quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Direito à educação para a cidadania

O Direito tornou-se o mais potente motor da Civilização. No mundo contemporâneo, não há alternativa à normatividade jurídica para regular a coexistência pacífica das culturas, dos povos e de toda a diversidade humana. Todavia, é conhecida a "poligamia" do Direito, sobretudo no plano nacional. Por um lado, a sua generalidade e maleabilidade prestam-se a possíveis argumentações contraditórias e ao "comércio" de jurisconsultos. Dizia-me, há anos, um reputado e conhecido Professor de Direito, a propósito de dinheiro: "Basta-me elaborar um "parecer", num fim de semana"... Por outro lado, não é raro a mentalidade dos Juízes sobrepor-se ao dever funcional e obrigação profissional de aplicar o Direito. Por exemplo, em 2006, o Supremo Tribunal de Justiça disse (por unanimidade): «Na educação do ser humano justifica-se uma correcção moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros. Será utópico pensar o contrário e cremos bem que estão postas de parte, no plano científico, as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de castigos moderados». No Acórdão não se encontra nenhuma referência aos "direitos da criança" nem, portanto, à Convenção sobre os direitos da criança, que é o Direito superior aplicável. Noutro caso, um Juiz decidiu que uma criança vítima de maus tratos devia ser devolvida à família, considerando que o laço biológico deve prevalecer sobre o laço afectivo, e a criança acabou por morrer. Portugal já foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos por causa de sentenças de Juízes ditadas pela sua "consciência" e preconceitos.

O Direito Internacional é mais fiel aos valores fundamentais da Ordem Pública Internacional, que devem ser também os de um Estado de Direito. São os direitos humanos, que se tornaram o Direito do Direito, Ética Comum da Humanidade. Entre eles, o direito à educação, que é um direito central na vida de uma criança e prioritário entre os direitos humanos. O direito à educação é um complexo normativo que inclui o direito à educação para os direitos humanos, de cuja ampla concepção internacional actual faz parte a educação para a cidadania, a educação para a vida sexual e reprodutiva, a educação ambiental, etc. Há uma Declaração das Nações Unidas sobre a educação e formação para os direitos humanos (2011) e uma Carta do Conselho da Europa sobre a educação para a cidadania democrática e a educação para os direitos humanos (2010).

Alguns elementos do objecto do direito à educação suscitam objecções de muitas famílias, em muitos países, alegando geralmente convicções religiosas. Por exemplo, nos EUA, em 1995, quando o Presidente Clinton quis enviar ao Senado a Convenção sobre os direitos da criança para ratificação, um grupo de Senadores Republicanos opôs-lhe uma Resolução onde se afirmava que a Convenção é «incompatível com o direito e a responsabilidade dados por Deus aos pais para educar os seus filhos». Os EUA são o único Estado Membro das Nações Unidas que não ratificou a Convenção. Subjacente a muita resistência cultural, sociológica, psicológica, aos direitos da criança está este entendimento: reconhecer direitos às crianças é retirá-los aos adultos. Por exemplo, o direito de aplicar castigos corporais aos filhos ou filhas; o direito de cumprir a escolaridade obrigatória em casa, para evitar a exposição às influências do ambiente escolar; o direito a que aprendam a narrativa bíblica da criação como alternativa à teoria da evolução; ou o direito à isenção da frequência de certas aulas, como a educação para a cidadania.

Este tipo de objecções invoca geralmente o terceiro parágrafo do Artigo 26 da Declaração universal dos direitos humanos, interpretado sem consideração pelos seus trabalhos preparatórios e com desconsideração do princípio sistemático, que tem em conta a evolução do Direito. No plano europeu, invoca-se também o Artigo 2 do primeiro Protocolo à Convenção europeia sobre os direitos humanos, menosprezando a sua interpretação teleológica pelos respectivos órgãos (a antiga Comissão e o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos). Destas e outras disposições jurídicas semelhantes se pode dizer o que disse a primeira Relatora Especial sobre o Direito à Educação (Nações Unidas): «A Convenção Europeia sobre os Direitos Humanos é um documento antigo, adoptado em 1950, que não reflecte nem o direito à educação, tal como foi posteriormente definido no Direito Internacional dos Direitos Humanos, nem o ainda mais recente conceito de direitos da criança». Já em 1949, num comentário ao Artigo 26 da Declaração Universal solicitado pela UNESCO e referindo-se ao seu terceiro parágrafo, Jean Piaget, prominente figura da história da psicologia e da educação, escrevia com alguma ironia: «... há pais excelentes e outros que não são tão bons, e convém proteger a criança contra a vontade dos segundos. [...] A este respeito, se "toda a pessoa tem direito à educação", é óbvio que também os pais têm esse direito, que é igualmente "um direito prioritário"».

Sendo Portugal parte (reputada) nos principais instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos, a normatividade jurídica nacional não é susceptível de interpretações contrárias ao Direito Internacional dos Direitos Humanos a que o Estado está obrigado. No que respeita à educação para os direitos humanos, como educação ética, cívica e internacional, a liberdade dos Estados apenas tem como «limite que não pode ser ultrapassado» o princípio de não-doutrinamento, como disse o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, princípio que formulou nestes termos canónicos: Os conteúdos curriculares têm de ser propostos «de um modo objectivo, crítico e pluralista».

Há muita jurisprudência internacional e nacional convergente nesta conclusão: Não há "objecção de consciência" válida contra o direito à educação, contra a sua integridade normativa internacionalmente reconhecida e protegida como direito humano.

A. Reis Monteiro

Professor da Universidade de Lisboa

Fonte: DN por indicação de Livresco

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Atraso no transporte escolar de crianças com deficiência. “Isto é um acto de exclusão”

Maria da Luz Rodrigues ainda não sabe em que dia a filha mais nova poderá regressar à escola. Só na última sexta-feira o Agrupamento de Escolas de Águas Santas, na Maia, recebeu o aval do Ministério da Educação para contratar o transporte especial para alunos com deficiência. Só esta semana o concurso arrancou.

Se lhe bater à porta alguém da comissão de protecção de crianças e jovens, não hesitará: “A menina não vai à escola porque não tem transporte.” Para já, fica com ela. “Com esta coisa da covid-19, fiquei sem trabalho, mas quero arranjar trabalho. Em casa não dá. Além de ter esta menina, que fez agora 18 anos, tenho duas netas a meu cargo, uma de nove e outra de 11 anos.” O marido é jardineiro. “Não chega para tudo.”

O problema não é novo. E este ano parece ter piorado. A data da transferência de competências para as autarquias explicará o atraso nalguns agrupamentos, mas não onde o transporte de alunos com necessidades especiais continua a depender da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares. Miguel Azevedo, do Movimento Cidadão Diferente, entidade que lançou o alerta, chama a atenção também nos ajustes necessários para o reinício do ano lectivo em tempo de pandemia. Tanta mudança pode ter levado a descuidar este aspecto.

O Ministério da Educação garante que o AE de Águas Santas foi o último a obter autorização para abrir concurso, mas não diz em quantos ainda decorre tal procedimento. Em causa, só ali, está o transporte de 26 crianças distribuídas por três unidades. Dez ainda não regressaram à escola, segundo Carlos Cardoso, adjunto da direcção. Os seus encarregados de educação não têm meio próprios para os levar, nem organização que os apoie.

Um sintoma de um problema mais geral

“Isto já devia estar resolvido antes”, insurge-se Maria da Luz. “Ao tempo que a escola devia ter resolvido isto. Não pensam nas pessoas que têm de trabalhar”, prossegue. “Tenho de cuidar da minha filha 24 sobre 24 horas sete dias por semana. Está há mais de seis meses em casa. Já nem sei para onde me virar.” No seu entender, este é um sintoma de um sistema que espera que pelo menos um encarregado de educação de uma criança com deficiência esteja excluído – total ou parcialmente – do mercado de trabalho. Como as prestações sociais são baixas, a pobreza avança.

Joaquina Teixeira, com um filho de 17 anos na mesma escola, faz o mesmo discurso. “Gravíssimo é que todos os anos este atraso acontece. Gravíssimo é não haver pessoas em número suficiente nestas unidades. Gravíssimo é estas unidades funcionarem das 9h às 16h. Gravíssimo é não haver resposta para estas crianças nas interrupções lectivas. É uma discriminação para com estas famílias. Alguém em casa vai ter de ficar sem trabalhar.”

Dirige um centro de desenvolvimento para crianças com défice cognitivo. Por estes dias, tem de chegar mais tarde por ter ido levar o filho e tem de sair mais cedo para ir buscar o filho. Vale que, por causa da pandemia, o marido continua em teletrabalho. O normal é pagarem a alguém que lhes fique com o filho enquanto estão a trabalhar. Não há, como no primeiro ciclo do ensino básico, componente de apoio à família. “Não há resposta. Os ATL não os querem receber.”

Escreveu à direcção do agrupamento, à Câmara da Maia, à Direcção-Geral de Estabelecimentos Escolares, à Comissão Nacional de Igualdade no Trabalho e no Emprego. Só obteve uma resposta. “Recebi um email sexta-feira, às 22h58 do director do agrupamento a informar que foi determinada a abertura do concurso para o transporte. O procedimento seria aberto esta segunda-feira, 11 dias depois de terem começado as aulas. Agora, há que seguir os trâmites legais do concurso que no mínimo demora 15 dias. Isto é gozar com estes pais.”

Necessidade obriga a encontrar estratégias

Há quem, como Filipa Nobre, residente em Sintra, tenha recorrido a terceiros. "Tenho de envolver o avô, porque o pai leva o carro e eu fico sem carro”, explica. Estando em teletrabalho, conseguiu fazer o filho chegar à escola de referência para crianças surdas, no Agrupamento de Escolas Quinta de Marrocos, em Lisboa​. “Ele pode entrar às 8h na Componente de Apoio à Família. Eu consigo levá-lo e estar em casa a tempo de começar a trabalhar às 9h. Se estivesse no escritório, não conseguia estar às 8h na escola e às 9h no trabalho. Teria de negociar com a entidade patronal.”

Já aconteceu noutros anos. “Há dois anos, as aulas começaram em Setembro, os transportes em meados de Outubro. No ano passado, as aulas começaram em Setembro, os transportes no final de Setembro, mas com lacunas”, relata aquela mãe. Ao que explicou a directora, Ana Cristina Sério, um total de 78 crianças precisam daquele transporte para chegar à escola. Iam começar a contar com isso esta segunda-feira. E começaram, confirma Filipa Nobre.

“Temos uma ou outra situação resolvida, AE Diogo Cão (Vila Real), o AE da Quinta de Marrocos (Lisboa), AE de Queluz (Sintra)”, diz Miguel Azevedo. “As outras situações continuam iguais. O AE de Pedome (Vila Nova de Famalicão), o AE de Águas Santas (Maia), AE de Real (Braga), o AE Alberto Sampaio (Braga), o AE de Maximinos, o AE de Vila Verde. “A nossa preocupação, nestes casos, é a demora dos concursos públicos. Pode haver alguma impugnação, o que atrasa tudo”, salienta. “Estes processos têm de começar mais cedo. O Estado não pode dizer que quer uma escola escola inclusiva quando não prepara atempadamente o ano lectivo para que estes alunos comecem ao mesmo tempo que os outros”, prossegue. “Isto é um acto de exclusão.”

Fonte: Público

Escolas deviam “ensinar os alunos a gerir melhor as emoções”

Os jovens portugueses andaram predominantemente aborrecidos, preocupados e tristes durante o confinamento ditado pela pandemia. A primeira conclusão a tirar do inquérito que a Fundação Gulbenkian fez a 1031 rapazes e raparigas, entre os oito e os 25 anos de idade, para perceber como geriram as emoções durante a pandemia, é clara quanto baste: “Os jovens portugueses, particularmente os mais novos e as raparigas, não estavam preparados para lidar com a mudança abrupta que entrou pelas vidas de todos”, resume Pedro Cunha, director do programa Gulbenkian Conhecimento. E a questão que se levanta, numa altura em que Portugal está no limiar de uma segunda vaga de infecções pelo novo coronavírus, é esta: de que modo podem as escolas aproveitar este regresso às aulas presenciais para ajudar os jovens a gerir melhor as emoções num eventual novo período de confinamento?

