sexta-feira, 30 de outubro de 2020

“Os pais que estão atentos percebem imenso, mesmo que os filhos não digam nada”

Com três filhos em casa, a pandemia trouxe muitas mudanças pessoais e profissionais. Por exemplo, só a 13 de Março, na véspera do primeiro estado de emergência, é que Pedro Strecht comprou, pela primeira vez, um smartphone. Antes, o telemóvel — “vintage”, como lhe chamou um jovem doente —, era de teclas e tinha a única função de fazer e receber chamadas. A partir de Março passou a servir para fazer consultas, responder aos pais ou aos filhos, por vezes, a qualquer hora, como se o seu consultório estivesse sempre aberto. 

Numa carreira com mais de 25 anos, os jovens mudaram muito?
Mudou a visão das pessoas sobre a saúde mental infantil e juvenil. As pessoas estão mais atentas e dão um peso menos negativo à intervenção do psicólogo ou do pedopsiquiatra.

Perceberam que essa intervenção não é só para “malucos"?
Sim, havia muito a ideia que era para doentes mentais. A Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que uma das principais causas de morbilidade no mundo são a ansiedade e a depressão. Outra coisa que mudou nos últimos anos foi o envolvimento dos pais, há um maior envolvimento do casal. Dantes o que era frequente era ver a criança com a mãe. Hoje, na primeira consulta, estão ambos os pais, mesmo que estejam separados. 

E em relação ao tipo de casos que chegam ao consultório?
Recebo casos mais graves.

Porque antes de aqui chegarem, passam pelo psicólogo, que faz uma triagem?
Acho que sim, que há mais redes de triagem. Por exemplo, todas as escolas têm psicólogo, muitos pediatras trabalham com psicólogos, hoje há estruturas de saúde mental que não existiam. Eu apanho casos mais complicados do que há uns anos [apanhava]. As expectativas gerais das pessoas também recaem mais sobre uma resolução muito rápida de problemas. É muito raro termos tempo para fazer seguimento mais regular. As pessoas vêm com a expectativa que vêm aqui e está resolvido.

Uma das mudanças, e que espelha na capa do livro, é que antes não havia telemóveis?
Sim, há 20 anos, os telemóveis estavam a emergir; há dez anos começaram a ter Internet; e hoje em dia, a partir do 2.º ciclo, imensos miúdos têm smartphones. Também já vejo bastantes miúdos do 1.º ciclo com esse objecto.

E isso é bom ou mau?
(Pausa) Tem imensas coisas óptimas e, nesta altura de pandemia, permitiu que as crianças e os jovens se mantivessem em contacto. Este tempo foi muito pesado e, graças a Deus, as redes sociais minimizaram imenso essa ausência. Digo muitas vezes, meio a sério, meio a brincar, o que teria sido desta pandemia com um telefone preto, preso por um fio, no meio da sala.

As redes sociais também têm aspectos negativos?
Trouxeram uma cultura de imagem muito forte e que passa para os miúdos, em idades cada vez mais precoces. 

Eles sentem a pressão de terem corpos bonitos, roupas, coisas? Da felicidade?
Como se a vida fosse isso. As pessoas [nas redes sociais] estão sempre a mostrar-se no seu melhor e até mesmo para os adultos pode ser difícil. Os mais novos ficam muito fragilizados porque há uma expectativa muito forte em termos de imagem e da confirmação positiva da imagem — os “likes”. Estão concentrados no “tenho não sei quantos amigos, não sei quantos seguidores” numa rede social, que parece vasta mas que é frágil nas questões de proximidade e profundidade. 

Os pais continuam preocupados com as notas e o desempenho escolar?
Há miúdos que estão a começar o ensino secundário e já estão com a angústia do emprego vs. desemprego. Não estou a dizer que não é importante, mas há imensas coisas na vida que se vão fazendo por etapas. 

E o que se diz a esses miúdos?
Digo-lhes que é normal, por isso, é que há três anos de secundário. Às vezes, digo-lhes a brincar: “Quando começas a namorar não vais começar a pensar se vais casar pela igreja ou pelo civil, quantos filhos vais ter, que nomes vais escolher...” Esse tipo de pressão externa, colocada pelos pais, nos anos da troika notou-se imenso...

...E agora, com a pandemia, vai sentir-se outra vez?
Sem dúvida. Não estou a dizer que não seja importante [a pressão], mas cada vez mais chamo a atenção para o equilíbrio entre o tempo de trabalho e o tempo de lazer. Imensos problemas somáticos, quer em crianças, quer em adultos, correspondem a situações de burnout, quando a pessoa esgotou física e emocionalmente.

Voltando à pressão de ser feliz...
Ser feliz não é estar sempre bem, é estar bem muitas vezes e noutras é saber dar a volta ao que nos parece mal ou complicado.

Sente que hoje os jovens estão mais ansiosos que há 20 anos precisamente porque sentem a pressão de serem felizes?
Eles precisam de estar sempre up, sempre high, que é uma expectativa que se criou muito desajustada e que, mesmo estando os miúdos bem acabam sempre com a sensação que querem sempre mais. Claro que ainda temos imensa pobreza em Portugal, mas temos miúdos com imensas coisas, só que depois a expectativa, o que chamamos o “ideal do eu”, é tão alta que por muito bem que estejam parece que nada serve. Por exemplo, uma preocupação dos miúdos é com o que os outros pensam. “O que é que os outros vão dizer de mim?”

Mas isso não são só os miúdos, os adultos também. As redes sociais vieram potenciar isso?
Sim, e a ditadura da imagem tem muito a ver com isso, da imagem corporal e a psicológica. 

Os smartphones contribuem para que os jovens adoeçam?
Eu mantenho uma certa convicção de base, talvez romantizada, que acho que estamos sempre a progredir e a melhorar. Hoje temos miúdos mais sedentários, mais obesidade infantil, mais hiperactividade, mas também há os que fazem mais desporto, que têm outras actividades. Alguns estão sempre ocupados, há como que um horror ao vazio.

Porque temos medo de estarmos connosco próprios?
Sim. Perdemos a capacidade de estarmos connosco, ouvirmo-nos a nós próprios e também de termos disponibilidade para ouvirmos os outros. O que sinto [da parte das pessoas] é a enorme necessidade que têm de falar porque se sentem sós. As pessoas têm horror ao tempo livre. É preciso que a pessoa admita a si própria que não está bem e deseja mudar. É importante filtrar o que é essencial do que é acessório. Depois, criar uma rotina para fazer o que gosta. É importante darmos esse espaço a nós próprios.

Voltando ao livro, até que ponto os adolescentes não querem ser os modelos que vêem nas redes sociais?
Sem dúvida e é mais inquietante do que as pessoas pensam. Hoje, se calhar mais de 50% dos nossos miúdos está em contacto directo com sites de pornografia, ainda na pré-puberdade. Eles chegam lá facilmente e não têm capacidade física e emocional para perceber que pornografia é diferente de amor. Por exemplo, a facilidade com que eles partilham nudes é preocupante.

Ou seja, as redes influenciam não só a forma como vivem a sua sexualidade, mas também como vivem as relações com os outros?
Sim, relações que na prática são muito distorcidas. Há quase como uma clivagem entre a parte afectiva e a física, sexual-genital. É por isso que muitos adolescentes, no registo social da noite, me dizem que têm de beber para se sentirem mais à-vontade para estar com uma rapariga, como se fosse preciso alterar um estado de consciência. São modelos de relação que se tornaram diferentes. Por isso, digo aos pais que promovam os contactos reais dos miúdos, para convidarem outros para ir a casa. 

Os filhos não têm de dizer tudo aos pais, mas o que têm estes últimos de fazer para estabelecer uma relação de confiança?
Ter tempo de partilha. Às vezes estamos a falar de muito pouco, como o jantar em família. Manter um bom nível de comunicação e dar espaço para ouvir. Os pais que estão atentos percebem imenso dos filhos, mesmo que estes não digam nada. Mas às vezes também não percebemos tudo. 

No livro fala de como o corpo se pode tornar o espelho das experiências de vida dos jovens e, nesse sentido temos, por um lado a automutilação e por outro as tatuagens.
Essa questão tornou-se galopante. Observo que aumentou muito a transposição para o corpo de marcas psíquicas, como se houvesse uma necessidade de pôr à flor da pele coisas que são marcas psíquicas.

Os jovens fazem tatuagens porque são inseguros?
Sim. O José Gil tem uma expressão que é “inscrição psíquica”, isto é, as coisas boas ficam marcadas dentro de nós e não à superfície, na pele. Ou seja, as coisas que são realmente importantes deixam marca psicologica, nós lembramo-nos delas, sejam boas ou más. Hoje parece que as experiências são muito mais de superfície, parece que não deixam marca, mas, paradoxalmente, as pessoas andam à procura de marcarem mais determinadas vivências nas suas peles. Digo aos pais que, até aos 18 anos, os miúdos não devem fazer marcas que sejam definitivas — podem por um piercing, mas não um alargador porque é irreversível. 

Não pode ser uma questão de moda?
Eu acho que é, mas porque é que há modas em determinadas alturas? Porque correspondem a movimentos sociais. Não tenho uma posição crítica no sentido negativo, tenho-a muito mais interessada no ponto de vista de observar as mudanças. Uma outra mudança é os rapazes cuidarem mais deles próprios, fazem um investimento maior neles. Mas continua a haver uma coisa muito pesada, em relação aos rapazes e à sua vivência do corpo que é a dificuldade na expressão dos afectos. As raparigas são mais livres, saem da escola agarradas às outras, aos segredos, mas se dois rapazes o fizerem já podem falar sobre eles. Portanto, os rapazes continuam mais contidos nos afectos. Mas já é mais saudável do que há 20 anos!

Fonte: Público

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Suspensão das aulas teve impacto “preocupante” no nível de leitura das crianças do 1.º ano

Mais de um quarto das crianças do 2.º ano de escolaridade das escolas do Porto iniciou o novo ano lectivo com um nível de leitura “muito pobre”. É a consequência de quase quatro meses de suspensão das aulas, devido à pandemia, conclui um estudo do Centro de Investigação e Intervenção na Leitura (CIIL), do Instituto Politécnico do Porto. Os alunos carenciados foram os mais prejudicados.

