivas desenvolvem baixa autoestima, autoconfiança e resiliência. As três características que têm todos os toxicodependentes, jovens violentos e alcoólicos.”
Por isso, defende que se deve aprender a brincar e lembra que nem todas as famílias conseguem estimular os filhos da mesma maneira. “Nós temos aulas de educação musical para bebés e os de 2 anos têm aulas de arte. Temos de dar oportunidade para as crianças terem na escola um ambiente rico e estimulante, muitas vezes até para compensar os pais. Se tiverem a estimulação em casa não precisam de tanta na escola. Mas e os outros, os que não têm?”, questiona Ponces de Carvalho.
No final do dia, cabe aos pais escolherem a pedagogia com que mais se identificam. “Há várias teorias, vertentes e metodologias e cabe a cada pai escolher aquilo que lhe agrada mais”, diz Helena Gonçalves Rocha, terapeuta familiar.
Ponces de Carvalho concorda: “Eu acredito que o nosso método é correto e que é o mais adequado, mas continuo a achar que deve haver escolas com pedagogias e métodos diferentes para se cumprir aquilo que está na Constituição portuguesa que é os pais poderem escolher o método pedagógico com o qual se identificam. Nunca defendi, nem defenderei, que o método João de Deus fosse universal e aplicado por todos. Reconhecemos que temos resultados melhores do que outros métodos, mas não defendo que haja só um método. A nossa prática é não dizer mal dos outros. Não há métodos que façam tudo bem, como não há métodos que façam tudo mal.”
O conselho final para os pais é de Eduardo Sá, numa altura em que o ano letivo arrancou e quando muitas famílias tentam preencher ao máximo os horários das crianças e jovens, deixando-lhes muito pouco tempo livre.
“Ao falarmos de tempo livre não estamos a dizer que as crianças estão autorizadas a fazerem aquilo que muito bem entendem. Nada disso. Mas é preciso chamar a atenção para o modo como tendo as crianças uma vida tão stressante, tão hiperorganizada, com uma agenda mais apertada do que muitos dos seus pais, com compromissos de fim-de-semana que não as deixam, muitas vezes, respirar, e com os pais e as escolas a exigir, constantemente, o cumprimento de objetivos mais exigentes (dando-lhes menos condições para os atingirem) que não lhes estamos a dar o contrapeso que tanta insensatez junta precisa de ter.”
Tempo livre, defende, significa respirar, descansar e pensar. “Não se pode ser criança e guardar a infância para mais tarde. Uma criança que só brinca quando um adulto direciona o seu brincar cresce em liberdade condicional. É como uma ave que o melhor que consegue é imaginar-se a voar. Uma criança assim esconde no brincar o seu desamparo. E isso preocupa-me imenso. Porque brincar é um exercício de liberdade. Uma forma de tratar por tu a imaginação, a fantasia e o pensamento. Que traz o brio e a garra, a honestidade, a perseverança e a tenacidade. E traz a festa, claro. Mas porque é que aprender não pode ser uma festa? Brincar não é uma meta educativa. Mas, antes, aquilo sem o qual as metas nunca serão possíveis.”
Fonte: Observador por indicação de Livresco