“Além de ler, escrever e contar, que são fundamentais, também é importante que os jovens sejam ajudados a pensar e a saber reconhecer as emoções e a gerir essas emoções”, começa por enunciar Pedro Cunha, para quem a pandemia veio agudizar esta necessidade de promoção também da adaptabilidade à mudança. “Ou o sistema educativo estimula deliberadamente essas competências transversais, como o pensamento crítico, a resolução de problemas, a adaptabilidade, a comunicação e a colaboração, ou, no final da escolaridade, as crianças e jovens saem muito pouco preparados para lidar com a mudança acelerada do mundo em que vivemos”, reforça.

Este alerta surge das constatações tornadas possíveis pelas respostas ao inquérito que os responsáveis da Gulbenkian fizeram a uma amostra de 1031 dos mais de 36 mil crianças e jovens que frequentam as Academias Gulbenkian do Conhecimento, lançadas há três anos por aquela fundação e que abrangem actualmente perto de 100 instituições que trabalham com jovens (de escolas a clubes, passando por universidades, câmaras e instituições particulares de solidariedade social de todo o país). Não é uma amostra representativa da população, mas, ainda assim, há dados suficientemente robustos, diz acreditar Pedro Cunha, para retirar algumas ilações.

À primeira pergunta, que procurava aquilatar quais foram as emoções predominantes durante o período em que estiveram fechados em casa e com ensino à distância, 66,9% dos que integravam a subamostra dos 865 jovens com idades entre os oito e os 15 anos declararam-se aborrecidos e 47,8% tristes. No escalão etário mais acima, dos 166 jovens entre os 16 e os 25 anos, predominaram o aborrecimento (70,1%) mas também a tranquilidade (52,6%). “Apesar de a diferença não ser muito grande relativamente aos mais novos, o padrão é predominantemente positivo entre os mais velhos”, destrinça aquele responsável.

Há outra diferença nas respostas, essa sim, mais significativa: as raparigas expressaram mais emoções negativas. Porquê? “O estudo não apresenta explicação para isso, mas a psicologia da criança e do desenvolvimento pode dar-nos algumas pistas, nomeadamente quando mostra que as raparigas tendem a ter a literacia emocional mais desenvolvida do que os rapazes e, porque têm mais facilidade em expressar as emoções, são mais honestas nas respostas que dão”, admite Pedro Cunha.

Criativos em vez de “quietos e calados”

Na questão seguinte, o questionário procurava saber se os jovens tinham ou não aplicado as competências sociais e emocionais que aprenderam nas Academias Gulbenkian do Conhecimento para lidar com as mudanças inerentes ao contexto pandémico: do pensamento criativo à capacidade de resolução de problemas, passando pela resiliência, pela auto-regulação e pela adaptabilidade a diferentes circunstâncias.

“A esmagadora maioria respondeu que sim”, afiança Pedro Cunha, para acrescentar que por terem recorrido às ferramentas adquiridas “os estados emocionais negativos baixaram muitíssimo e os positivos aumentaram muitíssimo”. “A maior parte disse que se empenhou em encontrar soluções novas para os problemas com que se estavam a confrontar e alguns disseram, por exemplo, que procuraram encarar um dia de cada vez para não desanimarem”, concretiza.

Num cenário em que os diagnósticos conhecidos tendem a descrever alunos cansados e sem gosto pela escola e em que estas surgem como estando demasiado focadas nas notas e na avaliação, o responsável da Gulbenkian aponta o muito que pode ser feito para incutir nos jovens aprendizagens que vão muito para além do ler, escrever e contar. “Não é igual pedir aos alunos para estarem sentados, quietos e calados durante 12 anos ou estimular neles a criatividade, a adaptabilidade e o pensamento crítico”, refere, para acrescentar que “estas competências não são conteúdos em si, não precisam de ser adicionadas ao currículo tradicional”, isto é, “tudo se joga na forma como o currículo é abordado”. “A disciplina de História é excelente para estimular o pensamento crítico. A Matemática pode ajudar a estimular o pensamento criativo e até a Educação Física se associa facilmente à criatividade, tanto quanto as expressões artísticas”.

Questionado sobre a capacidade de as escolas incorporarem estas competências na forma como ensinam as matérias, Pedro Cunha mostra-se optimista. “As escolas têm essa consciência. O que falta muitas vezes são as ferramentas, e não estou a falar de recursos humanos, mas de ferramentas metodológicas”. Por isso é que diz que, após os primeiros três anos de vigência das Academias Gulbenkian do Conhecimento, e cujos resultados vêm sendo avaliados sistematicamente, a “fundação está totalmente disponível para mobilizar todo o conhecimento que existe do terreno e torná-lo acessível a qualquer professor de qualquer sala deste país”. “Este é o próximo desafio e nós queremos colaborar com o Ministério da Educação no sentido de disseminar o melhor possível toda esta informação que temos vindo a recolher”.

Fonte: Público

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

O novo ano letivo começou marcado por muitos receios e dúvidas. Muitos esforços se conjugam para colmatar problemas estruturais das escolas que dificultam a indispensável garantia de medidas de segurança eficazes no combate ao novo corona vírus: escolas sobrelotadas; salas de aula de difícil arejamento; turmas grandes, muitas vezes em salas demasiado pequenas; corpo docente envelhecido, com elevado número de professores pertencentes a grupos de risco; número insuficiente de assistentes operacionais. Certa, certa, é a vontade comum a toda a comunidade educativa de garantir as melhores condições possíveis para o funcionamento do ano escolar, não obstante tão adversa conjuntura.

No ano letivo transato, o fecho das escolas foi uma das medidas inegáveis na luta contra a pandemia, que apanhou de surpresa toda a sociedade. Sem qualquer preparação prévia, os professores reinventaram-se para conseguirem acompanhar os seus alunos. Com mais ou menos sucesso, a escola entrou pela porta adentro nos lares de todo o país. Em alguns, havia computadores a facilitar essa entrada; noutros havia só um telemóvel; noutros, nem isso. Em muitos lares pais e filhos estavam, assim, em teletrabalho, às vezes em torno da mesma mesa. Noutros, enquanto os filhos “frequentavam” a escola à distância, os pais viam-se a braços com corte ou desaparecimento total de rendimentos.

Muitos pais começaram por se sentir culpabilizados por se verem a braços com a tarefa de garantir a escola em casa, não se sentindo capazes de o fazer. Assim aconteceu com Ana, mãe de Tiago, um menino do 5º ano, que o confessou por e-mail à professora de Inglês:Peço desculpa por o Tiago não ter mandado os TPC. Insisti para ele os fazer, ralhei-lhe, até perdi a paciência e discutimos. Mas ele disse que não os sabia fazer e eu não sei Inglês paro o ensinar. E agora? Ele vai ter falta? Desculpe-me por não ser capaz de ajudar o meu filho.

Teresa, a professora de Inglês, respondeu-lhe desdramatizando e clarificando o que esperava dos pais:
Não tem nada de que pedir desculpa. E também não tem obrigação de ensinar Inglês ao seu filho. Para isso estou cá eu. À 2ª feira os alunos mandam-me os TPC feitos para eu corrigir. Se não conseguirem fazer, dizem as dúvidas que tiveram para eu explicar melhor.Os trabalhos de Inglês destinam-se a ajudar os alunos a não esquecerem o que aprenderam.Não podem contribuir para complicar a vida já difícil das famílias nem para discussões familiares. Se o Tiago recusar fazer os TPC, a Dª Ana informa-me disso e não se zanga mais. 

O episódio seguinte desta história foi feliz, como se vê na mensagem de Ana para a professora:
Muito obrigada pela sua mensagem. Tranquilizou-me muito e fez o Tiago pensar. Mostrei-lha e ele fartou-se de chorar. Disse que a culpa era dele e não minha. Ele ficou mesmo diferente e até já acabou por fazer o TPC desta semana sem eu ter de o obrigar.

O percurso do Tiago durante o resto do ano letivo não foi linear nem isento de dificuldades para ele, para a sua mãe e para os professores. Contudo, a interação foi positiva e a entreajuda, eficaz. À semelhança desta história, houve, por todo o país, uma entrega da maioria dos docentes a novos modos de trabalhar, impensáveis poucos meses antes. Quantos professores não se tornaram até confidentes de pais e mães a braços com severas dificuldades (perda de emprego, doença, habitações com condições deficientes, relações familiares tensas agravadas pelo confinamento)!

Infelizmente, nem todas as histórias de escola em tempos de confinamento tiveram percursos e finais felizes. Foram muitos os alunos a cujos lares a escola não conseguiu chegar. As desigualdades sociais no acesso à escola acentuaram-se com o fecho dos seus muros e a ausência física dos professores. Mas mesmo as histórias mais felizes não fazem esquecer o sentimento de perda do fecho das escolas. A escola, os professores e a interação face a face dentro da sala de aula são insubstituíveis e, por isso, todos desejamos o regresso duradouro ao ensino presencial, com medidas que acautelem a segurança de alunos, professores e assistentes operacionais.

Armanda Zenhas

Fonte: Educare

domingo, 27 de setembro de 2020

Percurso acessível? Não é turismo, é “uma aventura radical”

Carlos Nogueira nunca foi ao Castelo de São Jorge. Lisboeta, com 53 anos, soube desde sempre que há sítios da cidade que não consegue visitar. Aos 13 meses, uma poliomielite, uma infecção no sistema nervoso central, fez com que perdesse o controlo dos membros inferiores. Até aos 30 anos, andou de ortóteses e canadianas. Desde então, é com a cadeira de rodas que se desloca no dia-a-dia pela área da Grande Lisboa, onde vive e trabalha.

Lisboa está longe de ser uma cidade acessível, apesar de todos os avanços que têm sido feitos nos últimos anos. Uma das zonas mais difíceis de adaptar, devido à morfologia do terreno, é precisamente a zona histórica. Quando Carlos soube que um dos itinerários acessíveis recomendados na plataforma VisitPortugal era “Do Bairro Alto ao Castelo”, ficou surpreendido. “Criou-me expectativa”, diz (...), a expectativa de visitar finalmente uma zona da cidade que sempre achou que lhe estava vedada. E por isso fez-se à estrada. “Lamentavelmente”, continua, “fiquei-me pela expectativa”.

“Liderar o turismo do futuro, uma das principais metas da Estratégia Turismo 2027, implica afirmar Portugal como destino acessível, inclusivo e sustentável”, diz uma representante do Turismo de Portugal, por escrito (...). Por isso, na plataforma VisitPortugal, estão disponíveis percursos acessíveis para 20 localidades portuguesas, definidas “considerando a importância turística da localidade, os pontos de interesse patrimonial/cultural existentes, o património classificado pela UNESCO e as condições de acessibilidade já existentes à época, assim como a distribuição a nível nacional, abarcando todas as regiões”.

Estes itinerários foram delineados após um levantamento das condições de acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida feito em 2015 pelo Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade, tendo em conta “sobretudo, as pessoas com limitação motora e o segmento sénior, embora também tenha sido considerada informação relevante para outros tipos de deficiência ou limitação”.

Do Bairro Alto ao Castelo: um itinerário acessível?

O itinerário acessível começa no Largo Camões, atravessa a baixa Lisboeta, vai do Rossio à Praça do Comércio e daí começa a subida para o Castelo de São Jorge.

Apesar de ser quase sempre uma dor de cabeça – pela dificuldade em encontrar lugares de estacionamento adaptados, pelo pavimento que lá encontra e pela quase totalidade de passadeiras mal desniveladas – a baixa lisboeta não é novidade para Carlos. Gosta de a visitar principalmente na altura do Natal, mas sabe que, quando vem, tem de vir com uma dose extra de paciência, já preparado mentalmente para todos os obstáculos que vai encontrar. Obstáculos esses que começam logo no estacionamento: na zona do Chiado encontra apenas quatro lugares para pessoas com deficiência. Não havendo lugar, terá de regressar a casa.