De acordo com as conclusões do estudo do CIIL, (...) 27% dos alunos do 2.º ano revelaram um desempenho na leitura “muito pobre” neste início de ano lectivo. “Estas crianças lêem tão devagarinho que não percebem aquilo que estão a ler”, ilustra a investigadora do Politécnico do Porto Ana Sucena Santos, que coordena este trabalho.

Ao longo do 1.º ano é esperado que as crianças aprendam a ler, e no final do ano sejam capazes de ler pequenos textos e extrair significado destes. Isso não está a acontecer para mais de um quinto dos alunos, sublinha Ana Sucena Santos. A realidade “é preocupante” e “incompatível com o que se espera ao início do 2.º ano de escolaridade” prossegue a especialista.

Os resultados do trabalho do CIIL revelam ainda uma outra realidade: as crianças de contextos economicamente desfavorecidos são as mais penalizadas. Se, entre os alunos do 2.º ano que provêm de contextos não desfavorecidos há 22% no nível “muito pobre”, entre as crianças de famílias carenciadas o valor é 10 pontos percentuais superior.

As crianças com um nível de leitura “muito pobre” estão no que os investigadores designam por “percentil dez”. Ou seja, têm um desempenho que é inferior ao que é apresentado por 90% da população estudada. No nível seguinte (“percentil 25”) estão mais 10% das crianças avaliadas. O seu nível de leitura foi classificado pelos cientistas do CIIL como “frágil”. A sua situação “não é tão dramática, mas continua a ficar aquém do que seria esperado nesta fase” do percurso escolar, explica Ana Sucena Santos.

Este trabalho abrangeu 542 crianças do 2.º ano de escolaridade de 11 agrupamentos de escolas do Porto – cerca de um terço da população do concelho naquele nível de ensino. A investigação do CIIL é um estudo de rastreio das competências de leitura, que usa um teste previamente validado para a população portuguesa. A equipa de investigação já tinha usado essa ferramenta junto dos alunos das escolas do Porto, com quem vem trabalhando desde 2015, no âmbito de um projecto do município.

Esse trabalho permite assim ter dados comparativos. Em anos anteriores, no mesmo território, mas com a escola a decorrer em condições de normalidade, a soma das crianças com competências “muito pobres” e “frágeis” ronda os 25%. Este ano são 37%. Ana Sucena Santos considera que estes dados mostram que os resultados encontrados ficam a dever-se à suspensão das aulas presenciais por causa da pandemia de covid-19: “Um trimestre sem aulas foi muito tempo.”

A equipa do CIIL, que vinha trabalhando nas escolas do Porto, notou que depois da suspensão das aulas presenciais começou a “perder contacto com muitas crianças” que faziam parte do projecto, o que deu o alerta aos investigadores para a necessidade de uma intervenção no início do ano lectivo. Esta avaliação das competências de leitura dos alunos do 2.º ano de escolaridade nas escolas do Porto foi feita no arranque do novo lectivo. “Reflecte a forma como encontrámos as crianças”, ilustra a coordenadora.

O projecto inclui também a criação de uma estratégia de intervenção, que foi aplicada pelos professores daquelas escolas durante as primeiras cinco semanas do novo ano, que o Ministério da Educação quis que fossem dedicadas à recuperação de aprendizagens. Agora, a equipa de investigadores vai aplicar novamente o mesmo estudo para perceber a evolução dos alunos. Ana Sucena Santos antecipa, porém, que os alunos mais frágeis vão precisar “de muito mais tempo de trabalho intensivo”, sob pena de “se perderem” numa fase inicial dos seus percursos escolares.

Fonte: Público

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Psicólogo em contexto escolar

Recentemente, o Conselho Nacional de Educação publicou o documento com recomendações sobre "A condição dos assistentes e dos técnicos especializados que integram as atividades educativas das escolas".

No conjunto dos técnicos especializados, destaca-se o papel do psicólogo em contexto escolar (pp. 6-8). 

A ação dos psicólogos em contexto escolar alinha-se com um conjunto de pressupostos políticos considerados prioridade nacional, bem como de pressupostos técnicos e científicos que organizam a sua intervenção em torno de áreas estratégicas como o reforço dos níveis de qualificação e redução do insucesso e do abandono escolar precoce; o desenvolvimento de competências de gestão do percurso escolar e profissional e das transições entre educação, formação e emprego; a igualdade de oportunidades, equidade e inclusão educativa e social; o bem-estar físico e psicológico, saúde mental e a sua relação com o desenvolvimento, a aprendizagem, e o sucesso escolar; a capacitação pessoal e social dos jovens; a promoção do sucesso educativo, da educação para a saúde, da igualdade de género, da cidadania ativa, e da aprendizagem ao longo da vida; a prestação de serviços integrados, eficazes e eficientes, a alunos e famílias. 

A integração do grupo profissional dos psicólogos no sistema educativo português remonta ao ano de 1983 e encontra-se interligada ao relançamento do ensino secundário técnico e profissional. O Ministério da Educação estabeleceu que esta experiência pedagógica deveria ser acompanhada, entre outras medidas, pela criação de serviços de orientação escolar e profissional (Despacho Normativo nº 194-A/83, de 21 de outubro). Posteriormente, foi estipulado que, nas escolas onde funcionavam os cursos técnicos e profissionais, a orientação escolar e profissional fosse alargada a todos os alunos do 9º ano e do ensino secundário, com o objetivo de apoiar as escolhas vocacionais e o ingresso no ensino superior ou de orientar a transição para a vida ativa. 

Somente em 1991 surgiram os Serviços de Psicologia e Orientação (SPO) (Decreto-Lei n.º 190/91, de 17 de maio), concretizando o previsto na Lei de Bases do Sistema Educativo (Lei n.º 46/86). Os psicólogos passaram então a estar integrados nos SPO, unidades especializadas de apoio educativo, integradas na rede escolar, desenvolvendo a sua ação em escolas e agrupamentos de escolas, da educação pré-escolar ao ensino secundário. A intervenção dos SPO é ainda referida nos normativos relativos aos princípios orientadores da gestão dos currículos do ensino básico e secundário, ao Estatuto do Aluno e Ética Escolar, à Educação Especial, à Educação Inclusiva e às ofertas educativas que visam a prevenção do insucesso e abandono escolar. 

Os conteúdos funcionais dos psicólogos estão legalmente previstos desde 2006, competindo-lhes o desempenho de funções de apoio socioeducativo, tal como previsto no Anexo II do Despacho nº 17 460/2006, de 29 de agosto. 

O Referencial Técnico para os Psicólogos Escolares (DGE, 2016) veio reforçar a importância do papel dos psicólogos no contexto escolar, no exercício da sua atividade em três grandes domínios: i) apoio psicológico e psicopedagógico a alunos e professores; ii) apoio ao desenvolvimento de sistemas de relações da comunidade educativa e iii) orientação da carreira. 

A atividade dos psicólogos nas escolas pode assumir um carácter promocional, preventivo e/ou de remediação, e a mesma insere-se na prestação de um continuum de serviços que permitem responder de modo equilibrado às diferentes necessidades da comunidade escolar, assegurando mais sustentabilidade técnica e científica e sistemas educativos mais ecológicos, equitativos e inclusivos. 

A legislação para a educação inclusiva (Decreto-Lei nº 54/2018, de 6 de julho; Decreto-Lei nº 55/2018, de 6 de julho) vem salientar as opções metodológicas subjacentes, assentes no modelo de intervenção multinível e no modelo do desenho universal para a aprendizagem, e prevê a presença do psicólogo enquanto elemento permanente da Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva (EMAEI). Neste contexto, não é raro que o psicólogo assuma o papel de coordenador da EMAEI, e/ou um papel relevante na consultoria aos docentes, pais/encarregados de educação e órgãos de gestão e administração para a implementação de práticas inclusivas. Adicionalmente, do ponto de vista técnico, participa na mobilização, apresentação e conciliação de propostas de medidas de suporte à aprendizagem, respetivo acompanhamento e monitorização, e colaboração na elaboração de relatórios técnico-pedagógicos (RTP), de programas educativos individuais (PEI) e de planos individuais de transição (PIT). 

As Orientações para o Trabalho em Psicologia Educativa nas Escolas (DGE, 2018) vêm consubstanciar o trabalho em torno do Referencial Técnico para os Psicólogos Escolares (DGE, 2016), após a entrada em vigor da legislação para a educação inclusiva (Decreto-Lei nº 54/2018, de 6 de julho; Decreto-Lei nº 55/2018, de 6 de julho). De entre as orientações para o trabalho dos psicólogos, no conjunto das atividades que visam mobilizar os agentes educativos para o desenvolvimento e a melhoria das respostas educativas, salientam-se, por exemplo, as dirigidas aos AO, nomeadamente o desenvolvimento de ações de capacitação nas áreas de comunicação e relação e de ações de sensibilização para a deteção de situações de risco. 

No que respeita ao contributo dos psicólogos nas EMAEI, destacam-se, por sua vez, a colaboração na identificação de condições de ensino e aprendizagem que valorizem o desenvolvimento da literacia e numeracia, considerando o seu início precoce e desenvolvimento contínuo; na construção e implementação de planos de melhoria e de sistemas de autoavaliação da escola; na capacitação dos docentes para a implementação da abordagem multinível e do desenho universal para a aprendizagem; na potenciação da relação com as famílias e do seu envolvimento nas medidas de aprendizagem e inclusão; no apoio aos docentes no desenvolvimento de experiências pedagógicas eficazes; e na promoção da autorregulação dos alunos, da sua motivação e sentido de pertença, e de comportamentos pró-sociais (DGE, 2018).

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Com a pandemia e tantas adaptações imprevistas no trabalho das escolas, a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) quis identificar necessidades e constrangimentos, para adequar políticas e ações, com um retrato dinâmico que observasse o que estava a acontecer em diferentes momentos e, dessa forma, identificar tendências ao longo do período de suspensão das atividades presenciais. Nesse sentido, avançou com o inquérito “Estamos On com as Escolas: conhecer para apoiar”. Em três fases, no final de março, no final de abril, e nas últimas semanas do final do ano letivo passado, as escolas foram convidadas a responder a várias perguntas, com o objetivo de traçar um retrato fiável e representativo da realidade escolar durante um período tão complexo e crítico.