Segundo obstáculo: o pavimento que reveste grande parte da zona histórica, a calçada portuguesa. “Não havendo uma manutenção eficaz, o problema agrava-se, mas mesmo uma calçada bem mantida acaba por ser uma má solução para quem anda em cadeira de rodas, porque a trepidação está sempre lá”, explica (...). Apesar do desconforto causado pelo pavimento e do perigo de poder encravar uma das rodas da frente no piso irregular, Carlos não defende que se acabe com a calçada que tem valor patrimonial. Acredita, no entanto, que existem soluções que podem coexistir pacificamente com a calçada portuguesa e garantir conforto e segurança a todos.

As passadeiras mal desniveladas são outro problema já familiar para Carlos. Do Bairro Alto ao Castelo, a excepção foi a passadeira bem desnivelada que encontrou no Rossio. Em todas as outras encontrou ressaltos que, por mais insignificantes que pareçam, podem condicionar a passagem de uma pessoa que se mova em cadeira de rodas, dependendo da gravidade da sua lesão e da mobilidade da sua cadeira de rodas. Como a lesão de Carlos lhe permite elevar as rodas da frente da cadeira, ou seja, deslocar-se, como diz, “em cavalinho”, Carlos conseguiu vencer alguns dos ressaltos. Noutros, teve de pedir um empurrão.

Apesar das dificuldades, Carlos consegue chegar até à Praça do Comércio. A capacidade física que tem e a roda FreeWheel que trouxe para acrescentar à sua cadeira, que faz o trabalho das duas rodas pequenas da frente e serve para ultrapassar mais facilmente obstáculos, permitiram-lhe vencer as adversidades e cumprir metade do caminho. É na Praça do Comércio que começa a subida para o Castelo de São Jorge – e é também aqui que começam os maiores problemas.

A plataforma VisitPortugal avisa desde logo que os transportes para o Castelo, “pequenos autocarros ou eléctricos”, não são acessíveis, pelo degrau que apresentam à entrada. Ir a pé também não é aconselhado, por serem “ruas íngremes” que “implicam maior esforço”. Por isso, é recomendado que as pessoas com mobilidade reduzida façam o trajecto num veículo adaptado. O de Carlos ficou na Rua Nova da Trindade, e ir buscá-lo, subindo de novo o Chiado, não é solução. A plataforma sugere ainda “uma forma de chegar ao castelo autonomamente”, que passa por utilizar os elevadores do Castelo e do Mercado do Chão do Loureiro “totalmente acessíveis a pessoas com mobilidade reduzida”. E seguimos.

A utilização dos elevadores acaba por ser de facto acessível, e Carlos vê-se então chegado à Costa do Castelo, de onde já consegue ver as muralhas do destino final. A partir daqui, a subida é íngreme, “um percurso com inclinações e pavimento irregular que podem dificultar um pouco a circulação”, como se lê no itinerário. Uns penosos 400 metros depois, no fim da Rua do Milagre de Santo António, já visivelmente cansado e desanimado, Carlos decide pôr fim ao passeio. E fica o sentimento de desilusão: “Eu não consigo perceber como é que um percurso destes pode ser considerado acessível”. A dificuldade do percurso é demasiado alta, até para Carlos: “Eu estou com uma cadeira de rodas muito boa, sou uma pessoa extremamente activa, tenho umas rodas especiais que me permitem eliminar muito do desconforto que se sente aqui, mas é impossível”.

Os elevadores foram uma agradável surpresa para Carlos, mas, para que o percurso seja verdadeiramente acessível, “a solução tem de passar pela disponibilização de equipamentos de tracção eléctrica que permita vencer estas pendentes e este pavimento, porque é impossível fazê-lo a braços e com uma cadeira de rodas convencional”. E deixa a sugestão: porque não instalá-los à saída do Elevador do Mercado do Chão do Loureiro? Só aí poderá dizer-se que este é um itinerário acessível. “Gostaria muito que quem considere este percurso acessível se sentasse numa cadeira de rodas e tentasse percorrer 50 metros desta Rua do Milagre de Santo António. 50 metros. Não é preciso mais”.

Fonte: Público

sábado, 26 de setembro de 2020

Cuidado: O excesso de Inclusão pode matá-la. (Cap. 2)

Este é a segunda reflexão que irei aqui deixar para que todos possa também pensar e formar as suas ideias e posições sobre o Decreto Lei 54/2008 de 6 de julho, (alterado pela Lei nº 116/2019 de 13 de setembro). São diversos textos que dividirei por capítulos, com uma análise pessoal do estado da Educação Inclusiva em Portugal, à luz do novo diploma assim denominado.

CAPÍTULO 2 
As mudanças: novidades, ou talvez não.

A primeira grande alteração prática e efetiva, que se desejava, foi o fim da CIF como modelo de classificação dos alunos, cuja obrigatoriedade estava inscrita na lei anterior, o que motivou críticas desde o primeiro dia da sua implementação, dado que entrava em contradição com a construção de uma melhor inclusão e mantinha o primado do modelo clínico sobre um modelo mais pedagógico, tendo como resultado selecionar quem acedia a que tipo de medidas e recursos. No DL/54 ensaia-se uma forma de identificação dos alunos elegíveis para cada medida, baseada na eliminação de barreiras e na fundamentação pedagógica para o apoio necessário.

Aparecem também as Medidas Universais como a grande mudança, pois permitem que medias de acesso ao currículo anteriormente integradas na Educação Especial (Acomodações Curriculares) inscritas num PEI, possam agora ser aplicadas por todos os docentes sempre que necessário.

Com estas mudanças criaram-se dois problemas: i) a saída da esfera especializada das medidas de acesso ao currículo (acomodações curriculares) e ii) a restrição de atribuição de apoios especializados, adaptações à avaliação externa e redução de turma, apenas aos alunos com RTP. Logo, não universais.

Primeiramente este salto para um modelo social, secundarizou a especificidade do indivíduo e as suas barreiras intrínsecas, essenciais para compreender a pessoa no seu contexto. Abandona-se de tal maneira um modelo individual, que se perde uma abordagem mais equilibrada, numa linha bio psico social. A elegibilidade como que desapareceu, ou antes, colocou num grande saco tudo e todos, agora sob a forma de barreiras e potencialidades, que dizem tudo e coisa nenhuma. Nas escolas é visível esse desnorte na elegibilidade, na avaliação pedagógica com referência aos currículos, na falta de rigor e clareza numa matéria tão sensível, tornando geral o que é específico e o que deveria ser específico banaliza-se.

Paralelamente, a definição de NEE de caráter permanente (outra criatividade portuguesa), “recua” para as medidas adicionais, nomeadamente para o nº1 do Artigo 10º, “As medidas adicionais visam colmatar dificuldades acentuadas e persistentes ao nível da comunicação, interação, cognição ou aprendizagem que exigem recursos especializados de apoio à aprendizagem e à inclusão”. Desta vez são “acentuadas” e “persistentes”, logo, carecem de uma fundamentação clínica. Ao mesmo tempo, a figura do RTP, só se aplica quando existam, pelo menos, Medidas Seletivas, excluindo as Universais, logo as Acomodações, ao contrário do que acontecia antes, onde o PEI salvaguardava a necessidade de medidas de acesso ao currículo para os alunos com NEE.

Esta abertura é centralmente positiva, mas tornou-se num presente envenenado. Retira as acomodações curriculares do âmbito da especialidade e do RTP, onde, em muitos casos, são necessárias por questões de incapacidade intrínseca e perturbações. Uma coisa é abrir as Medidas Universais (que sempre existiram) a quem delas possa necessitar (embora nunca tenha sido vedada a sua utilização anteriormente por todo o ensino), outra coisa é um aluno que necessita destas Medidas de forma permanente, devido a condições individuais, deixar de ter acesso a redução de turma, apoio especializado, apoio personalizado, ou a condições nos exames, sabendo-se que as medidas de acesso ao currículo e adaptação da avaliação, estão contidas nas Acomodações Curriculares. Como resultado, acautelaram-se as situações que exigem investimento financeiro, mas na realidade corre-se o risco de estar a desproteger estes alunos e dilui-los em respostas gerais, contrariando o direito a uma diferenciação com equidade.

Para além do atrás referido temos ainda conceitos, medidas e modelos supostamente novos, a complicar aquilo que poderia ser tão simples, mas que passou a ser um conjunto importado de nomenclaturas criativas. A própria Diferenciação Pedagógica, tão necessária no nosso sistema de ensino, aparece como uma medida prescritiva para alguns alunos em dificuldade, como se fosse possível promove-la, sem diferenciar o ensino, dado que é uma metodologia de ensino para toda a turma.

Também o Desenho Universal é uma forma de planificar para o ensino global da turma. Como se pode pedir que os professores planifiquem de acordo com o Desenho Universal, quando as planificações dos departamentos curriculares e as Aprendizagens Essenciais não são organizadas de acordo com esses princípios?

O Modelo Multinível, uma forma de organizar práticas e ações nos sistemas, aparece como mero organizador de medidas prescritivas. Não é um modelo pedagógico, mas aparece misturado como se fosse. A sua introdução nesta lei é completamente desnecessária, pois já desde os anos 90 que se divulgam praticam princípios como “meio menos restritivo possível” ou “aplicação progressiva de medidas mais restritivas”.

Contradições e falta de rigor científico que fragilizam o diploma e comprometem a sua real implementação. Conceitos como Desenho Universal, Diferenciação Pedagógica e Educação Multinível, deveriam fazer parte de uma estratégia mais global para todos os alunos, por exemplo, no DL/55, mas estão longe de serem apropriados pelas escolas. As suas corretas definições remetem para uma implementação que não se circunscreve a um contexto e aplicação de medidas especificas numa parte do sistema.

Como consequência, tudo isto acabou por se instalar como um problema, que cada escola resolve da melhor forma, mas que resulta, na prática, em leituras criativas, procedimentos díspares, menos apoio específico, menos investimento, menos reduções de turma e diluição em medidas de apoio gerais, que prejudicam muitos alunos, antes acautelados.

As mudanças: querer mais inclusão sem Educação Especial 

Outra mudança é procurar tornar a Educação Especial apenas numa disciplina de apoio colaborativo, esvaziando-a como estrutura responsável pela inclusão destes alunos e não garantido a sua efetiva e fundamental atuação direta especializada dos que dela necessitam e dependem. Isto abre também a porta à redução destes profissionais. Uma lei desta natureza tem que ter em conta as necessidades e a realidade das escolas, não pode simplesmente perder-se na magia da retórica e decretar a Inclusão, ao mesmo tempo que secundariza os principais atores da mesma, ao longo de décadas.

Deveríamos ter partido de uma avaliação da anterior lei e melhorar, mas sem complicar ou introduzir modelos desnecessários. Concordamos que se trata de um caminho a percorrer por todos, em simultâneo, através de passos seguros e respeitando a velocidade e necessidade das escolas. Só que não foi feita essa avaliação, nem foram tidos em conta os atores principais da mudança, criando um divórcio entre a realidade das escolas, as suas necessidades, o ponto onde se encontram e aquilo que a lei pretende.

Por outro lado, também não se pode dizer que existe uma lei de Educação Inclusiva e querer alterar o corpo de professores de Educação Especial para professores de ação genérica, criando um perfil funcional difuso de apoio indireto. Coloca-se em causa o corpo de conhecimento específico desta área curricular legalmente consignada. Todos os professores têm de ser de Inclusão e ter esse objetivo assumido no sistema de forma transversal. A Inclusão é um valor e é um objetivo do sistema educativo, da escola e das disciplinas, não é, por si só, uma disciplina. Aliás, nesta lei nem se define o que é Educação Inclusiva, estranho, ou talvez não.

As mudanças: uma EMAEI redundante no local errado

Outra das alterações inquietantes é a criação de uma equipa de coordenadores, EMAEI, que seria responsável pela Inclusão, mas, mais uma vez, acaba por ser só para os alunos abrangidos pela legislação, como decorre da leitura das suas competências e a dimensão onde foi criada. Na prática fica reduzida à implementação de medidas prescritivas e a um papel administrativo e burocrático, completamente redundante. Aliás, a burocracia é a grande marca desta lei.

Em nenhuma outra legislação, a não ser no DL/54, aparecem referidas as EMAEI ou os CAA, nomeadamente no Decreto Lei n.º 54/2018 de 6 de julho, ou Despacho Normativo n.º 10-B/2018 de 6 de julho. Não está regulamentada a sua ação, nem se percebe onde fica na hierarquia de um Agrupamento. Portanto, pretender fazer uma leitura abrangente do contexto de atuação destas estruturas, parece-nos ser um ato de muita generosidade.

Basta ler as competências da EMAEI, para perceber que se trata de uma equipa que zela pelo cumprimento do DL/54, nos procedimentos de identificação e acompanhamento das medidas, na participação dos pais, na elaboração dos RTP, PEI e PT, bem como acompanhar os Centros de Apoio à Aprendizagem. Para além destas competências, duas lacónicas alíneas falam em sensibilizar para a inclusão e prestar aconselhamento sobre práticas inclusivas aos docentes, inferindo tratar-se dos docentes dos alunos abrangidos pelo DL/54. Com um peso enorme relacionado com a aplicação do DL/54, não vemos nestas duas alíneas o caráter abrangente, que alguns interpretam ser a função da EMAEI e a prática nos Agrupamentos está à vista.

Por não ter conteúdo funcional fora das gestão de medidas prescritivas, a EMAEI tem de ir disputar competências com outros setores da escola, nomeadamente tentando fazer o que é da competência do Departamento de Educação Especial, dos Conselhos de Turma, dos Departamentos e Disciplinas e, principalmente do Conselho Pedagógico e do Diretor. Estando já organizadas opções mais inclusivas para a gestão dos apoios e das medidas, pelos órgãos que efetivamente trabalham com os alunos e os conhecem, não faz sentido criar uma estrutura à parte.

Estranhamente temos aqui um movimento inverso ao que inicialmente deveria ser o lógico, ou seja, em vez do trabalho pela Inclusão dos alunos com NEE, ser aprofundado e disseminado pelo resto da escola, “contaminando” o ensino para todos os Departamentos; são os restantes Departamentos que se inserem numa Lei setorial, mas não cuidam da Inclusão para todos os alunos nas suas respetivas áreas. Temos então um elevado número de pessoas a tratar do que poderia ser feito de forma bem mais simples e especializada, descurando as suas áreas de referência. como aliás acontece nos documentos pedagógicos correntes da escola como os Planos de Acompanhamento ou os Planos de Turma, por exemplo.

Em muitos Agrupamentos temos um grupo de pessoas que se reúne semanalmente por diversas horas, afogadas em burocracia e prazos, totalmente ineficaz, sem conhecer alunos, com uma sobrecarga de trabalho, para fazer, o que afinal legitimamente já era anteriormente feito pelo Departamento de Educação Especial, SPO, pais, técnicos e Conselhos de Turma/Docentes. Instalou-se nas escolas uma disparidade de formas de organização e de atuação nos diferentes Agrupamentos, com leituras diferentes do que já nasceu ambíguo, pondo em causa a forma atempada, célere, prática e sigilosa, de gerir estes processos, pelos intervenientes diretos, como até aqui.

Seria muito mais eficaz criar uma equipa do género com influência transversal e abrangente, a um nível superior, no seio do Conselho Pedagógico, onde já todos esses coordenadores têm assento. Um órgão com responsabilidade na promoção e acompanhamento da Inclusão em todo o ensino e em todas as áreas. Criada no DL/55, por exemplo, onde cada coordenador acompanharia e responderia pelo seu próprio departamento em matéria de Inclusão. Por muito que se queira fazer crer, ou interpretar, a EMAEI não tem recursos próprios, jurisdição nos processos pedagógicos e medidas para o sucesso para todos os alunos, nem atua em toda a escola, o que a diminui e a remete para um setor específico. pretende-se que esta equipa permanente acaba por definir um conjunto de indicadores de avaliação da inclusão, mas não a toda a escola, apenas no âmbito da aplicação do DL/54. Atente-se ao estipulado no ponto 2 do artigo 11º do Despacho Normativo n.º 10-B/2018 de 6 de julho, que remete o DL/54 para o seu canto.

A forma como a EMAEI se organiza, com elementos permanentes e variáveis, cria muitas dúvidas pelo país e formas de atuação díspares, nem torna a deteção das necessidades mais atempada, nem cuida do rigor das decisões, nem muda os atores (elementos variáveis), dado que são os mesmos que já o faziam, isto para além das diferentes interpretações que está a ter. Faria sentido separar as duas vertentes. As decisões sobre medidas e sua aplicação já são tratadas por quem trabalha com os alunos e assim deveriam continuar, à semelhança de tantas outras situações como as tutorias, planos de apoio, apoio ao estudo, salas específicas, projetos do português e da matemática, etc… porquê neste particular excluir?

Também nos preocupa a forma como é tratada a Educação Especial, na composição permanente. Todos são coordenadores exceto o representante da Educação Especial. Ou seja, quem redigiu esta lei omite que em todos os Agrupamentos de Portugal já existem coordenadores de Educação Especial. Em muitos deles a EE constitui-se até como Departamento autónomo, tem assento no Pedagógico, sendo avaliado na sua especificidade e transversalidade e prestando contas de forma autónoma ao Conselho Pedagógico, ao Diretor, à IGE e à tutela. O que se passa neste momento é que muitos Agrupamentos foram mais longe e acabaram com os Departamentos de Educação Especial e passaram a designar Departamento de Educação Inclusiva, resultando que, de repente, apenas alguns professores se tornaram Inclusivos. Outros simplesmente remeteram a EE para um papel executivo. Foram conquistas de muitos anos, onde só a Inclusão ficou a ganhar com uma Educação Especial mais forte, reconhecida pelas estruturas e pelos pares. Com a nova legislação há um esvaziamento da Educação Especial sem sentido e a que preço. Sabemos que na proposta de lei para discussão pública, estava ausente qualquer referência à Educação Especial e seus profissionais. Parece que na génese deste documento está a ideia de minimizar a Educação Especial como grupo ou departamento autónomo organizado e especializado, com estatuto legal consignado, com funções e recursos próprios que gere e responsabilidade na educação direta e indireta dos alunos com NEE e na promoção da Educação Inclusiva. 

Jorge Humberto Nogueira

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Falta transporte adequado para mais de uma centena de alunos com deficiência regressarem à escola

Não se sabe ao certo quantos alunos com necessidades especiais estão privados de transporte adequado para ir à escola. Seria preciso contactar todos os agrupamentos do país, já que nuns tal serviço depende das autarquias e noutros do Ministério da Educação, não havendo por isso informação centralizada. O Movimento Cidadão Diferente identificou dezenas de casos, mas todos os dias lhe têm chegado novos relatos, ultrapassando agora a centena.

O alerta, lançado pelo Movimento Cidadão Diferente, chegou com exemplos de agrupamentos escolares. Primeiro, o Agrupamento de Escolas (AE) da Quinta de Marrocos (Lisboa), AE de Queluz (Sintra), AE de Pedome (Vila Nova de Famalicão), AE Diogo Cão (Vila Real). O Movimento Cidadão Diferente acrescentou-lhe o AE de Águas Santas (Maia). Depois, o AE de Real (Braga) e o AE Alberto Sampaio (Braga). Por fim, o AE de Maximinos e o AE de Vila Verde. Entretanto, a situação de Vila Real foi ultrapassada.

O ano é atípico. As escolas têm tido autonomia para tratar deste assunto, salienta Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares. A contratação, por ano lectivo, é feita por cada agrupamento, com verba da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares. Esta competência passou a ser das autarquias em cerca de uma centena de municípios. "No nosso caso [Agrupamento de Escolas Serpa Pinto, em Cinfães], a autarquia delegou na escola. Não mudou nada. Avançámos com o processo em Agosto.” Concede que noutros haja problemas.

O problema não é exclusivo dos municípios. Questionado (...), o gabinete do ministro da Educação começou por responder, quinta-feira à noite, que “a grande maioria dos alunos com necessidades específicas já tem transporte assegurado”. E que “está já a ser ultimado o processo de contratação dos casos identificados”. Já nesta sexta-feira, afirmou que está dado o aval a todos os que dependem do ME para avançar. Até segunda-feira, quem não recebeu deverá receber essa informação. Disse ainda que o atraso, por vezes originado na escola, afecta 5% dos alunos que carecem deste apoio.

O Agrupamento de Escolas de Águas Santas, por exemplo, ainda aguardava notícia da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares para lançar o concurso público. “Em anos anteriores, têm sido corporações de bombeiros a prestar este serviço”, revelou Carlos Cardoso, adjunto da direcção. “Dois alunos devem ficar em ensino à distância, mas outros 26 precisam de transporte: dez deles não estão a ir à escola.”

Já o Agrupamento de Escolas Quinta de Marrocos tem o serviço adjudicado, não a funcionar. “Uma vez que várias empresas irão fornecer o referido transporte, estão neste momento a organizar as diferentes rotas para iniciar o serviço”, afiançou a directora, Ana Cristina Sério. “Neste ano lectivo, 78 crianças irão usufruir de transporte escolar.” Umas têm conseguido chegar, graças aos encarregados de educação, mas outras não.

Concursos sem interessados e outros percalços

Não é a primeira vez que alguns destes alunos começam o ano mais tarde. Como explicou Ana Cristina Sério, “por vezes, há atrasos na adjudicação do serviço resultante dos procedimentos e prazos presentes no Código dos Contratos Públicos”. Acontece ninguém se apresentar, “ficarem lotes sem interessados, obrigando à repetição do concurso”.

Manuel Pereira também chama a atenção para a dificuldade em encontrar um motorista que se comprometa a estar todos os dias à mesma hora na casa da criança para a levar à escola e na escola para a levar a casa. Os circuitos podem ser curtos. Pode ser necessário ter uma segunda pessoa ou uma cadeira especial, como aconteceu com uma aluna do seu agrupamento. “O transportador recusava-se a transportá-la para não comprar a cadeira, que custava quatro mil euros”, recorda. “Explicámos à direcção-geral que precisávamos desta cadeira, fizemos o concurso, comprámos.”

“Estes concursos deveriam ser feitos antes para que estes alunos, que nalguns casos estão em casa desde Março, pudessem voltar à escola com os outros”, sublinha Miguel Azevedo, do Movimento Cidadão Diferente. “Na minha área de residência, Gondomar, o Agrupamento de Escolas Júlio Dinis lançou o concurso no início das aulas. Quando tomou a decisão, uma pessoa impugnou o processo”, exemplifica.

O planeamento atempado fez com que muitas escolas, como as do AE Manuel Ferreira Patrício, por exemplo, pudessem encontrar soluções para as crianças incapazes de usar o transporte escolar regular. “Da nossa parte está a correr tudo bem”, diz o director, Manuel Cabeça. Foi autorizado a avançar com um ajuste directo enquanto decorre o concurso público. Os alunos começaram a vir à escola dia 21, um pouco depois dos outros, que começaram dia 17.

Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Directores de Agrupamentos de Escolas Públicas, lembra a importância da escola para estas crianças. Os mais novos precisam ainda mais do ensino presencial do que os outros. E, por isso mesmo, têm prioridade nas frequências. No Agrupamento de Escolas Dr. Costa Mato, em Vila Nova de Gaia, diz, a autorização da direcção-geral chegou antes do início do ano lectivo e os sete alunos que precisam de transporte contaram com isso desde o primeiro dia. “São processos burocráticos e morosos.”

Complexidade varia conforme verba em jogo

Os processos têm uma complexidade variada, consoante os montantes em causa. Alguns são tão avultados que as autorizações têm de passar pelo Ministério das Finanças. Veja-se a portaria de Finanças e Educação referente ao ano lectivo 2019-2020. No ano 2019: 125 mil euros ao AE D. Maria II (Braga), 98 mil ao AE Eugénio de Andrade (Porto), 77 mil ao AE de Maximinos (Braga), 109 mil ao AE Terras de Larus (Seixal) e 109 mil ao AE Quinta de Marrocos (Lisboa). No ano de 2020: 198 mil, 195 mil, 116 mil, 170 mil, 167 mil, respectivamente. A portaria deste ano ainda não foi publicada. Só quinta-feira ficou concluída.