Os dados devem ser lidos à luz das circunstâncias, ou seja, de um momento delicado de emergência sanitária e que levou ao encerramento de todas as escolas, ao avanço do ensino à distância, e a constantes readaptações. Seja como for, segundo a DGEEC, “o sistema educativo não entrou em rutura e conseguiu adaptar os seus procedimentos, de forma a continuar a dar uma resposta aos seus alunos, dentro de um quadro global de confinamento e de necessária suspensão das atividades presenciais, como salvaguarda da saúde pública”. Apesar do contexto, sustenta, “é inegável o caminho positivo percorrido num tão curto espaço de tempo”.

De que forma as escolas se foram adaptando à realidade e adequando estratégias perante uma realidade tão inesperada e imprevisível? Em 685 escolas da rede pública, 133 referiram que necessitaram de apoio na elaboração do plano de ensino à distância, 25% ao nível da avaliação das aprendizagens, 15% na diversificação do trabalho com os alunos e outros 15% nas intervenções específicas no âmbito da educação inclusiva. Verificou-se um progresso significativo e positivo das práticas escolares na organização das atividades letivas à distância com cronogramas semanais e definição de horários.

A articulação entre equipas educativas e professores nas dinâmicas de trabalho com os alunos também evoluiu positivamente. A partir do início de maio, o ensino à distância aconteceu em todas as turmas em cerca de 90% das escolas. A prática do ensino à distância não abrangeu sempre todas as disciplinas, contudo, o alargamento à totalidade das disciplinas é notório, se comparados os dados das três fases. “Na 1.ª fase, apenas uma minoria de escolas conseguiu assegurar que este trabalho envolvesse todas as turmas e todas as áreas disciplinares, revelando maiores dificuldades no 2.º e 3.º Ciclos do Ensino Básico, etapas em que a matriz curricular prevê um maior número de disciplinas a frequentar por todos os alunos.”

No final de abril, a diferença entre níveis de ensino esbateu-se. As práticas de ensino à distância envolveram todas as turmas e todas as disciplinas em mais de 80% das escolas, percentagem que subiu para quase 90% em junho. As restantes escolas, segundo o estudo, “conseguiram cobrir todas as áreas curriculares em mais de 50% das turmas, ou seja, os hiatos de oferta curricular foram pontuais”.

A maioria dos alunos acompanhou as atividades de forma regular, logo a partir do final do 2.º período, com uma taxa bastante superior no Ensino Secundário. A maior autonomia e a maior disponibilidade de meios digitais podem explicar este cenário.

As ferramentas usadas pelos professores
Quanto aos recursos educativos utilizados pelos professores, no ensino à distância, constata-se uma panóplia de estratégias e não houve diferenças significativas nos vários níveis de ensino. O uso de manuais escolares, em formato físico e virtual, foi bastante generalizado logo a partir do final de março. O mesmo aconteceu quanto às propostas das editoras online, recursos partilhados na internet e recursos construídos individualmente - embora nestes casos se observe algum incremento ao longo do 3.º período.

Relativamente à promoção de sessões de formação à distância e disponibilização de recursos para a autoaprendizagem dos professores, verificou-se que “o esforço das escolas na resposta às necessidades dos docentes de todas as turmas foi bastante significativo, logo no final de março (1.ª fase), com valores entre os 44% e os 48%, dependendo do nível de ensino, sendo que menos de 1/4 das escolas não disponibilizaram qualquer tipo de formação ou recursos aos seus docentes”. Este apoio cresceu durante o mês de abril.

“É muito interessante observar o crescimento do número de escolas que documentou a mobilização pedagógica de recursos construídos coletivamente, assim como o recurso aos conteúdos televisivos no âmbito da iniciativa #EstudoEmCasa ou ainda outros tipos de recursos”, salienta o estudo. As estratégias de comunicação com os alunos foram também diversificadas sem grandes oscilações nos diferentes níveis de ensino. “Foi generalizado, logo desde a 1.ª fase, o recurso ao correio eletrónico, tendo sido também muito recorrente o uso de serviços de mensagem por internet (WhatsApp) e por telefone (SMS), enquanto canais de comunicação mais adequados para atividades assíncronas”.

A utilização de plataformas de aprendizagem ou sistemas de videoconferência que permitem atividades letivas síncronas tiveram, na 1.ª fase, maior expressão no 3.º Ciclo e no Ensino Secundário. Os dados indicam uma tendência para um maior recurso a atividades síncronas por parte dos professores, o que sugere a aquisição de competências durante o último período do ano escolar. Por outro lado, a maioria das escolas programou trabalho específico com os alunos sem acesso a computadores e internet, além dos conteúdos televisivos disponibilizados pelo #EstudoEmCasa.

Na avaliação, escolas e docentes garantiram alguma diversificação e foi muito residual o número de estabelecimentos de ensino que, na 1.ª fase, não avaliaram os alunos. Na 2.ª e 3.ª fases, todas as escolas mobilizaram instrumentos para avaliar em contexto de ensino à distância. Verificou-se um aumento, entre os três momentos de inquirição, do recurso a outros instrumentos de avaliação, nomeadamente as aulas e os testes online que, aliás, têm uma utilização significativa no 3.º Ciclo e no Secundário, o que reflete um incremento progressivo das competências dos docentes e uma diversificação de estratégias, no contexto do ensino à distância. Além disso, houve uma preocupação sistemática de providenciar aos alunos feedback sobre o trabalho desenvolvido, nos vários níveis de ensino. “A abrangência dessa prática de retroalimentação aumentou ao longo do período em análise, tendo alcançado, em junho, todas as turmas em cerca de 85% das escolas”.

A preocupação de fornecer informação aos encarregados de educação, sobre o trabalho desenvolvido pelos seus educandos, também foi evidente, sobretudo no 1.º Ciclo. Da 1.ª para a 2.ª fase de inquirição e, posteriormente, na 3.ª fase, a percentagem de escolas que deu esse retorno em todas as turmas aumentou significativamente.

Respostas transversais, contactos regulares
A iniciativa #EstudoEmCasa, como recurso complementar de apoio à aprendizagem, foi especialmente orientada para alunos do Ensino Básico com dificuldades no acesso a conteúdos por meios digitais. Foram identificados alunos nesta situação em mais de um terço das escolas, ou seja, em 38% das escolas com 1.º Ciclo e 2.º Ciclos e em 36% das escolas com 3.º. Um aspeto que sobressaiu no estudo é que entre abril e junho, a percentagem de escolas que reportou alunos que exclusivamente acederam a conteúdos pedagógicos através deste formato decaiu de forma muito significativa, o que, sustenta a pesquisa, “aponta para um impacto muito considerável das estratégias de disponibilização de equipamentos tecnológicos e acesso à internet aos alunos sem esses recursos, bem como de outras soluções alternativas que foram, entretanto, encontradas”.

“Apesar de abranger uma proporção considerável de escolas, é reduzido o número de alunos que, já em abril, foi identificado pelas escolas na situação de apenas ter acesso aos conteúdos educativos através do #EstudoEmCasa (cerca de 10 000 alunos). É também importante assinalar o decréscimo significativo do número de alunos nestas circunstâncias (para menos de 6 000), nos três ciclos, entre o segundo (abril) e o terceiro (junho) momentos de inquirição, revelador de uma progressiva construção de soluções educativas mais diversificadas e robustas para estes alunos”, lê-se no estudo.

A 18 de maio, as atividades letivas presenciais foram retomadas no Ensino Secundário, nas disciplinas sujeitas a exame. A maioria das escolas optou por distribuir as atividades das turmas por dia, ou períodos do dia, distintos de forma a reduzir a concentração de alunos e minimizar riscos de contágio. A maioria optou também pelo desdobramento das turmas para reduzir o número de alunos em cada sala de aula, em simultâneo, embora cerca de 40% das escolas não tenham seguido esta opção, enquanto 10% das escolas adotaram-na apenas num número minoritário de turmas. Cerca de 2/3 das escolas atribuíram uma única sala a cada turma e o recurso a outros espaços, que não as salas de aula, foi uma solução frequente.

A resposta pedagógica às crianças da educação pré-escolar conheceu um crescimento muito significativo. A partir do início de maio, 80% das escolas facultaram, por meio digital, atividades a todos os grupos de crianças deste nível de ensino, quando na 1.ª fase eram apenas 54%. Os dados mostram uma crescente preocupação das escolas em responder a todas as crianças e alunos, no âmbito dos planos para o ensino à distância que envolveram respostas transversais às respetivas comunidades educativas. A periodicidade de contacto com os encarregados de educação foi semanal, em cerca de 1/3 das escolas foi diário.

O estudo procurou também compreender de que forma os princípios, apoios e recursos específicos da educação inclusiva foram assegurados, num contexto de substituição temporária das atividades letivas e não letivas presenciais por uma oferta de ensino à distância. Procurou-se, mais concretamente, conhecer, nas sucessivas fases de inquirição, a situação dos 11 919 alunos que, nos diversos estabelecimentos da rede pública, foram acompanhados regularmente em unidades especializadas de Centros de Apoio à Aprendizagem. As respostas demonstram que esses centros garantiram apoio aos alunos na modalidade não presencial, na maioria das escolas inquiridas.

Segundo a DGEEC, estes dados demonstram, portanto, “que à medida que o tempo foi avançando, um número cada vez maior de escolas reconheceu essa necessidade e desenvolveu a capacidade de garantir um apoio à distância aos seus alunos, de acordo com metodologias adaptadas para cumprir os objetivos da educação inclusiva”. O impacto da interrupção de apoios e terapias na aprendizagem desses alunos foi uma preocupação constante.

Fonte: Educare

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Criado o primeiro observatório para sobredotados

O primeiro Observatório para a Sobredotação e Talento pretende identificar os alunos sobredotados e formar os professores para garantir que existe inclusão destas crianças e jovens.