Agora, em termos comparativos, atenda-se ao exemplo do município da Nazaré. Tinha de contratar transporte para dois alunos da Escola Básica e Secundária Amadeu Gaudêncio. Ao que se lê na acta da reunião de câmara de 24 de Agosto deste ano, contratou o mesmo táxi do ano anterior para um circuito que inclui Famalicão e Serra da Pescaria, num total de 6880 euros para o ano lectivo 2020/2021.

Nos últimos dias, além do AE de Águas Santas, do AE Escolas Quinta de Marrocos e do AE Manuel Ferreira Patrício, o PÚBLICO questionou o AE D. Maria II (Braga), o AE Eugénio de Andrade (Porto), o AE de Maximinos (Braga), o AE Terras de Larus (Seixal), o AE de Queluz (Sintra), o AE de Pedome, o AE Diogo Cão. Está a contactar AE de Real (Braga) e AE Alberto Sampaio (Braga), AE de Vila Verde.

Fonte: Público

A elite e os pais radicais (2)

Uma leitora enviou um email a criticar a nova disciplina de Cidadania. Quem tivesse chegado de Marte e o lesse, ficaria alarmado. Escreve a leitora que não vai “deixar os filhos aprenderem na escola quantas posições existem para fornicar!!!”. No planeta Terra, ensinam coisas estranhas na escola.

Na mensagem, a leitora explica que não vive “de acordo com os instintos animais básicos” ou “instintos fisiológicos” e por isso não pode concordar com os conteúdos da disciplina. É preciso pôr o cinto de segurança. Fornicar? Instintos fisiológicos? A leitora está a falar de quê?

Ela explica: da “pouca vergonha” que se passa nas escolas portuguesas, da “escalada de degradação moral” da sociedade, da “inversão de valores”. O problema é de tal ordem que — escreve — “qualquer dia” as prisões vão estar “cheias de gente honesta e os ladrões todos cá fora!”.

Passei os últimos dias a tentar perceber o que perturba a franja da sociedade portuguesa mobilizada na campanha “Deixem as crianças em paz”, cuja hashtag tem “pegada” nos ultra-conservadores brasileiros. Falei com padres, professores, enfermeiros, pais e adolescentes, uma pequena amostra de terrestres, uns liberais, outros conservadores.

O que há de tão horrível no programa da disciplina de Cidadania que leva cidadãos a dizer publicamente que “deviam era partir as pernas” ao secretário de Estado da Educação João Costa?

Ouvi falar do “kit de educação sexual” e dos “pénis de esferovite” em tempos usados nas escolas públicas pela Associação para o Planeamento da Família — em particular nos anos da crise do HIV e da sida, quando o Estado percebeu que os adolescentes tinham relações sexuais desprotegidas e não sabiam pôr preservativos. Percebi também que, à excepção de algumas escolas estrangeiras, esses “kits” desapareceram das escolas portuguesas há mais de dez anos. A directora de uma escola, professora há 40 anos, nunca viu nenhum. “Educação sexual não é falar de sexo. Para palhaçadas não contem comigo!”

Percebi também que é tudo superficial e que os temas da Cidadania são tratados pela rama. Seria difícil de outro modo. A lei prevê seis horas por ano de Cidadania e Desenvolvimento para o 1.º e o 2.º ciclos e 12 horas por ano para o 3.º ciclo — os adolescentes dos 15 aos 18 anos. Sublinho que é por ano. Uma vez que a disciplina tem seis temas obrigatórios a todas as idades — direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, educação ambiental e saúde —, mais 11 temas para os mais velhos (sexualidade, media, participação democrática, literacia financeira, segurança rodoviária, empreendedorismo, etc), estamos a falar do quê? De uma lavagem ao cérebro?

Sim, dirão, seis horas são muitas horas quando as crianças são esponjas. “Há ideias que estão a ser ditas nas escolas que podem perturbar a construção da identidade das crianças”, disse-me uma mãe. Fico a pensar: que ideia ou frase diabólica pode ser tão nociva na formação de uma criança? Que casos são esses? Que exemplos há? Tudo converge no bicho-papão da sexualidade.

O sexo é a coisa mais falada, mais escrita e mais vista desde que há registos humanos. Já leram a Bíblia, cheia de histórias de incesto, adultério e poligamia? Já viram a sinalética de Pompeia? No sexo, é tudo mais ou menos igual desde sempre. Só os tabus mudam.

Agora que começou a quebrar-se o tabu da homossexualidade — até na Igreja Católica e no CDS se aceitam os gays que se enchem de coragem e assumem a sua identidade sexual — o novo tabu é a identidade de género. Chamam-lhe “ideologia do género”, “marxismo do género” ou “sistema soviético de educação”, tentando dar ao assunto um carácter autoritário e anti-democrático.

Dizem estes pais que devemos aceitar a diferença, mas não podemos perturbar as crianças sobre quem elas são. Se nasce rapaz é rapaz, se nasce rapariga, é rapariga. A escola não deve dar ideias. Mas algum adolescente vai decidir que é gay ou bi ou trans porque ouviu umas frases nas aulas de Cidadania que o deixaram baralhado? Alguém acredita que, mesmo hoje quando se celebra a diferença, é fácil a um adolescente afirmar-se no mundo — em casa, na rua, na escola — como diferente da maioria?

Curioso, pensarão os marcianos. Onde estava a ira destes pais nas décadas e décadas em que a regra — a ideologia, a filosofia, a teoria, o sistema — obrigava os adolescentes a esconder que eram gays? Há politicamente correcto insuportável, há activismo histérico, há revisionismo chocante. Mudaram o nome de um edifício da Universidade de Edimburgo porque o que tinha era de um homem que, no século XVIII, defendeu ideias racistas. Por acaso era David Hume, pouco importa que seja um dos mais brilhantes pensadores do iluminismo. Paz à sua alma, de qualquer modo era um ateu, tanto lhe faz.

As crianças levam a sério o que dizem os professores ou outros adultos convidados para vir à escola. É um absurdo um adulto dizer “vocês ainda não sabem se são menino ou menina” a crianças de seis anos. Mas terá sido isso que lhes foi dito? E, se sim, isso aconteceu uma vez numa escola, uma das cinco mil escolas de Portugal, ou é a regra?

Os professores são um espelho da sociedade: religiosos e ateus, gostam ou não de telenovelas, lêem muito, pouco ou nada, acham que “no tempo de Salazar é que era bom” ou detestam o Estado Novo. Às vezes, propõem ideias absurdas, nas aulas, nas reuniões, no recreio. E cá está a família para as desmontar.

Bárbara Reis

Fonte: Público

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

O que mais contribui para o desempenho dos alunos?

O estudo “Desempenho e Equidade: Uma análise comparada a partir dos estudos internacionais TIMMS e PIRLS”, publicado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), identifica uma série de fatores que poderão explicar o desempenho dos alunos e permite perceber em que medida esses aspetos são promotores de igualdade de oportunidades no acesso à Educação. O capital familiar e a frequência do pré-escolar têm um impacto expressivo no desempenho escolar. Segurança, organização, disciplina e ênfase no sucesso, por parte das escolas, são também aspetos importantes e que assumem até “um papel relevante na atenuação do efeito do estatuto socioeconómico das famílias no acesso à Educação”.
O documento tem por base os resultados dos estudos internacionais TIMSS (Trends in International Mathematic and Science Study) e PIRLS (Progress in International Reading Literacy Study) que avaliam conhecimentos em Leitura, Matemática e Ciências dos alunos do 4.º ano de escolaridade. O estudo do CNE focou-se no TIMSS de 2015 e no PIRLS de 2016 e foram analisados dados de 11 países europeus – Portugal, Finlândia, Noruega, Holanda, Polónia, Alemanha, Eslováquia, Espanha, Itália, França, Irlanda. O capital familiar para a aprendizagem e a composição social das escolas são duas variáveis de peso.

Relativamente aos alunos portugueses, os resultados indicam que a confiança que os estudantes depositam no seu desempenho, os recursos que as suas famílias proporcionam e as competências de literacia e de numeracia que adquirem antes do início da escolaridade, são os aspetos com maior impacto. O sentido de pertença à escola, a frequência de programas de educação e cuidados para a primeira infância tiveram igualmente impacto, mas de uma forma menos relevante. Ao nível da escola, a ênfase no sucesso, a segurança, a organização e a disciplina são as variáveis que se destacam na explicação dos desempenhos em Leitura. Tanto em Matemática como em Ciências, o capital familiar médio é o melhor preditor da variação dos resultados dos alunos.

O estudo revela que alunos com origem em famílias com elevado capital familiar têm melhores desempenhos do que os alunos com origem em famílias com menos recursos económicos e sociais. “O capital familiar é um preditor relevante dos resultados dos alunos nos três domínios para todos os países considerados no estudo”. O nível de escolaridade dos pais e a sua qualificação profissional, assim como os recursos que existem em casa – ter um quarto para estudar, acesso à Internet, livros infantis, por exemplo – têm impacto no desempenho escolar.

Em Portugal, os alunos com mais recursos registam, em média, mais 58 pontos na avaliação em Matemática, 47 em Leitura e 44 em Ciências, comparativamente com os que têm menos recursos. Na Holanda, Finlândia e Noruega, os alunos com mais e com menos recursos apresentam diferenças de pontuação menos acentuadas.

Quanto melhor os alunos dominam ferramentas básicas de literacia e de numeracia antes de iniciarem a escolaridade, maior é a probabilidade de terem bons desempenhos a Leitura, Matemática e Ciências no 4.º ano. Em todos os países, os alunos com elevado domínio destas competências estão mais representados em famílias com mais recursos para a aprendizagem e são também os que apresentam pontuações médias mais elevadas.

A frequência mais prolongada de programas de educação e cuidados na primeira infância, ou o desenvolvimento de atividades de literacia e de numeracia promovidas pelos pais nessa altura da vida dos filhos, também são preditores importantes. Uma frequência mais prolongada tem um impacto positivo e significativo nos resultados alcançados em todos os domínios avaliados. E é mais relevante para os alunos de famílias com menos recursos. As atividades de literacia e de numeracia apresentam igualmente uma relação positiva e significativa com o sucesso escolar alcançado em fases posteriores da escolaridade.

Mais acompanhamento, mais suporte emocional

Os alunos que referem ter mais confiança nas suas competências são os que alcançam, em média, melhores resultados nos três domínios avaliados. Em todos os países, os que garantem ter mais confiança nas suas competências são os que alcançam, em média, melhores resultados. Em Portugal, um aluno “muito confiante” obtém mais 95 pontos em Matemática do que um “não confiante”, sendo o país com o efeito de maior magnitude no conjunto dos países considerados.

“Os alunos com mais confiança no seu desempenho pertencem maioritariamente a famílias com mais recursos para a aprendizagem, o que poderá significar não só um apoio dos pais no acompanhamento do estudo, mas também um maior suporte emocional”, lê-se no estudo. No nosso país, os alunos com “muita confiança” no seu desempenho e com acesso a “muitos recursos” obtiveram mais 35 pontos acima da pontuação dos alunos com “muita confiança”, mas com “poucos ou alguns recursos”. Aliás, Portugal apresenta a percentagem mais elevada de alunos provenientes de escolas de meios maioritariamente desfavorecidos que consegue alcançar, em todos os domínios, pontuações acima da média internacional.

“Os resultados alcançados pelos alunos portugueses, quando comparados com os dos outros países, sugerem uma boa capacidade do sistema de ensino para reduzir as diferenças decorrentes de contextos socioeconómicos distintos”. É um dado importante de igualdade de oportunidades no acesso à Educação. Do conjunto de fatores que caracterizam a escola, a ênfase no sucesso, a segurança, a organização e os problemas de disciplina são os que se apresentam como mais relevantes na variação de resultados dos alunos portugueses.

Os alunos que frequentam escolas mais orientadas para o sucesso escolar obtêm melhores desempenhos. Portugal encontra-se entre os países que registam percentagens mais baixas de alunos em escolas orientadas para o sucesso, ou seja, pouco mais de metade frequenta escolas mais direcionadas para este objetivo. Em todos os países, verifica-se que os alunos que frequentam escolas que atribuem maior ênfase ao sucesso escolar estão mais representados em estabelecimentos de ensino com uma população de meios socioeconómicos mais favorecidos. Em Portugal, 79% dos alunos de meios mais favorecidos e apenas 41% de meios mais desfavorecidos frequentam escolas que se encontram nessa categoria.

Segurança, organização, disciplina

O clima escolar é um fator importante. O indicador escola segura e organizada mostra uma associação positiva com o desempenho dos alunos, embora o efeito não seja significativo em todos os domínios e países analisados. Portugal, ao contrário da maioria, apresenta diferenças de pontuação média muito pouco expressivas entre as três categorias que classificam as escolas em termos de segurança e organização.

Os alunos que frequentam escolas “muito seguras e organizadas” estão mais representados em meios socioeconómicos favorecidos. À exceção da Polónia, os que frequentam esse tipo de escolas estão mais representados em meios socioeconómicos favorecidos. Em Portugal, no entanto, os que estão em escolas seguras e organizadas estão representados de forma equilibrada nos dois grupos. No que respeita à disciplina, os resultados mostram, na sua generalidade, um efeito positivo da ocorrência de “quase nenhum problema” de disciplina no desempenho dos alunos, o que quer dizer que se preveem melhores resultados em escolas com reduzidos problemas desta natureza. Em Portugal, o indicador “problemas de disciplina” revela apenas ser bom preditor dos desempenhos em Leitura.

Ainda que a escassez de recursos para o ensino não tenha um efeito relevante na explicação do desempenho escolar, quando se considera exclusivamente os alunos que frequentaram escolas onde o ensino é “afetado ou muito afetado” por essa falta de meios, verifica-se que estas estão mais representadas no grupo das situadas em meios socioeconómicos mais desfavorecidos.

Em Portugal, os alunos de escolas em que o ensino é “afetado ou muito afetado” representaram 82% do conjunto com uma população de meios desfavorecidos e apenas 52% inseria-se no grupo das escolas de meios mais favorecidos. Itália, França e Espanha foram, juntamente com Portugal, os países que registaram percentagens mais elevadas de alunos que frequentaram escolas com escassez de recursos em contextos económicos e sociais mais desfavorecidos.

Na generalidade, os alunos que frequentaram escolas onde os diretores reportaram “problemas moderados a graves” tiveram, tendencialmente, piores desempenhos do que os que frequentaram escolas com “quase nenhum problema” ou com “pequenos problemas” de disciplina. Em Portugal, os alunos que “quase nunca” se confrontaram com este tipo de problemas tiveram, em média, mais 25 pontos em Leitura, 26 em Matemática e 17 em Ciências, do que aqueles que se confrontaram “semanalmente”.

Fonte: Educare

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Formação “O Docente de educação especial na promoção da Educação Inclusiva”

Dando continuidade às atividades desenvolvidas pela Direção-Geral da Educação, no âmbito da formação, vai mais uma vez esta Direção-Geral, com o apoio do POCH, promover um curso de formação para docentes de educação especial.

Este curso de formação, acreditado pelo CCPFC, tem a duração de 25H e o regime de frequência será a distância síncrono.

Este curso de formação terá início durante o mês de outubro de 2020, pelo que se sugere o registo prévio no Portal da Formação da DGE, caso ainda não se encontre registado/a, em: http://formacao.dge.min-educ.pt

A seleção dos/as candidatos/as será feita de acordo com a ordem de inscrição e terá em consideração a localidade do agrupamento/escola onde exerce funções.

Oportunamente serão dadas mais informações relativas ao processo de inscrição de candidatos à frequência da formação.

Fonte: DGE

“Cidadania está a ser alvo de campanha de movimentos extremistas”


Desde 12 de março que não tem um dia de folga. Mas é assim porque aceitou ser ministro da Educação por um “sentido de missão”. Todos os dias tem saudades da sua “bata” de cientista, mas não exclui um terceiro mandato. A “Notícias Magazine” entrevistou Tiago Brandão Rodrigues na Escola Básica de Gueifães, na Maia. Após uma visita ao estabelecimento liderada pelo presidente da República. Visivelmente cansado, só retirou a máscara para falar ao final do dia para as câmaras e microfones. As escolas estão preparadas para o ano letivo, garante. E a Educação não só conseguiu superar o ensino à distância imposto pela pandemia como irá beneficiar da “bazuca” que o país irá receber por causa do impacto do surto epidemiológico. Aos 43 anos, falou de si, dos seus e de mudanças que deseja cumprir. Numa sala de aula afastámos as mesas para conversarmos com distanciamento. No final, já noite, despediu-se das duas assistentes operacionais que aguardaram pacientemente pelo fim da entrevista para fechar a escola, tratando-as pelo nome – D. Fátima e D. Alzira sorriram-lhe e também lhe garantiram: “Vai correr tudo bem”.

Alunos de uma turma que forem para casa em isolamento profilático vão ter aulas à distância?
Quem determina o isolamento profilático são as autoridades de saúde. Na possibilidade de um aluno, dois ou uma turma terem de passar algum período em casa, os 14 dias do isolamento profilático, ou mais algum tempo, obviamente que teremos todos os mecanismos para que esse ensino à distância se possa fazer.

São os professores da turma que vão dar esse apoio à distância?
À partida serão os mesmos professores, como no passado, mas quem tem autonomia para tomar esse tipo de decisões é a escola. Imaginemos que uma turma vai para casa três ou quatro dias, como já aconteceu nalgumas escolas, por o delegado de saúde entender que não há necessidade de isolamento profilático, provavelmente nesses dias pode haver trabalho autónomo por parte dos alunos ou também sessões síncronas. Importante é que possa haver um seguimento e que o retorno à escola possa ser o mais rápido possível.

Está previsto professores e alunos fazerem testes antes desse retorno?
A abordagem de testagem é definida pelas autoridades de saúde. Em maio e junho, houve casos positivos, mas a grande maioria, se não a totalidade, foram fora do ambiente escolar. O que queremos é que todas as estratégias e medidas médicas sejam feitas o mais rapidamente possível para que efetivamente quem teste negativo depois de um período ou não de isolamento profilático possa voltar rapidamente à escola – esse é o grande objetivo.

O kit de máscaras será renovado no 2.º período?
Claro. Em maio e junho distribuímos com a ajuda das Forças Armadas máscaras cirúrgicas porque na altura não existiam máscaras comunitárias no mercado. Agora, as escolas compraram localmente com determinadas regras de certificação: são três máscaras comunitárias com 25 lavagens pelo menos. Depois será distribuído orçamento pelas escolas para comprarem para o 2.º e para o 3.º período. Foram gastos sete milhões para o 1.º período. Além de máscaras foram adquiridas viseiras, máscaras transparentes, batas plásticas reutilizáveis, luvas e o álcool-gel que já faz parte da vida de todos nós e que vemos nas escolas praticamente em todas as esquinas.

Os clubes de artes, desportivos ou de ciências, uma vez que juntam alunos de diversas turmas, vão funcionar este ano?
As escolas têm livre arbítrio de construir o seu projeto pedagógico. Mas vejamos o que vai acontecer na Educação Física, estive em duas escolas onde foi explicado que vai haver o distanciamento normal, simulação de treino e treino condicionado. Obviamente que não podemos pensar na atividade física tal como ela acontecia até agora, mas o mais importante é que ela aconteça. As escolas têm nos seus planos de contingência formas de manter as bolhas para que possam existir as disciplinas que não têm tantos alunos.

E o Desporto Escolar?
Estão em preparação um conjunto de regras para que possa acontecer. Nunca poderemos em contexto escolar exceder o que acontece na sociedade, mas seria estranho e ninguém entenderia se aquilo que acontece na sociedade não fosse acompanhado pelas nossas escolas.

Os clubes de formação estão asfixiados financeiramente. Está preocupado? Será criada alguma medida de apoio?
É fundamental que a atividade desportiva, também competitiva, possa acontecer. Temos trabalhado com a Direção-Geral da Saúde, com as federações desportivas, com o Comité Olímpico, com a Confederação de Desportos de Portugal para poder dar passos no sentido de ir ajustando e abrindo esta retoma. O facto de poderem treinar significa que a prática regular dos clubes pode acontecer.

Os exames do Secundário vão manter o mesmo modelo de perguntas obrigatórias e opcionais no próximo ano?
Muitos países não fizeram acesso ao Ensino Superior (França, Reino Unido, Suíça), outros como Espanha ou Itália fizeram passagens administrativas. Em Portugal, entendeu-se, pelo menos, manter a espinha dorsal do acesso. Naturalmente a avaliação externa do próximo ano vai estar necessariamente ligada às aprendizagens essenciais, tanto exames como provas de aferição. É a forma de criar justiça sobre o que vai ser ensinado neste próximo ano.

Mas o modelo vai ser mantido?
Temos de entender o que vai acontecer ao longo do ano, mas necessariamente teremos de ter na avaliação externa um foco essencial nas aprendizagens essenciais, isso é que é o mais importante.

O Ministério anunciou em abril que iria fazer um levantamento do número de alunos sem computador ou acesso à Internet em casa. Quais foram os resultados desse inquérito?
As escolas conhecem esse universo. O PS tinha a universalização do acesso no programa eleitoral, o Ministério na preparação deste programa de Governo pôde incluir essa estratégia para esta legislatura. Com a chegada da pandemia todos entendemos que era necessário acelerar o processo. O Governo está a trabalhar para que todos os alunos da escolaridade obrigatória nas nossas escolas públicas possam ter um computador e acesso à Internet. Esse processo já se iniciou e durante 1.º período vamos ter a distribuição de 100 mil computadores com conectividade, a começar pelos alunos da Ação Social Escolar. A escola digital é muito mais do que a existência de máquinas e conectividade, está associada à formação de docentes e também à desmaterialização dos manuais escolares, muito importante para que possamos fazer essa transição. É importante dizer que ao longo dos últimos meses muitos computadores foram distribuídos pelos nossos alunos, pela sociedade civil, alguns pelas autarquias, que terão agora algum ressarcimento desse esforço que fizeram através de fundos comunitários.

O primeiro-ministro prometeu essa universidade de equipamentos e acesso no arranque do ano letivo. O que falhou?
Mais importante é irmos fazendo chegar às escolas esses computadores. Nunca voltaremos à situação em que estivemos no dia 16 de março. Os constrangimentos de acesso são evidentes. Neste momento, metade do Mundo pensa adquirir computadores para os sistemas educativos ou para poder fomentar que o teletrabalho exista efetivamente, o que leva a uma batalha pelo mercado dos computadores, mas isso não nos enfraqueceu de podermos chegar às escolas nos tempos vindouros para que os nossos alunos e professores possam ter acesso. Volto a dizer: a escola digital é muito mais do que a existência de um computador que tem uma câmara, um microfone e altifalantes para poder comunicar com as pessoas, sendo isso também importante nesta altura.

Cidadania e Desenvolvimento vai manter-se como disciplina obrigatória do 5.º ao 9.º ano? Admite rever partes do currículo?
É preciso dizer antes que a disciplina já existia nos governos liderados por Pedro Passos Coelho. O que posso dizer é que nunca como hoje foi tão premente e necessário haver uma verdadeira Educação para a Cidadania. Quando temos um referencial relacionado com a Saúde e entendemos bem que a literacia para a saúde pode ser a salvação de toda uma sociedade, quando temos um referencial para o risco que ajuda as nossas crianças e jovens a entenderem os riscos associados aos maremotos, à erosão da costa ou aos incêndios florestais. Obviamente que o livre arbítrio das famílias continua a existir, mas não podemos enquanto sociedade demitirmo-nos. Depois, existem tratados globais, como os que abordam os direitos humanos ou das crianças, que não são nem referendáveis, nem opcionais. São um compromisso do estado democrático e de direito em que vivemos e como sociedade só podemos dizer que sim. Vacilar e pensar que podemos dizer que não, significa vacilar como civilização, isso não tenho dúvida nenhuma.