Números exatos não existem. Não se sabe ao certo quantos alunos sobredotados frequentam as escolas portuguesas, mas estima-se que entre 3% a 5% da população tenha esta característica. “Não estão é identificados” estes alunos, alertou ao i Alberto Rocha, presidente da Associação Nacional para o Estudo e Intervenção na Sobredotação (ANEIS), sediada em Braga.

Em Portugal, há poucos estudos sobre as especificidades e sobre as necessidades destes alunos, mas esta é uma realidade que pode mudar nos próximos anos. É que há pouco mais de um mês foi criado o Observatório para a Sobredotação e Talento, um projeto da Associação Nacional para o Estudo e Intervenção na Sobredotação, e o primeiro na área da sobredotação em Portugal. O objetivo é fazer um levantamento das crianças e jovens sobredotados que frequentam os estabelecimentos escolares do país, conhecer a realidade em que estão inseridos e criar mecanismos para garantir a inclusão destes alunos.

No âmbito deste observatório, e até ao final deste ano, a ANEIS espera ter pronto um kit de sobredotado para distribuir por oito distritos. Numa fase inicial, serão distribuídos os kits, em formato tecnológico, pelas escolas de Braga, Porto, Évora, Lisboa, Coimbra, Viseu, Açores e Madeira. “O objetivo é chegar a todas as escolas do país”, explicou Alberto Rocha, acrescentando que o kit é um conjunto de orientações para que os professores consigam identificar os alunos sobredotados. “O kit terá instrumentos de despiste, vídeos de demonstração e exercícios que podem fazer com os alunos. É um conjunto de ferramentas para que os professores possam fazer a identificação”. Com este kit, e feita a identificação dos alunos, a ANEIS espera começar a dar formação aos professores para que estes consigam responder às necessidades das crianças e jovens.

Só depois da identificação, defendeu o presidente da ANEIS, é que podem ser criados os mecanismos certos. Acontece, por exemplo, que “alguns casos são confundidos com hiperatividade” por falta de conhecimento e estes jovens “são incompreendidos”. Alberto Rocha concorda com as medidas e atenção dadas aos alunos com mais dificuldades de aprendizagem, mas alerta para a urgência em criar as mesmas medidas para os alunos que têm mais capacidades. “Devemos puxar os que estão abaixo da média para cima, mas não podemos puxar os que estão acima da média para baixo, para ficarem na média”, explicou.

Fonte: Jornal I

domingo, 25 de outubro de 2020

Adaptações curriculares significativas: possibilidades de operacionalização

O Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, na redação atual, conceptualiza as adaptações curriculares significativas como as medidas de gestão curricular que têm impacto nas aprendizagens previstas nos documentos curriculares, requerendo a introdução de outras aprendizagens substitutivas e estabelecendo objetivos globais ao nível dos conhecimentos a adquirir e das competências a desenvolver, de modo a potenciar a autonomia, o desenvolvimento pessoal e o relacionamento interpessoal. 

As adaptações curriculares significativas inserem-se nas medidas adicionais, cujos alunos beneficiários têm de ter um programa educativo individual. O ordenamento jurídico educacional determina que o programa educativo individual contém a identificação e a operacionalização das adaptações curriculares significativas e integra as competências e as aprendizagens a desenvolver pelos alunos, a identificação das estratégias de ensino e das adaptações a efetuar no processo de avaliação. 

No caso dos alunos que seguem o percurso escolar com adaptações curriculares significativas, do certificado deve constar o ciclo ou nível de ensino concluído e a informação curricular relevante do programa educativo individual, bem como as áreas e as experiências desenvolvidas ao longo da implementação do plano individual de transição. 

Feito o enquadramento jurídico educacional, procuremos clarificar algumas formas de operacionalização desta medida. Existem duas dimensões diferentes. 

1.º - Um primeiro pressuposto remete para a singularidade de cada caso, ou seja, a medida deve ser operacionalizada em função do aluno em concreto. No entanto, um aluno com adaptações curriculares significativas vê todo o seu percurso escolar comprometido por isso, independentemente dos programas curriculares das disciplinas que frequenta. 

2.º - Na nossa perspetiva, e sempre no campo teórico e no enquadramento do pressuposto anterior, um aluno pode ter, em termos de programação e planificação, adaptações curriculares significativas apenas a algumas disciplinas, isto é, na prática, pode significar que, em algumas disciplinas, não seja necessário recorrer a aprendizagens substitutivas. 

Esta perspetiva radica sobretudo no pressuposto ou no princípio da flexibilidade curricular. Um aluno pode ter "capacidades" para desenvolver as aprendizagens essenciais de uma disciplina da matriz curricular regular (ex: Educação Visual; Educação Tecnológica; Educação Física; disciplinas da formação técnica dos cursos profissionais...) sem qualquer alteração, mas não conseguir minimamente acompanhar as aprendizagens essenciais de outras disciplinas (Ex: Matemática, Português, Língua Estrangeira, Físico-Química...) do ano de escolaridade em que se encontra, por haver uma discrepância abismal. 

A questão basilar é: se o aluno consegue desenvolver as aprendizagens essenciais de uma disciplina da sua matriz curricular, por que há de ter adaptações curriculares significativas a essa disciplina, com uma planificação específica e aprendizagens substitutivas?! Deve ter apenas àquelas disciplinas em que, de todo, o aluno não consegue desenvolver as aprendizagens essenciais, mesmo com eventual aplicação de adaptações curriculares não significativas ou outras medidas. 

Esta situação é mais evidente nos cursos profissionais. O aluno pode desenvolver Unidades de Formação de Curta Duração (UFCD) da formação técnica sem adaptações curriculares significativas, sobretudo quando estas são de cariz mais prático, em função da natureza do curso profissional. Existe a possibilidade de, reunidos os requisitos necessários, as UFCD poderem ser certificadas autonomamente. Há certas profissões que são "certificadas" por um conjunto articulado de UFCD. Neste caso, o aluno pode ser "certificado" numa área por reunir o conjunto de UFCD, mas, no global, não conclui com certificação "regular" o curso profissional (ou ensino secundário) que frequenta por beneficiar de adaptações curriculares significativas, ainda que, na prática, apenas a algumas disciplinas. 

Esta temática parece não ser pacífica na interpretação e na operacionalização. Esta é uma visão, partindo sempre dos pressupostos da gestão flexível do currículo e da sua adequação eficaz a cada caso em concreto. 

Em síntese, um aluno com adaptações curriculares significativas está amarrado a essa medida, com todas as consequências que daí advenham. No entanto, na prática, pode significar que, em algumas disciplinas, não seja necessário recorrer a aprendizagens substitutivas. Esta situação deve ser salvaguardada no respetivo programa educativo individual. Cada caso deve ser analisado na sua singularidade!

A dislexia no ensino superior

Primeira aula de uma cadeira de ensino superior: entre cerca de 100 alunos, 3 a 7 ficam para o fim da aula para falar com o professor – “Tenho dislexia”; “Tenho dificuldades na leitura e escrita, mas não tenho um diagnóstico identificado”; “Tenho défice de atenção” (testemunho dado por um professor universitário).

Entraram, na primeira fase de concurso de acesso ao ensino superior público deste ano, cerca de 51 mil estudantes. Quantos deles sofrerão de uma perturbação da aprendizagem específica na leitura (dislexia)? Quantos deles sofrerão desta problemática e nunca foram diagnosticados? Que dificuldades sentem os alunos com dislexia, no ensino superior? A dislexia condiciona a escolha do curso? Quantos alunos com dislexia terminam a formação superior? O seu desempenho é idêntico ao dos colegas, ou será mais baixo?

Estas são algumas perguntas que nos parecem pertinentes, e que seria importante investigar em Portugal, onde os estudos sobre a prevalência de estudantes com dislexia a frequentar a universidade são ainda escassos.

Atualmente, temos uma legislação para a escola inclusiva (DL 54/2018 de 6 de julho), que regula a aplicação de medidas educativas de acordo com uma abordagem multinível, de forma a garantir uma educação para todos até ao final da escolaridade obrigatória. Fará sentido um movimento de escola inclusiva também no nível de ensino superior?

Estudos científicos mostram que a dislexia é uma dificuldade que acompanha os sujeitos ao longo de toda a vida. Normalmente os estudantes conseguem desenvolver algumas estratégias que lhes permite lidar com as dificuldades na leitura, e os sintomas podem até ter diferentes manifestações de acordo com a fase da vida em que se encontram, mas existem dificuldades que persistem até à idade adulta, nomeadamente no processamento fonológico, linguagem escrita e memória de trabalho.

Adultos com dislexia mostram habitualmente dificuldades na precisão ortográfica, em organizar a escrita de um texto, em tirar apontamentos, na velocidade leitora, em compreender grandes quantidades de texto complexo, entre outras. Sendo a leitura e a escrita as atividades dominantes em ambiente escolar, não será difícil perceber que os alunos com dislexia necessitam de maior esforço e de dedicar mais tempo para conseguir o mesmo que os restantes colegas. Paralelamente aos efeitos no nível académico, existe um impacto importante nos níveis comportamental, emocional e social. Os estudantes com dislexia experienciam elevados níveis de ansiedade, sentimentos negativos em relação à sua competência, frustração, perda de motivação no investimento da aprendizagem, problemas na autoestima e no relacionamento interpessoal, devido a atitudes e crenças de colegas, professores e, por vezes até mesmo os próprios pais, que consideram que são alunos menos inteligentes e menos empenhados.

De acordo com a experiência que temos no CADIn, continuam a chegar-nos adultos que, apesar de terem sentido dificuldades ao longo da escolaridade e de terem consciência das mesmas, nunca tiveram acesso a um diagnóstico e procuram a sua confirmação tardia, ou estudantes que necessitam de uma fundamentação para pedir a adequação de medidas educativas na instituição de ensino superior que frequentam.

São muitas as entidades de ensino superior que implementam várias adaptações, permitindo tempo extra, o uso do dicionário, a leitura oral de enunciados, o recurso a tecnologias de informação e comunicação, valorizam o conteúdo em detrimento da organização ou ortografia, e utilizam métodos de avaliação diversificados, como a avaliação oral, etc., medidas essas que permitem uma melhoria no desempenho académico, mas também na sua qualidade de vida.