Estes dois alunos, cujo pai alegou objeção de consciência para eles não frequentarem essas aulas, estão a ser punidos?
Esta discussão não é sobre estes dois alunos. Infelizmente, uma parte da sociedade portuguesa que se tem demonstrado reacionária tem tido nos últimos anos uma agenda bem clara para instrumentalizar algo importante que é a Educação para a Cidadania, para fazer uma certa dialética política, não digo partidária, que vai alimentando extremismos, que vai alimentando facetas da nossa sociedade que vão singrando noutros países. Basta olhar para o que se passa no outro lado do grande charco tanto a norte como a sul, para entendermos que também foi por aí que principalmente tudo começou com o movimento “deixem as nossas crianças em paz” e com a ideia de que a escola única e simplesmente existe para ministrar um conjunto de conteúdos e que a cidadania não parte da escola. Tendo de partir necessariamente também das famílias.

A disciplina está a ser alvo de uma campanha?
Se nos lembrarmos do que se passou no ano passado com as casas de banho, se nos lembramos das questões ligadas com a interculturalidade ou polémicas que aparentemente surgem do nada, entendemos que basicamente a instrumentalização da Educação para a Cidadania e desta disciplina em concreto, Cidadania e Desenvolvimento, mostra que o que está por trás de tudo isso é uma outra campanha de criação de movimentos extremistas que acabam por mostrar que têm outro tipo de agendas para uma sociedade que não é claramente a sociedade que eu quero.

Por que razão o Ministério demorou dois anos a decidir?
Quero dizer algo de forma muito inequívoca: não há, nem nunca houve ou haverá qualquer intenção de penalizar estes alunos de forma concreta, assim como nunca houve, há ou haverá de menosprezar uma das nossas facetas curriculares. Cidadania e Desenvolvimento é uma disciplina de corpo inteiro. O que o Ministério fez foi auxiliar as decisões da escola quando a escola assim o quis. O sucesso escolar e a equidade do nosso sistema educativo são absolutamente centrais para todas as crianças, incluindo estas.

O próximo Orçamento será reforçado?
Pudemos reverter os cortes sofridos durante a troika e nestes últimos quatro, cinco anos tivemos um aumento de quase mil milhões de euros. O robustecimento gradual tem sido feito em apostas claras como a Educação Inclusiva ou o Pré-Escolar. Por outro lado, a vinculação de todos estes trabalhadores tem um custo associado. Também temos tido uma aposta clara, através dos quadros de financiamento plurianual, no Ensino Profissional e vêm aí novos instrumentos.

Quais?
Teremos um novo quadro de financiamento plurianual com novas prioridades, mas também teremos este instrumento de resiliência e recuperação que só existe porque temos esta pandemia. A bazuca no caso da Educação vai ser uma forte aposta no Ensino Profissional. Sabemos bem que o Ensino Profissional se tem demonstrado, tanto em Portugal como no resto do Mundo, o principal motor do sistema educativo, mas também do sistema de emprego, empresarial e da melhoria da nossa administração pública. Neste momento, 43% dos alunos terminam o Secundário por esta via, mas temos o objetivo de chegar aos 50%. É importante fazermos esta modernização da oferta e correspondermos ao que a indústria, nomeadamente a indústria 4.0, nos pede: cursos de robótica, eletrónica, inteligência artificial ou gestão de dados, por exemplo. Áreas que nesta pandemia acabaram por ter uma preponderância cimeira. A bazuca também vai fazer uma forte aposta na contratação de formadores especializados, na reciclagem em termos de literacia do próprio corpo docente e ainda na modernização dos equipamentos das escolas.

Essa bazuca já tem um valor?
Terá de ser suficientemente robusto e quero acreditar que vamos poder alocar mais de 500 milhões de euros para que o Ensino Profissional possa dar um salto de qualidade na oferta e termos um verdadeiro sistema de antecipação das necessidades para formar mais rápido e melhor. Esta é uma mudança absolutamente sistémica, que vai ter consequências imediatas no emprego, por estes cursos terem alta taxa de empregabilidade, não estamos a falar em aumentar a oferta em dez cursos aqui e 20 cursos ali.

Tem outras prioridades em termos de investimento?
A escola digital é um grande investimento que terá de ser continuado, mas existem outros programas que têm de ter prioridade. Há portugueses que ficaram sempre para trás. Os inquéritos que se fizeram em 2017 demonstraram que cerca de 300 mil não têm nenhum tipo de qualificação, nem nenhum tipo de numeracia e literacia básica. Obviamente que isto não permite nenhum processo de inclusão e vamos lançar um programa nacional de literacia para adultos.

Qual é a vossa meta?
Era muito importante que este programa chegasse a 50 mil pessoas até 2025. É audaz, mas falamos de literacia digital quando estas pessoas não têm literacia suficiente para digitar um número de telemóvel. E nem todos são idosos.

Factos são a matéria-prima da ciência. A política vive muitas vezes de meias verdades. Como é que o cientista se adaptou à política?
É verdade que a ciência vive de factos e que vive sobretudo da verdade. Também é verdade que as meias-verdades, em regra, revestem-se de inverdade. Ora a política não pode deixar de viver de factos nem da verdade, sob pena de estarmos a falar de um sucedâneo da política, não da ferramenta das grandes realizações que queremos que seja. Por isso, e por muito que tenha de usar a gravata, não dispo completamente a bata que fez de mim cidadão pleno e que me deu tanto.

Tem saudades da bata?
Todos os dias. E continuarei a ter. É uma porta que um dia poderá reabrir-se, quando deixar a política. Ainda que nem sempre se abram as portas mais expectáveis.

Trocou uma carreira sólida e reconhecida na investigação por uma pasta muito complicada. O que o fez decidir? O que trouxe de novo à política?
Não quero esquecer nunca o momento em que tomei a decisão. Tinha todos os graus de liberdade para continuar na minha ciência. Era feliz, realizado, fazia coisas consideravelmente importantes, era reconhecido e vivia em Cambridge, cidade de que verdadeiramente gosto. Mas tendo todos os graus de liberdade para dizer que não, disse que sim. Trouxe-me aqui um sentido de missão. Penso que trouxe para a política uma certa forma de viver essa missão – com o coração e o cérebro, 24 horas por dia, sete dias por semana e 365 dias por ano.

Está disponível para um terceiro mandato?
A renovação para um segundo mandato demonstrou que há pelo lado do primeiro-ministro confiança no trabalho do Ministério. Pela minha parte, que se mantém o compromisso com a continuidade da missão. Quem aceita a primeira pode ir ao engano. Quem aceita a segunda vez já não vai engano. Em situações extremas pode até dizer-se que ou é louco ou está apaixonado pelo que faz.

Também se diz que não há duas sem três.
(sorri) Na minha vida, olho sobretudo para o horizonte. Neste momento, estou comprometido com este governo constitucional e com o primeiro-ministro, que é o responsável por eu aqui estar. E estou também comprometido comigo e em continuar desta forma abnegada. Ser ministro da Educação, pelo menos como eu o entendo, implica abnegação. De manhã, à tarde, à noite, de madrugada.

De um a vinte, que nota dá o ministro ao ministro?
Não dou notas a mim mesmo e tenho o cuidado de não dar notas aos outros. Quem tem de me classificar são os outros. Nas áreas que tutelo, espero que entre todos possamos construir as bases que permitam mais resistência e resiliência, sobretudo em momentos como este, em que a sociedade e o mundo das liberdades precisam de robustez.

O que imagina que pensam de si os alunos?
Muitos dos alunos identificam-me como alguém jovial e novo, uma imagem que lhes é estranha tratando-se de um decisor político. Entre nós, a ligação é automática, também porque nas visitas a escolas comporto-me como em casa – de uma maneira natural. Oiço dezenas de vezes “Olha o Tiago” ou “Olha o ministro Tiago”. É algo que nunca entendi como desrespeitoso, mas como uma necessidade desses alunos fazerem pontes comigo. Independentemente de terem 9, 12 ou 14 anos, sinto que lhes inspiro familiaridade.

E o que pensam de si os pais?
Tento chegar às pessoas, transmitir-lhes confiança, segurança, num momento como este e, sobretudo, fazer pontes com os vários grupos que fazem parte do sistema educativo. Entender o que cada pessoa pensa de mim não é algo que me mova. Mas espero que quando me ouvem na televisão, quando acabam por usufruir das nossas políticas públicas, como é a gratuitidade dos manuais escolares, por exemplo, sintam que no meu lugar está alguém que lidera uma equipa de quase 150 pessoas empenhada diariamente de forma abnegada, para que em casa possam sonhar que os filhos terão as oportunidades que eles não tiveram.

Fazer pontes implica diplomacia. É uma pessoa de pontes?
Faço pontes, tento destruir muros e sempre que foi preciso chegar mais rápido ao outro lado até fiz túneis.

E quando é que não faz pontes?
Quando vejo que do outro lado há quem tenta dinamitar, de forma reiterada, as fundações que tento construir. Nesses casos, tento outra estratégia.

Por exemplo?
Acontece todos os dias. No Governo, quando com colegas tento pontes para que trabalhemos em conjunto, com os atores da educação e com todos aqueles que tento cativar nacional ou internacionalmente. Por vezes é mais fácil; por vezes mais difícil. Mas é importante mostrar sempre que acreditamos no que estamos a fazer.

Que peso político tem um ministro jovem, sem história na política e no partido, nem força do aparelho partidário?
E até acrescento: o mais jovem de sempre a chegar à cadeira, o mais jovem daquele Governo, alguém que não faz parte da máquina embora próximo do PS, um estrangeirado, 16 anos de ausência, estigma para uma certa sociedade portuguesa burguesa e intelectual, alguém fora da caixa e das políticas públicas da educação. Bastava apenas uma destas alíneas para não ter dado o passo que dei. Apesar de todas essas condicionantes, aqui estou. O tempo que tenho no cargo é a exata medida do meu peso político. Que representa tudo ou nada.

Como é a relação com António Costa?
É próxima porque ele é um homem próximo.

Quão próxima?
Tenho por António Costa uma admiração real e concreta. Soube sempre confiar em mim e eu sei, desde o primeiro momento, que tenho de e quero confiar nele. Tomei a decisão de deixar a minha vida porque António Costa me disse que contava comigo. E senti nesse momento que era verdade.

Concorda com o endosso que António Costa fez a Luís Filipe Vieira?
Esta é a primeira pergunta de toda esta entrevista a que não vou responder.

Referiu “o espírito de missão”. Que marca gostaria de deixar?
Nunca tive o ímpeto de deixar marca de autor no ministério de Educação. Seria começar pelo telhado. Em políticas públicas, as marcas resultam de forma natural do processo contrário. É muito ingrato o mundo da educação. As mudanças notam-se a dez, vinte anos, e com a sucessão de governos e de políticas, com os constrangimentos e contingências da economia e no emprego, acabam por não ser mensuráveis. Apesar de ingrato é, porém, importante que continuemos a trabalhar, a alimentar esta frase, que diz tanto do que queremos: um sistema educativo que trabalhe para o sucesso educativo de todos, com equidade para todos. Esse é o maior desafio. Durante muito tempo, o nosso sistema educativo permitiu que alguns de nós ficassem para trás. Que ninguém fique para trás é a grande mudança.

A pandemia trouxe à tona desigualdades que desconhecia?
As desigualdades estão diariamente à vista de todos os operadores. São conhecidas. A pandemia agudizou e exponenciou as que já existiam.

Receia que o abandono escolar possa aumentar?
Esperamos que não. De acordo com os dados do segundo trimestre de 2020, alcançámos os 10% que tínhamos contratualizado com a Europa. Mas nenhum de nós pode descansar. Quando algo não lhes corre bem na prática desportiva e escolar, os jovens são candidatos ao abandono. Temos de colocar em campo todas as ferramentas para que tal não aconteça. Esta pandemia veio reforçar e demonstrar às famílias a importância da escola. Quando a 12 de março afirmei em conferência de imprensa que ninguém ia ficar para trás, nem ninguém estava de férias, fui muito criticado. Um mês depois, havia um coro a dizer o mesmo. Não deixar ninguém para trás pode ser considerado um chavão. Nesse caso, viva os chavões.