Em jeito de conclusão, consideramos que a importância da inclusão não termina no 12.º ano. Um aluno com dislexia pode ter dificuldades em realizar e concluir o ensino superior, mas consegue ter sucesso, desde que tenha uma resposta educativa e intervenção adequadas.

Rita Branco

Psicóloga educacional do CADIn

Fonte: Público

sábado, 24 de outubro de 2020

A educação está farta de paixão e anseia por razão

Inicia-se mais um ano escolar e, uma vez mais, são evidentes os problemas da escola pública, fazendo com que os cidadãos, a muito custo pessoal e familiar, optem, cada vez mais, por sair da rede de ensino pública.

Muito recentemente, foi noticiado que, fruto da forma como o ensino público foi gerido, as escolas privadas não tinham mãos a medir com o número de novos pedidos.

O nº2 do Artigo 13º da Constituição da República Portuguesa expressa que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever”, no entanto vivemos tempos onde assistimos ao ensino público a ser usado como instrumento de políticas discriminatórias – políticas essas, que diferenciam agregados familiares não pelas suas condições socioeconómicas, mas sim pela escolha do estabelecimento de ensino. São, ironicamente, os que mais clamam pela Constituição, os primeiros a contrariarem os seus valores.

Falo, mais concretamente, da medida implementada em 2016, da gratuitidade dos manuais escolares a todos os estudantes do ensino público que frequentem o primeiro ciclo e, mais recentemente, da sua alteração, em 2019, tendo sido alargada a todos os alunos da escolaridade obrigatória na rede pública.

Esta medida, anunciada com grande pompa e circunstância como um fator de ajuda às famílias portuguesas, em vez de promover um maior acesso ao elevador social de quem realmente precisa, cava ainda mais esse fosso. Senão, vejamos:
  1. Com a introdução desta medida, não existe qualquer alteração aos apoios prestados a agregados familiares abrangidos pela Ação Social Escolar (ASE). Isto implica que a reivindicação antiga de famílias mais carenciadas, que passa pela atribuição dos cadernos de atividades e livros de fichas, continua por cumprir. Quem tem filhos e filhas a estudar sabe o quão essenciais são atualmente estes recursos, para não deixar nenhuma criança para trás e permitir verdadeiramente a igualdade de acesso. Assim, enquanto quem precisa não beneficia em nada deste aumento de despesa, as famílias que têm condições económicas para a aquisição dos manuais beneficiam mesmo sem precisar.
  2. Cerca de 15% dos alunos matriculados frequentam o ensino privado em Portugal, alguns na mesma situação socioeconómica que os seus colegas do público e não têm acesso à mesma medida. Por exemplo, atendendo ao ranking das escolas, se uma família viver em Coimbra ou no Porto, terá a possibilidade que os seus educandos frequentem uma boa escola pública, classificada entre as primeiras 60 do país, caso resida ao lado dela. Pelo contrário, se morarem em Palmela, estarão a escolher entre o Colégio St. Peter’s (10ª melhor escola do país) e a Escola Secundária do Pinhal Novo (373ª melhor escola do país), uma vez que o Estado não permite que, por exemplo, seja escolhida a Escola Secundária Bocage (em 138º lugar). Qualquer família nestas circunstâncias, que o possa fazer, vai optar por um sacrifício adicional para que os seus filhos frequentem a escola privada. E não terá acesso a manuais gratuitos. Essa mesma família vai continuar a investir no ensino público, embora o seu educando não vá beneficiar do mesmo. Portanto, este sacrifício custa a dobrar. São os seus impostos que estão a financiar o sistema público, do qual abdica sem qualquer tipo de benefício.
Contabilizando os números de alunos matriculados em 2019, a medida atual custou a todos nós, este ano, cerca de 155 milhões de euros1. Pergunto: que resultados foram atingidos que justifiquem este valor de investimento?

Vamos supor que o que se pretende é, efetivamente, contribuir para o sucesso escolar dos alunos. Nesse caso, será mais racional, em vez de garantir a gratuitidade mesmo para quem não necessita, assegurar que os agregados familiares com dificuldades económicas têm os manuais escolares obrigatórios e os livros de fichas – neste caso, considerando que 36,1% dos alunos matriculados no ensino público são beneficiários da ASE2, o investimento total seria de cerca 90 milhões de euros.

Mesmo estendendo esta medida aos agregados familiares que não estão no ensino público, vamos, por absurdo, admitir os mesmos 36,1% – o investimento total seria de 106 milhões de euros!

Este tipo de soluções, embora incidindo naqueles que mais precisam, continuam a não confiar na capacidade de cada cidadão de decidir onde e em que condições quer que os seus educandos estudem, não sendo, por isso, um verdadeiro sistema de acesso universal. É por este motivo, por exemplo, que um partido como a Iniciativa Liberal defende a liberdade de escolha através de um sistema que coloca o financiamento nas famílias, através da solução do cheque-ensino. Para cada ano de escolaridade, o Ministério determinaria o custo-padrão da aprendizagem por aluno. Cada família teria direito a esse valor para usar numa escola, seja pública ou particular (no caso das particulares que aderissem livremente a esta rede).

Fazendo o exercício de consultar o Orçamento do Estado de 2020, e dividindo a despesa prevista em educação pública – no ensino básico e secundário -, o valor que corresponde a cada aluno matriculado na rede pública em Portugal é de 3829,60 de euros (excluindo ASE e acordos de associação). Se em vez de dividirmos pelos alunos da rede pública, dividirmos por todos os alunos matriculados na rede pública e privada, teríamos 3342,16 de euros. Curiosamente, valores comparáveis com os prestadores privados!

Como se constata, uma medida que é anunciada como um fator de igualdade de acesso ao ensino, é usada como uma forma de agravar diferenças entre a população e de desperdício de recursos escassos, tratando o que é diferente da mesma forma e o que é igual de forma diferente.

Apenas se compreende a gratuitidade dos manuais escolares como uma forma de populismo barato, ao nível do que o atual Governo critica noutros sectores políticos da nossa sociedade, privando, além do mais, quem realmente precisa de ajuda efetiva e justa para que os seus filhos e filhas tenham acesso ao elevador social.

Paradoxalmente, um país que luta com um enorme problema de dívida pública, chegando mesmo a recusar empréstimos da União Europeia com condições muito favoráveis, se não é capaz de dar bom uso aos dinheiros dos nossos impostos, quanto mais aos fundos que aí vêm!

Pelo direito de ter a melhor escola. A escola não pode esperar!

(1) Fonte: Pordata e APEL
(2) Fonte: DGEEC/ME – Observatório das Desigualdades

João Silva de Almeida

Fonte: Observador por indicação de Livresco

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Psicólogos mais presentes nas decisões de gestão escolar

Nunca se ouviu falar tanto da importância dos psicólogos para a sociedade como durante a pandemia COVID-19. O mesmo acontece na intervenção em contexto escolar, embora, antes da pandemia, já muitas escolas estivessem a contar com a psicologia para nortear a atuação.
“Com a pandemia tem havido uma preocupação maior em reconhecer a importância da gestão das emoções, das questões do autocontrole e da empatia, de promoção de estratégias para lidar com emoções mais negativas, na capacidade de resiliência dos alunos e da própria escola”, começa por explicar a vice-presidente da Ordem dos Psicólogos, Sofia Ramalho. E, portanto, acrescenta, “há uma sensibilização e um reconhecimento cada vez maior de todos os órgãos de gestão e administração escolar e entidades governamentais, pais e professores para a necessidade deste tipo de intervenções e para a importância que a saúde e o bem-estar psicológico têm na aprendizagem”.

Quando reflete sobre passado e presente da psicologia na escola, Sofia Ramalho, fala de um novo paradigma. “Nos últimos anos houve mudanças muito significativas que nos trazem de um contexto em que o papel do psicólogo em contexto escolar era muito mais remediativo para um contexto mais atual em que o papel é mais preventivo.” Passos “muito significativos”, reconhece, foram ainda dados com a publicação dos decretos-lei 54 e 55 sobre educação inclusiva e autonomia e flexibilidade curricular.

Com a inclusão de todos os alunos, e não apenas dos que apresentavam dificuldades de aprendizagem, o decreto-lei 54 prevê a presença do psicólogo nas equipas multidisciplinares de apoio à educação inclusiva. “O psicólogo passa a ter um papel muito mais de consultoria e assessoria às tomadas de decisão nos órgãos de gestão e administração escolar do que um papel de intervenção individual apenas com o objetivo de recuperação de aprendizagens e de remediação de problemas psicológicos”, constata Sofia Ramalho.

Para fazer face ao que Sofia Ramalho descreve como uma “intervenção cada vez mais preventiva e promotora de escolas saudáveis”, nos últimos anos têm sido frequentes as chamadas de atenção da Ordem dos Psicólogos às entidades governamentais para a necessidade de contratar mais profissionais. Um apelo que, recentemente, se traduziu em medidas para o reforço do número de psicólogos nas escolas.

Ainda assim, admite a vice-presidente, continua a ser importante a diminuição do rácio que em 2019 dava conta da existência de um psicólogo para 1100 alunos nas escolas públicas portuguesas. Muito aquém do rácio de um psicólogo para 500 alunos existente nos estabelecimentos de ensino privado.

Ora, “diminuir ainda muito mais este rácio ajudaria a responder às especificidades das escolas”, advoga Sofia Ramalho, enumerando algumas delas: “Temos escolas cujas realidades do ponto de vista das populações vulneráveis são muito significativas; temos escolas com populações grandes migrantes, com muitos alunos com dificuldades de aprendizagem, ou cujas famílias têm baixos rendimentos socioeconómicos; escolas com problemas de bullying e de indisciplina muito significativos; ou seja, temos aqui um conjunto de situações que deveriam também beneficiar de um rácio diferente.”

Prevenir em vez de remediar

A mudança para um papel interventivo, de que fala a vice-presidente da Ordem, acontece “nas diferentes dimensões do aluno e não apenas na aprendizagem e junto de todos os elementos da comunidade educativa”. Mas torna-se ainda mais essencial no contexto da pandemia, afirma Sofia Ramalho.

“Os psicólogos têm neste momento um papel fundamental na consultoria aos órgãos de gestão e a toda a comunidade educativa, precisamente, para a tomada de decisões que permitam a melhor e mais eficaz compatibilização das medidas sanitárias com aquilo que são as tarefas de desenvolvimento próprias das crianças e dos jovens e com as medidas de promoção da saúde psicológica e mental.”

Sofia Ramalho considera ainda crucial a monitorização da saúde psicológica da comunidade educativa, tendo em conta as circunstâncias impostas pela pandemia. Alunos que chegam à escola com preocupações, ansiedades, experiências de perda ou de luto. Professores que além das suas próprias experiências da pandemia, podem estar a viver situações de stress e burnout. Por essa razão, reconhece novamente o “papel essencial dos psicólogos nesta matéria: “Cabe-lhes identificar esses indicadores, aprofundar a literacia sobre COVID-19 e promover nos alunos, professores e em todos os elementos da comunidade comportamentos pró-saúde e pró-sociais.”

Conciliar socialização e segurança

“As medidas de distanciamento físico são importantes mas, por outro lado, há necessidade de socialização, de interação social, de brincar, desenvolver atividades lúdicas e pedagógicas”, contrapõe a psicóloga. Questionada sobre como conciliar a segurança sanitária com a necessidade de socialização, Sofia Ramalho, esclarece que “dentro daquilo que são as orientações da Direção-Geral da Saúde, é importante que os psicólogos possam, com base na ciência psicológica assessorar as tomadas de decisão das direções de escola ao nível da preparação e da gestão dos espaços escolares”.

Inclusive, ajudar a considerar aspetos como a presença das famílias na escola. “Ter em atenção os momentos de separação das crianças pequenas, respeitar as condições de segurança mas, ao mesmo tempo, respeitar a importância da presença dos pais para que as crianças se adaptem e se integrem nas creches, nos jardins de infância ou nos primeiros anos de escolaridade.”

A par das recomendações do Ministério da Educação para a consolidação das aprendizagens, Sofia Ramalho, insiste na importância da recuperação emocional dos alunos. “Sem essa recuperação socioemocional e da saúde psicológica, sem esse bem estar psicológico, as crianças e os jovens não estarão em condições de fazer a recuperação das aprendizagens porque sabemos que essa condição é essencial para que eles tenham motivação e se envolvam no processo de ensino-aprendizagem, se este mínimo não está garantido vai ter um impacto muito significativo.”

Fonte: Educare

Alunos com deficiência intelectual “precisam muito mais do que serem entretidos nos intervalos”

Continuam a faltar técnicos para acompanhar os alunos com deficiência intelectual que frequentam a escolaridade obrigatória, alerta a Humanitas - Federação Portuguesa para a Deficiência Mental, que representa 40 associações do sector.

O anúncio da contratação de assistentes operacionais para as escolas para acompanharem, neste ano letivo, os alunos com necessidades educativas especiais é uma boa medida, mas muito redutora, no entender da presidente da Humanitas, Helena Albuquerque.

“É uma medida muito boa, claro, mas, o que é de lamentar, é que esta devia ser a última medida que o Ministério tomava e não a primeira, não reduzir o apoio das crianças com Necessidades Educativas Especiais (NEE) nas escolas ao acompanhamento de Assistentes Operacionais. Isto é uma medida extramente redutora daquilo que nós precisamos”, diz.

Estão a ser esquecidos alunos que, por causa da quarentena e das escolas encerradas, perderam competências, que costumam ser trabalhadas com as equipas dos Centros de Recursos para a Inclusão (CRI), numa parceria com Instituições ligadas à deficiência.

“Volta-se ao ano letivo, há um discurso do Ministério da Educação (ME) - e muito bem - que nesta primeira parte, têm de se recuperar as aprendizagens que não se fizeram. Num período destes, não há reforço nenhum destas equipas?! Antes pelo contrário, nós vemos, e mais um ano, as equipas diminuírem e a prestarem um apoio menor do que nos anos anteriores. “, lamenta Helena Albuquerque, que é também presidente da APPACDM de Coimbra onde o apoio aos alunos NEE “chega a ser de menos 100 horas por semana” porque o financiamento para estas equipas não aumenta, desde 2015.

Questionado pela Renascença, o Ministério da Educação esclarece que irá ser feita “em conjunto com as instituições uma avaliação das necessidades e modalidades de financiamento para que se ajuste o financiamento às necessidades e aos serviços efetivamente prestados.

Além disso, o ME indica que “a opção por contratar Assistentes Operacionais não se opõe à opção de alocar mais técnicos especializados para as escolas, como se fez já este ano com a contratação de 900 técnicos no âmbito dos Planos de Desenvolvimento Pessoal, Social e Comunitário. Pelo contrário, o reforço de assistentes operacionais visa responder à principal necessidade identificada pelas escolas no âmbito da implementação da legislação sobre Educação Inclusiva”.

Helena Albuquerque lamenta que não seja outro o rumo. “Quando nós andamos há anos a lutar para que estes meninos tenham um acompanhamento técnico competente, tem sido sucessivamente recusado o aumento desse apoio técnico. Vir agora divulgar e expandir uma ideia dessas como essencial, para nós é inaceitável. Esses meninos precisam muito mais do que serem levados à casa de banho, do que serem levados ao almoço, do que serem entretidos nos intervalos”

Helena Albuquerque revela que, muitos pais de alunos com deficiência, estão a procurar outras respostas, como as antigas escolas especiais.

“Os pais estão descontentes, e nós estamos a ver subir o número de pais que pedem o encaminhamento para as escolas especiais, nós temos cada vez mais pedidos, portanto, alguma coisa se está a passar mal", remata.

A Humanitas enviou este alerta ao grupo parlamentar da educação inclusiva, coordenado pelo deputado social-democrata António Cunha.

Fonte: RR

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Manual "A participação cultural de pessoas com deficiência ou incapacidade: Como criar um plano de acessibilidade"

A Acesso Cultura elaborou o manual "A participação cultural de pessoas com deficiência ou incapacidade: Como criar um plano de acessibilidade" que será lançado, online, no dia 22 de outubro às 15h, na página de Facebook do Polo Cultural Gaivotas | Boavista, com tradução simultânea em Língua Gestual Portuguesa.

Com este manual, escrito em linguagem clara e inclusiva, a Acesso Cultura pretende ajudar as organizações culturais a planear e executar o trabalho que as tornará mais acessíveis - não só para o público, mas também para as suas próprias equipas e colaboradores.

Após o lançamento, o manual ficará disponível para download no website da Acesso Cultura​.

Fonte: INR

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Equidade no ensino escolar na Europa

(Clicar na imagem)

Este relatório fornece uma visão geral das estruturas e políticas de educação que influenciam a equidade no ensino escolar. Conecta estas características a nível do sistema ao desempenho dos estudantes em provas internacionais de avaliação de estudantes (PISA, PIRLS e TIMSS). 
Olhando para 42 sistemas educativos europeus, o relatório identifica quais as políticas e estruturas que estão associadas a níveis mais elevados de equidade no desempenho dos estudantes. 
O relatório examina as seguintes características do sistema educativo: participação na educação e cuidados na primeira infância, financiamento escolar, diferenciação e tipos de escola, escolha da escola, políticas de admissão, sistemas de acompanhamento, repetição de notas, autonomia escolar, responsabilidade escolar, apoio às escolas desfavorecidas, apoio aos alunos com baixo aproveitamento e oportunidade de aprender.
Acesso ao relatório, em língua inglesa, aqui.

Traduzido com a versão gratuita do tradutor - www.DeepL.com/Translator

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A sexualidade dos deficientes

O direito à saúde sexual das pessoas com deficiência ou incapacidade está consagrado. Na prática, é negado. Negligenciado. Enquanto o tema for tabu para um deles, será problema, com consequências sérias, para todos nós.

Escolheu um vestido preto com bolinhas brancas. Formal, ajustado ao corpo. Não muito. Juntou-lhe uns saltos altos, a fingir verniz. Enfeitou as mãos com anéis. Pintou os lábios de carmesim. Tudo por entender que o "assunto é importante". Andreia, na casa dos 60 anos, mente no nome, não na idade. E aceita falar. Mas, antes, um dos telemóveis toca. A brasileira ignora. Toca novamente. "Desculpe", atende. "Sim querido, faço massagem e convívio." Mas faz mais. Faz o que muitas outras profissionais do sexo, como ela, dizem não conseguir: atender deficientes e pessoas com paralisia cerebral. "Não me incomoda. São seres humanos como todos nós." Antes dela, várias aceitaram dar uma entrevista. Algumas chegaram mesmo a fazê-la. No fim, arrependeram-se. Andreia não. E assim, no quarto onde dorme e trabalha, conta, sem pedir nada em troca, como foi aquela primeira experiência com alguém "que não tinha mais problemas do que qualquer um de nós".

"Perguntou se eu não tinha problema em atender pessoas com deficiência." Na chamada, descreveu o cenário. "Dificuldade na fala, paralisia num dos braços e numa perna." Andreia garantiu-lhe que só não partilhava a cama com o preconceito. No dia e hora, X apareceu. "Não só fiz a massagem, como depois do convívio, vendo o estado das unhas dele, grandes, tanto as dos pés como das mãos, perguntei se podia arranjar. E comoveu-me quando ele lamentou: "ó dona Andreia, eu não tenho mais dinheiro, só os 40 euros". "Meu querido, não se preocupe, está tudo incluído"." O valor acordado era para uma hora. X ficou mais de duas. "Só tratei de uma pessoa que estava precisando. Dando afeto e atenção."