Quem o conheceu em Coimbra fala de um estudante “à esquerda da esquerda”. Ideologicamente, onde se situa?
Sempre fui e quis ser um homem de esquerda. Sempre entendi o que implicava – o compromisso com um conjunto de preocupações e até de orientações para a nossa vida. Continuo a ser o mesmo homem necessariamente muito à esquerda que viveu em Coimbra. É aí que me sinto.

“Muito à esquerda”?
Muito à esquerda. Mas acho que o Partido Socialista, na sua essência, e o socialismo, na sua essência, são de certa forma uma maneira de viver à esquerda.

De que maneira reage à critica alguém que foi consensual como investigador e está agora num ministério que gera tantos inimigos?
Quando se faz investigação tem-se o livre arbítrio de mostrar só o que corre bem. Na política, não temos essa possibilidade. No momento de escolha ninguém tem real consciência do que implica este cargo. Podemos ter consciência do que é a prática comum relativamente a titulares de cargos públicos desta natureza, mas pensamos que é com os outros, não é connosco. Muitos detratores acabam por vociferar o descontentamento, a agenda pessoal e das organizações que representam porque faz parte da cartilha e de um modo de atuar. Por vezes, tendo a entender essa forma de atuação como uma forma dialética de reivindicação, o que é sadio. Sendo que o vilipêndio não pode ser nunca uma forma de atuação.

Do que se tem dito sobre si o que mais lhe tem custado?
Terem posto em causa a minha carreira académica. Fizeram-no porque sabem que é a minha fundação mais forte. Contextualizando, percebe-se o ataque. A educação foi apelidada o cimento da geringonça. Eu tinha acabado de chegar, jovem e aparentemente periclitante, vinha sem experiência política, sem entorno partidário que me protegesse, podia bem ser o porta-aviões onde o torpedo cairia com maior intensidade. Nesses momentos, tudo vale. Coloca-se em causa o que é mais grato para as pessoas. É um vilipêndio atroz.

Como reage?
Com muita naturalidade. Ajuda muito ter uma muralha de aço nos que me são mais próximos – o meu gabinete, a minha equipa mais próxima, aqueles que trabalham comigo nas várias secretarias de Estado, os amigos e a família. E o espelho, porque o espelho nunca mente. Quando nos olhamos, percebemos quão reais ou irreais podem ser esses vilipêndios e se quem nos insulta o faz com bonomia ou fel.

Porém, há quem o descreva arrogante e com um “ego gigantesco”.
Não me identifico egocêntrico nem com uma estima de tal forma gigante que tenha dificuldade em lidar com o ego. O que eu tenho é muita dificuldade em colocar um limite aos limites que existem. E isso faz com que me empenhe e acredite verdadeiramente no que me comprometo. Característica pouco comum e na qual as pessoas, talvez por isso, veem laivos de arrogância. Não, são laivos de compromisso. Também a forma como me expresso, como falo, a expressão corporal, com um gesticular constante que advém de características próprias da minha vida, a assertividade e um sotaque muito marcado podem associar-me à arrogância e a uma atitude de ataque.

O que já aprendeu com a política?
Mais do que uma cartilha de novidades veio reafirmar que muitas das facetas positivas que temos na vida passada se mantêm úteis. Falar com transparência, criar relações de afetividade com as pessoas que me rodeiam, ser natural, enfim, características pouco associadas à vida política podem ajudar muito. Considero-me um normopata e é essa condição que tenho reafirmado no meu tempo político. As políticas não têm de ser feitas por pessoas diferentes. Têm de ser feitas por pessoas normais e quanto mais normais forem e mais facetas da vida anterior puderem trazer, melhor para o exercício político.

O sotaque é uma marca distintiva. E não parece minhoto. É um misto Viseu/Bragança.
Não me diga isso. Sou um alto minhoto de gema: digo “osjerres e osjolhosnosjolhos”. Ter crescido em Paredes de Coura até aos 14 anos, ter passado três anos em Braga, o tempo de Coimbra, mas, acima de tudo, ter crescido perto de Espanha e na presença muito forte do castelhano, deixou marcas no sotaque. Nunca me esforcei para me libertar dele nem para o marcar. Nunca insisti nem nunca o evitei.

Este sotaque tem custos para um ministro?
No início olhavam para mim com muita desconfiança. Depois do meu primeiro discurso no púlpito da Assembleia da República, já ministro, uma figura nacional, um intelectual que não vou nomear, enviou-me a seguinte SMS: “Ter um ministro da Educação em Portugal com tal sotaque é um avanço civilizacional para o nosso país”. Mais tarde, em conversa, disse-me que Portugal é muito normativo e centrado num sítio chamado Lisboa, cidade de que muito gosto e onde vivo, reconhecendo que temos um país bicéfalo – Lisboa e Porto nas suas idiossincrasias – e que tem em relação ao sotaque um entendimento muito diferente do que existe noutros países. Espanha, onde os sotaques são mais potenciados, ou Inglaterra, onde são até incrementados.

Em Portugal são um handicap?
Tenho a certeza absoluta de que são uma barreira. E que para ganhar credibilidade e afirmação temos primeiro de passar a barreira da desconfiança e descredibilidade. O sotaque da grande Lisboa é o normativo para atores nacionais e parte da opinião pública. De cada vez que digo Paredes de Coura as pessoas sabem que sou de Paredes de Coura. Não um sucedâneo de alguém que nasceu ali. E isso deixa marcas.

Há pouco atribuiu o hábito de gesticular a uma particularidade da vida. Penso que se referia à doença do pai, que a certa altura ficou afásico. Em que medida determinou a construção da sua personalidade?
O meu pai tinha 29 anos quando um AVC lhe deixou sequelas graves. Eu tinha 5 anos, o meu irmão meses, a minha mãe 27. Foi preciso reaprendermos a comunicar. Foi uma mudança radical. Uma terra pequena, onde todos se conhecem, alguém que é respeitado por todos perdeu a capacidade de comunicação e assim se manteve o resto da vida. Nós, os filhos, passamos a fazer esse relevo geracional. Passámos a conversar numa linguagem gestual não formal. Uma certeza tenho: sou como sou por ter tido alguém tão diferente no meu meio familiar mais íntimo. A minha atenção à diferença e o sentido da responsabilidade vêm daí. Com seis, sete anos, tinha de tratar de tudo. (comove-se)Tinha de ser capaz. Com seis, sete anos tratava de muitas coisas. Quem tem de lidar com situações extremas sabe que as crianças não podem ser tão crianças nesses momentos. As patifarias ou irreverências próprias da idade têm de transformar-se em responsabilidades.

A escolha de curso teve a ver com a circunstância familiar?
Sempre quis ser um homem das Ciências Naturais e de Biomedicina. Mas por vezes penso nisso. Se o meu percurso de vida e situação familiar não terão tido um papel nessa decisão.

A praia de Moledo do Minho é uma marca desses anos.
O meu pai trabalhava nas Finanças de Caminha e a minha mãe era professora do primeiro ciclo. Tínhamos lá uma casa que passámos a utilizar com frequência depois da doença do meu pai. Até lá, a família viajava muito pela Europa.

O que lhe disse a mãe professora quando foi convidado para ministro da Educação?
O que diz sempre – que o que eu decidir está bem decidido. Nunca me diria que discordava. Não estando sempre de acordo comigo, tenta algum distanciamento do ministro para não ter o distanciamento do filho. Acredito, no entanto, que a escola que temos feito está próxima da escola que ela sonhou. Sobretudo no que diz respeito à equidade.

Sendo frequentador assíduo do Festival de Paredes de Coura, como olha para os e feitos da pandemia nesses eventos?
Sou mais do que frequentador. Sou fruidor. E olho com muito custo. As pessoas dali têm no festival um porto de abrigo. É a ocasião fantástica para receber os amigos, mas sabemos que este é um ano atípico.

Um fruidor de festivais abstémio. É raro.
Talvez por isso frua de forma completa, ao contrário dos que por vezes bebem.

Em Coimbra, diz-se, foi um boémio. Um boémio abstémio não é uma contradição?
Sempre tive todos os graus de liberdade na vida. Aos 15 anos, vivia sozinho em Braga, com toda a liberdade do mundo. Muitos começaram a viver para se libertarem. Nunca tive necessidade. Nunca bebi e não quero experimentar. A capacidade extremosa de nos divertirmos não é proporcional ao consumo do álcool. Costuma até ser o contrário.

O que o descomprime?
A boa música, a companhia dos bons amigos e a consciência total.

Teme as más figuras?
Não é por isso. Todos nós fazemos más figuras nas nossas vidas.

Que músicas já ouviu hoje?
Músicas de todos os dias. Sérgio Godinho, que é a minha grande referência musical. Mas também ouvi Violeta Parra e Mercedes Sosa. A música tem em mim um efeito retemperador. Não me deixa esquecer quem eu sou. Ouço com muita intensidade e não sabendo as letras completas de cor, em cada conversa da minha vida salta-me imediatamente uma letra de música.

Gosta de ler?
Muito, sobretudo na língua original. E gosto muito de poesia. Tenho em Fernando Pessoa um companheiro para a vida.

E ainda faz muito desporto?
Hoje, não. Até voltar para Portugal, ia trabalhar de bicicleta. Fazia 40 minutos diários.

Hoje não conseguia.
Não ponha em causa a capacidade física do ministro da Educação. Ficariam todos surpreendidos. Não tenho, claro, a capacidade física que tive no passado. Fiz muito andebol e, sobretudo, muito karaté. Essa modalidade marcou-me muito.

Algum dia exercitou fora do tapete?
Sou muito amigável e amistoso. Nunca bati em ninguém.

Descrevem-no um otimista. Confirma?
Sim, sendo que nunca me contento com nada. A minha vontade de fazer sempre mais é insaciável. Sinto que tenho pouco o sentido da recompensa. Defino-me como um eterno e constante insatisfeito e a idade tem intensificado isso. Essa exigência, comigo e com os outros, põe à prova as relações interpessoais.

Em 2003 foi raptado em Campinas, no Brasil. Fale-nos desse pesadelo.
Foi algo que me pareceu fora da realidade. E talvez por isso não tive bem a consciência do perigo. Os meus amigos brasileiros, sim, estavam em pânico. Tive o cuidado de falar pouco e em português do Brasil, para que não entendessem que tinham em mãos um estrangeiro e tirar disso mais vantagens. Foi uma experiência que, não tendo sido traumática, me marcou. Um dia contarei as peripécias.

Estava nos EUA no 11 de setembro, era vizinho da estação de Atocha (atentado terrorista em 11 de março de 2004)…
Esse 11 de março foi o dia mais duro da minha vida. Nunca esquecerei. Cheguei ao Instituto de Investigação e estava uma colega a verificar a lista dos recursos humanos.

Falemos de futuro. Quer continuar na política?
Sempre fui recetivo ao que aí vinha. Por isso, tive esta inflexão, de que nunca me arrependi e isso sinto-o verdadeiramente. Há algo que eu sei: todo o tempo da bata vive e viverá em mim e este tempo da gravata vive e viverá em mim.

Um cargo autárquico é uma hipótese? A Câmara de Braga, por exemplo.
Tenho uma ligação muito forte a Braga. Tenho um enorme amor à cidade, mas sou ministro da Educação e essa hipótese nunca se equacionou. Nem no passado, nem no presente. Relativamente ao que aí vem, não o antecipo. Há na política quem tenha grandes certezas, que desde cedo construíram carreiras e aliados. Muitos desde os 15 anos. Pelo contrário, nunca na minha vida tive certezas em relação ao que ia fazer. Fui muito feliz fazendo ciência, tive muitos e bons momentos eureka, e com a mesma naturalidade aceitei este cargo. Um dia chegará o dia seguinte. Não vale a pena antecipá-lo sendo certo que só farei as tarefas que me fizerem feliz e depois de ter a certeza de que tenho unhas para tocar essas guitarras.