Andreia não tem ideia do impacto que esse acolhimento provocou. Mas Y, com paralisia cerebral, pode explicar. Há três anos que não recorria à prostituição. Este ano, voltou a fazê-lo por encontrar alguém que não o "explora" por ser "diferente". A última mulher que aceitou recebê-lo cobrava-lhe 40 euros por 15 minutos. Agora, consegue que uma hora de companhia tenha o mesmo valor. "As pessoas com deficiência também devem ter uma vida sexual ativa e normal como as outras. Um corpo "torto" também tem prazer. Também quer prazer. Estes preconceitos existem e o pensamento de que enquanto deficientes somos seres assexuados é algo que apenas está na cabeça de alguns. Erradamente." Com 43 anos, Y já só quer mimos, não sexo. "Estar com quem se importe, porque ir às meninas já não me diz nada." Ainda assim, dada a sua condição, recorrer à prostituição foi quase sempre a única solução. E nem era fácil. Ou porque precisava que algum amigo concordasse em ajudá-lo, levando-o. Ou porque corria o risco de ser rejeitado por elas. "Por preconceito ou por medo."

Aos 37 anos, Liliana Viana olha a sua vida amorosa e sexual em perspetiva. Para a poetisa com paralisia cerebral, amante de arte e de viagens, a adolescência foi "absolutamente pavorosa". Razões? A primeira vez que os seus lábios tocaram os de um rapaz, "ao de leve", foi durante um joguinho entre amigos. "Calhou-me a criaturinha mais feia da turma." Ainda assim, admite, "foi uma oportunidade". Uma situação embaraçosa que se repetiu, não por azar, "mas porque era sempre a deficiente". Lembravam-lhe com frequência. "A sexualidade para mim foi e é um problema." Romântica desde que se conhece, sonhou com o príncipe encantado. Com o casamento, com os filhos. "E eu era gira e magra, mas aos 20 continuava sem ter dado um beijo a sério. Foi um desespero."

"Se fosses uma mulher normal..."

Nessa altura, já na faculdade, começaram a surgir os amigos coloridos. Um termo usado por estigma. "Sim, eles não assumiam uma namorada com deficiência." Termo que lhe foi condicionando a forma de ver os relacionamentos. De se entender enquanto mulher. Um desses amigos coloridos manteve o rótulo por sete anos. "Na verdade, foi uma relação longa, mas ele só aparecia de vez em quando." Hoje, percebe, era manipulada. "Tinha uma necessidade tão grande de afeto e de encontrar alguém, e no meu caso não é propriamente fácil, que eles usavam isso contra mim." Esse em específico dizia-lhe: "Se fosses uma mulher normal os homens faziam fila". Liliana sentia que era.

Mais à frente, passou a frequentar discotecas. E, brinca, "às escuras os defeitos mal se viam". Os convites para cafés que se seguiam obrigavam-na a preparar terreno. Contava que tinha paralisia cerebral. "Um dia, um quis saber se ainda assim eu era mulher." Nada por mal, mas as frases gravadas na memória. Pior quando eram ditas pelos amigos. "Ó Lili, já que não vais ter família, filhos, nem essas preocupações, podes estudar até ao fim da vida." O problema é que Liliana queria viver. Apaixonar-se, ser feliz. Mas a lista de deceções é grande. "Eu tenho hipertonia muscular, não se vê, mas causa-me bastante sofrimento." Dores pavorosas. Espasmos sem fim. Um desses "namorados" não percebia. "Chegou a olhar-me nos olhos, enquanto fazíamos amor, e perguntou: "porque é que estás a fazer essa cara?"." A vergonha prolonga o silêncio.

Recentemente, voltou a ter uma relação. Iludiu-se, achou que ia resultar. O namorado era atencioso, assumiu-a, passeavam, mas depois... "Ele queria uma dona de casa."A vida sexual também não encaixava. "Até porque eu própria ainda estava a perceber este corpo em mudança." Voltou a experimentar a sensação do fracasso. "Gente como eu dá trabalho." E agora só pensa: "Eu vou ficar pior, um dia vou precisar que tomem conta de mim. Quem vai querer ficar com uma pessoa como eu? Eu sei o que é ser um peso para outra pessoa. Se ficar sozinha, que seja. Já chorei muito, mas não vale a pena."

Inês Braga e Ricardo Alves vivem uma realidade oposta, navegam na esperança. Mesmo que a paralisia cerebral a ela lhe taxe com 95% de incapacidade e a ele com 85%. O que lhes falta em mobilidade compensam em amizade, amor e boa-disposição. Conheceram-se na Villa Urbana de Valbom, unidade da Associação do Porto de Paralisia Cerebral (APPC), um edifício que acolhe, entre outras valências, um regime de habitação permanente, em apartamentos individuais, com mais de 30 pessoas. É lá que o casal vive. Cada um no seu canto. Por opção. A jovem, de 34 anos, conta que conquistar o amor foi uma tarefa difícil. "Agora costumo dizer, na brincadeira mas a sério, só o largo quando virar lésbica."

A relação dura há quatro anos. O pedido de namoro seguiu os preceitos. Com champanhe e alianças. Estão comprometidos. Entregues um ao outro. Em tudo. Aos 44 anos, Ricardo confessa que foi preciso Inês chegar à sua vida para descobrir todo um outro mundo, sem tabus. "Foi a primeira mulher que eu vi como veio ao mundo. Foi a minha primeira parceira sexual. Com quem aprendi, muitas coisas." No sexo, como no resto da vida, complementam-se, sabendo das suas limitações. Inês fala pelos dois. "A sexualidade vai muito para além do ato sexual, da penetração. A atenção e o abraço são mais fortes. Os laços afetivos valem mais do que cinco minutos de prazer."

Não há coitadinhos

Para tudo é preciso uma aprendizagem e adaptação. "E se não dá para a direita dá para a esquerda. Temos de nos aceitar tal como somos." Esse é que é o desafio: como é que um casal de namorados reage à limitação do outro? "Eu sou o complemento do Ricardo. Há coisas que eu não consigo fazer e o Ricardo ajuda-me. Há coisas que o Ricardo não consegue fazer e eu ajudo." A ideia que como pessoas com deficiência querem passar é clara. "Não há coitadinhos", acentua Inês. "Há duas pessoas que têm vontade de ter momentos íntimos, mesmo que isso queira dizer que não seja o habitual sexo. É um complemento. Tem é de haver aceitação plena", acrescenta Ricardo. Primeiro deles, depois dos outros. Até porque, para estarem juntos, precisam da ajuda de uma terceira pessoa. Tem sempre de haver quem os dispa, quem os ponha na cama. Quem trate deles a seguir. Isto depois de terem o selo de aprovação da APPC.

Ali na Villa, o contacto sexual obedece ao cumprimento de alguns trâmites. Primeiro, as pessoas solicitam a vontade de estar juntas. Depois, ativa-se um protocolo, com entrevistas, consultas e avaliações, para que a equipa técnica e os psicólogos possam assegurar que há real vontade dos dois e que nenhuma das partes está a sofrer abuso ou a ser coagida a fazer algo que na verdade não queira, ou para a qual não está preparada. "No nosso caso, esse processo durou mais ou menos seis meses", esclarece Ricardo. No fim, depois de preparados, ficaram a sós. "Cientes que íamos fazer o que conseguíssemos fazer sozinhos, que é mínimo, mas é o que nos satisfaz." E ajuda não sentirem julgamento no olhar de quem está ali para os apoiar.

João, auxiliar, entende-os perfeitamente. Esconde-se atrás de um nome fictício para se proteger, para não expor a unidade em que trabalha, nem os utentes que, de certa forma, acabam por se tornar amigos. No que toca aos encontros íntimos, ele próprio já ajudou a "preparar casais". No início ficava reticente: "Não me queria envolver muito quando nos puseram a hipótese". Depois, refletiu. "Ao trabalhar ali, estava a fazer o que eles não conseguiam. Senti-me na obrigação." Até porque, como admite, "será sempre pior para eles do que para quem os ajuda". A solução é usar algum humor, "desanuviar o ambiente"". "Atualmente já é mais descontraído. Depois eles ficam na vida deles e só lá vou levantá-los de manhã." O assunto é, inevitavelmente, tema de conversa com os colegas. Porque todos reconhecem que "pedir para ter relações sexuais é constrangedor, mas necessário". No caso de João, a ajuda até ultrapassa o expediente. "Apoio no que posso. No que consigo." Nesse contexto, chegou a facilitar o contacto entre deficientes e prostitutas. "Mas há mulheres que se recusam por achar a condição deles repugnante. Têm nojo." João suspira. "O tema é delicado. Para já, a prostituição é a saída, principalmente para os homens. No caso das mulheres, nem sequer se ouve falar."

O presidente da Federação das Associações Portuguesas de Paralisia Cerebral, Abílio Cunha, põe o dedo na ferida. "O sexo feminino é mais fustigado pela família no que à sexualidade diz respeito. É tabu. E depois há o medo de que engravidem." Dos filhos serem também deficientes. De não saber como podem cuidar deles. "Criando nas pessoas grande angústia." O casal citado acima, por exemplo, já discutiu o tema. Quer Inês quer Ricardo gostavam de ser pais. Mas ambos chegaram à mesma conclusão. "Se já sozinhos é difícil, devido às nossas dificuldades físicas, imagine-se com um bebé. Teria de ser mais um encargo para alguém, pelo menos até a criança ter alguma autonomia."

Por estar a par desse género de receio, Abílio Cunha fala também na qualidade de marido e de pai, com paralisia cerebral. "As consultas de planeamento familiar existem para as pessoas com deficiência. Mas nem sempre elas vão." No seu caso, tal não foi preciso. Com Mónica, animadora sociocultural, teve dois filhos, um rapaz e uma rapariga. A paternidade foi como nas outras áreas da sua vida algo extraordinariamente normal. "Ou não faria sentido partilharmos uma vida. A dois", salienta Mónica. Mas, antes de aí chegar, Abílio estudou, até onde quis. Trabalhou na mercearia da família, tirou a carta, inseriu-se cedo nos movimentos associativos. Foi assim que em 1987 a conheceu na APPC. Não foi amor à primeira vista, reconhecem os dois. O relacionamento foi evoluindo naturalmente "como acontece com qualquer pessoa". E para Abílio o "ai, eu sou deficiente, nunca vou conseguir conquistá-la" nem lhe passou pela cabeça. O amor àquela rapariga fê-lo descobrir novas sensações, como o desejo sexual. "Não foi logo. Enquanto pessoa não sinto necessidade do ato sexual propriamente dito. Tem de ser conjugado com os sentimentos, com a afetividade, com o respeito." O namoro avançou. Em dois anos casaram-se. Passados mais dois, tiveram o primeiro filho. E em todas essas etapas houve quem se espantasse. Uma ou outra amiga que não compreendia como é que Mónica conseguia. A obstetra convencida que a grávida levava o irmão às consultas e não o pai dos seus filhos. Vizinhos que achavam que os amigos do casal que tinham paralisia cerebral só podiam ser irmãos de Abílio - "Coitadinha da vossa mãe, teve tantos assim".

Também houve episódios caricatos nas famílias, embora de forma mais ténue. "Para os meus pais, o meu casamento nunca foi uma hipótese, inconscientemente pensaram que eu ou viveria numa instituição ou na residência de algum familiar. No entanto, fui o primeiro dos meus irmãos a casar", goza Abílio. E Mónica também assume: "Mentiria se dissesse que nunca tive bloqueios". Como no dia em que contou quem era o namorado. "Foi um choque", que passou mal o conheceram. E quando o primeiro filho nasceu, a avó de Abílio tinha urgência em ver o bebé. Disse alto e bom som: "Deixa-me ver se não tens os pés e as mãos tortas do teu pai". Recordações que guardam com humor. "Temos de levar a brincar. Mas, coitadinha da velhinha, não sabia, achava que a paralisia cerebral era hereditária." Não é.

A afetividade e a autonomia da sexualidade na deficiência são quase sempre ignoradas e negligenciadas. "A começar pela família." A frase pertence à terapeuta ocupacional Daniela Lopes, que fez uma tese de mestrado na área. No fim, concluiu que as pessoas mais próximas, nomeadamente a família, acabam por constituir uma grande barreira à participação dos deficientes na sexualidade. "Muitas vezes porque negam durante muito tempo que a pessoa com algum tipo de limitação possa vir a ter interesse sexual em alguém." Por norma, o foco dos pais durante o crescimento de uma criança está muito voltado para as questões da aprendizagem, para a escola, para o andar, para a fala. "Durante toda a primeira infância até à adolescência, tudo o que devia ser trabalhado para preparar as pessoas para esta realidade não existe." E, no caso da deficiência, os técnicos também acabam por ir respondendo às dificuldades e necessidades que os pais apresentam, que estão muito no plano do que é visível, esquecendo-se a afetividade e a sexualidade. O problema é que, quando for abordado para ter uma relação sexual, "não vai perceber o que isso significa, o que implica". E assim se chega aos 17 e aos 18 anos com comportamentos imaturos face à sexualidade, "por ser uma novidade", porque o que descobrem por eles mesmos "não têm com quem partilhar". O que era evitável, defende Daniela Lopes. "Porque não é uma área à qual devemos dar um tratamento diferenciado. Devemos falar sobre ela como falamos sobre qualquer outro aspeto da vida. Entendendo quais são as necessidades que cada população tem. O nosso papel aqui é ir acompanhando toda esta evolução e ir facilitando dentro daquilo que é possível nas diferentes situações."

No que respeita ao contexto institucional, tem havido melhorias, mas ainda há muito a fazer. Principalmente na privacidade e no conforto dos utentes para que vivam a sua sexualidade de forma autónoma. Em contexto residencial, isso é mais evidente. "São várias as instituições residenciais que apenas têm quartos partilhados. E como é que podemos facilitar a vivência plena da sexualidade da pessoa quando não conseguimos garantir privacidade?" Mais. "Se eu em minha casa deixo entrar quem eu quiser, e se queremos que as pessoas neste caso com deficiência ou incapacidade tenham a sua casa, tenham a sua autonomia, porque é que elas não podem levar para dentro das suas casas quem elas bem quiserem?"

Questões que, confessa Abílio Cunha, estão longe de ter resposta. "Estamos no mesmo ponto de há 20 anos. O que é grave se pensarmos que nalguns casos, as pessoas nem masturbação conseguem fazer. É terrível. Tenho colegas que acabam os cursos superiores, superam muitas dificuldades, mas depois dizem: "a minha vida não faz sentido porque ninguém gosta de mim"." Mónica aproveita para lembrar que, no seu caso, se apaixonou por Abílio como podia ter-se apaixonado por outro rapaz. "Ele estava no grupo de amigos. Não é só com teses de mestrado na sexualidade, seminários e palestras que vamos lá. Porque isso não chega à realidade das famílias. A afetividade e o namoro vêm do contacto que temos uns com os outros. Faltando isso não pode haver o resto."

A crise na adolescência

No Mundo, aproximadamente 15% da população tem algum tipo de deficiência ou incapacidade. Em Portugal, estima-se que mais de 600 mil pessoas vivam com limitações a nível físico ou mental. A saúde sexual é considerada uma das dimensões centrais da saúde em geral e consagrada como um direito de todas as pessoas pela Organização Mundial de Saúde. No dia a dia falha.

Isabel Monteiro e Hélder Campos, os pais de Martim, que já conta 12 anos, andam preocupados. O filho tem uma "raríssima" que os próprios médicos ainda não conseguiram definir. Como ele, sabe-se que há mais sete casos no Mundo. À parte disso, acabaram de despertar para a sexualidade do filho. Mas, ao contrário de outros progenitores, não a negaram. Nem esconderam. Pelo contrário. Partilharam-na com a família, para que ninguém fosse apanhado desprevenido. Avisaram a escola, para que haja compreensão e até proteção. E pediram orientações à médica das doenças metabólicas, para facilitarem a vida do filho. "Temos vindo a procurar respostas desde que percebemos que ele está muito desenvolvido sexualmente", conta o pai, que já lhe tentou explicar e ensinar "o que deve fazer". Uma tarefa que não se tem revelado fácil. "Ele não nos deixa chegar perto, está a descobrir à maneira dele", constata Hélder.

As dúvidas são muitas e legítimas. O próprio menino entende que algo de novo se passa. E tem vergonha do que desconhece. "Inicialmente enfiava-se na cama", confidencia a mãe. "Aos poucos, fomos dizendo que era normal, mas que só podia acontecer no quarto, na casa de banho, à noite", para que não sofra, por exemplo, em ambiente escolar. "Como anda na natação e tem de se despir e tomar banho, há essa preocupação. Não sabemos se mais para a frente não vai ceder a impulsos e queremos ajudar." Terá apetite sexual certamente, mas como vai fazer para o aliviar? Conseguirá perceber que da prática do ato poderá haver consequências? "Não sabemos. " Como não sabem que recursos terão para o ajudar à medida que a criança se desenvolve. "Pode vir a precisar de acompanhamento, mas essa figura para já não existe. Devia ser um assunto mais abordado, principalmente com os pais. Estamos assim com um menino de 12 anos, imagine-se quando tiver 30", questionam-se.

Essa é a luta que Rui Machado trava há anos. Por informação, por esclarecimento, por soluções. O ativista dos direitos das pessoas com deficiência, membro da comissão coordenadora dos "(d)Eficientes Indignados" e da direção do "Centro de Vida Independente", tem uma doença neuromuscular genética e evolutiva. Só em adulto percebeu que a sua sexualidade tinha sido cortada da agenda das prioridades. Socialmente, o assunto compete com as questões do emprego, das acessibilidades e das muitas reivindicações legítimas deste grupo de pessoas. "Então optámos pela criação de um movimento isolado, próprio." Cuja missão é trazer para o espaço público português um debate negligenciado academicamente, institucionalmente, politicamente. À "Notícias Magazine" resume os três pontos que sustentam essa guerra. Um, somos um todo e esse todo tem de ser considerado. "É a normalização daquilo que é absolutamente normal, que duas pessoas estejam juntas por um sentimento, seja em que contexto surgir e tenham as pessoas as características que tiverem." Dois, é preciso conscientizar. A começar pelas próprias pessoas com diversidade funcional. "Para que percebam que têm o seu direito a uma vida sexual e afetiva. Ao longo do tempo, foi-lhes incutido padrões de incapacidade, de incompetência, de invalidez, como desvantagem. Por incrível que pareça muitas delas aceitam o facto de não poderem ter uma vida afetiva." E, por último, denunciar e provocar o debate acerca das grandes dificuldades e entraves que vivenciam as pessoas com deficiência, na tentativa de se realizarem a nível sexual e afetivo. "Claro que para resolver um problema temos de o conhecer, quais são as barreiras que existem? Só assim podemos contribuir com soluções reais, sejam elas quais forem. Temos de perceber a realidade do país e implementar alternativas."

A assistência sexual é uma direção. Contudo, antes importa saber o que é. Já há vários modelos lá fora. Dinamarca, Holanda, Suíça, Espanha, República Checa. E em todos a figura de assistente sexual se revela distinta. "Por isso, é importante discuti-los, saber o que se adequa ao nosso país." No movimento em que Rui tem voz ativa, há uma preferência pela ideia de um ativista catalão, Antonio Centeno, que defende a figura de assistência sexual como facilitador do acesso ao próprio corpo. "Ter alguém formado a ajudar em situações de masturbação, quando a pessoa não é capaz sozinha. Ou a ajudar casais com deficiência, que precisam do apoio de um terceiro elemento. Esta visão não estigmatiza a pessoa com deficiência, já que se distancia da prostituição, que não deixa de ser uma escolha possível, como é para qualquer pessoa." Aliás, defende Rui, "seria desejável que se acabasse com o vazio legal existente no nosso país sobre a prostituição, legalizando-a para segurança e dignidade de profissionais e clientes".

Não viver a sexualidade "tem implicações sérias e diretas no desenvolvimento pessoal de cada um, na autoestima, nas relações diárias", salienta Rui. O que é válido para quem não tem limitações como para quem tem. E para que não restem dúvidas de que os deficientes e as pessoas com paralisia cerebral não são assexuados, foi dado um nome bem polido a este movimento que trabalha por soluções. Chama-se "Sim, Nós Fodemos".

Fonte: JN