Joana foi sempre “segregada” por ser diferente, por parecer mais inteligente. A dada altura, a mãe quis levá-la a uma bruxa, porque achava que estava possuída. Fil começou a falar com nove meses e isso até foi motivo de orgulho. Os problemas a sério começaram na adolescência, quando deu por si a achar tudo e todos muito desinteressantes e resvalou para um estado depressivo. André sentiu sempre que não encaixava, mas andou 50 anos às escuras. Histórias de diagnósticos tardios, que são também uma viagem pelo espectro do autismo.
À primeira vista, Joana Varanda, natural de Sintra mas há oito anos estabelecida no Reino Unido, era uma espécie de menina-prodígio. Aos quatro anos, já lia e escrevia. Aos dez, aprendeu sozinha a falar inglês. Além das notas, que sempre foram altas. Tão altas que, certo dia, andava ela no quarto ano, a mãe de uma colega entrou esbaforida pela sala, furiosa por ela ter sempre notas mais altas do que a filha. Só que nada disto foi encarado pela família como motivo de orgulho. “Fui imediatamente ostracizada e segregada por parecer mais inteligente que eles”, jura Joana, que acusa a maior parte dos familiares de abusos verbais, psicológicos, até físicos. Só o pai escapa. De resto, quase todos achavam – e faziam questão de lho dizer na cara uma e outra vez – que ela era insolente, arrogante, que se julgava superior. “Era tratada como um fardo.” Também porque, apesar do brilhantismo na escola, tinha (tem) algumas dificuldades ao nível da comunicação. Sílabas trocadas, palavras que se atropelam, linhas inteiras de raciocínio perdidas. Além de outros traços que a tornaram sempre “peculiar”. Mutismo seletivo – transtorno de ansiedade caracterizado pela dificuldade em falar em dados contextos sociais –, crises súbitas e intensas de choro, interesses muito específicos e obsessivos, pelo Dragon Ball, pela Sailor Moon, por dráculas e vampiros. “A dada altura, a minha mãe tentou levar-me a uma bruxa porque achava que eu estava possuída.”
Para Joana, uma coisa foi sempre óbvia. “Desde muito cedo percebi que era diferente. Na maneira de pensar, de ver o Mundo, de comunicar.” Mas tardou até perceber a explicação. Certo é que teve sempre problemas com as regras de etiqueta e os códigos de interação social. Ora fazia perguntas consideradas desagradáveis, ora tinha dificuldades em interagir, ora era incapaz de manter uma conversa de circunstância. O simples facto de perceber quando era oportuno intervir, a meio de um diálogo, era o cabo dos trabalhos. Tanto que passava horas em silêncio, por não saber quando falar. E assim foi crescendo numa bolha sufocante de bullying e ansiedade extrema, em casa, na escola, mais tarde no trabalho. Para piorar, teve sempre grandes dificuldades em ler entrelinhas ou segundas intenções. À conta disso, acabou vítima de abuso por um colega de trabalho. “Por achar que ele apenas e só queria beber uma bebida fresca depois de sairmos. Afinal, era muito mais do que isso.” Oprimida por anos e anos de incompreensão e abusos, cortou com a família e mudou-se para Inglaterra assim que pôde. Lá, conseguiu, por fim, candidatar-se à faculdade, arranjou um part-time, licenciou-se em Literatura Inglesa, entretanto haveria de começar também um mestrado em Museologia e Ativismo Social (que ainda está a fazer). Pelo meio, conheceu o homem com quem acabou por casar. E que a ajudou, por fim, a encaixar as peças de um puzzle que sempre lhe pareceu desconexo. Foi ele que, pela primeira vez, se apercebeu – ou pelo menos foi o primeiro a dizê-lo – que a esposa tinha traços claros de pessoa autista.
Joana ouviu e nada fez, percebeu que fazia sentido, mas deixou a vida correr. Só que, entretanto, veio a fase de procurar trabalho e as dificuldades voltaram. “Andei dois anos à procura e não consegui nada, sobretudo porque tinha muita dificuldade em comunicar em entrevistas.” Foi então que se decidiu a seguir o conselho do marido e a procurar um diagnóstico oficial. Como em Inglaterra a lista de espera era interminável, e os preços no privado incomportáveis, agendou uma consulta numa clínica portuguesa. E o diagnóstico não deixou margem para dúvidas. Tempos mais tarde, haveria de partilhá-lo com a mãe, quando ela a “descobriu” online. A resposta do outro lado foi arrasadora. “Eu sempre soube que tu eras maluca”, repete Joana, a mágoa que aquelas palavras lhe causam está-lhe cravada na voz, nos olhos, em cada nesga de pele. Também por isso, por ter noção que o assunto está impregnado de estigma e equívocos, faz questão de deixar um sublinhado. “O autismo não é uma doença ou o fim do Mundo. Simplesmente, o nosso cérebro desenvolve-se de maneira diferente.”
Mas a ideia prevalente em grande parte da população é bem distinta. Em muitos casos, está exclusivamente associada à imagem de crianças não-verbais com abundantes estereotipias (ações repetitivas como balançar o corpo). Pedro Almeida, psiquiatra na clínica Mentanalysis do Porto e especialista no diagnóstico de autismo em idade adulta, chama a atenção para um equívoco recorrente. “Ainda há muito a noção de que o autismo é uma doença grave, que requer tratamento intensivo, senão uma cura.” E o que é o autismo afinal? “É uma neurodivergência, uma maneira diferente de ser”, resume. Carla Oliveira, psicóloga clínica do PIN (Partners in Neuroscience), centro para as perturbações do desenvolvimento, explica, a propósito, que “o cérebro [das pessoas autistas] está organizado de forma diferente, com umas áreas mais fortes que outras”, sendo que a área referente à comunicação e à interação social “não é tão forte”. “Isto faz com que acabem por experienciar as coisas de forma diferente das pessoas neurotípicas e por se comportar de um modo que não corresponde ao que é socialmente esperado.” Frequentemente, têm também interesses muito específicos e respostas sensoriais exuberantes perante dados estímulos. Raquel Tavares Lebre, vice-presidente da Associação Portuguesa Voz do Autista, lembra que as pessoas autistas se deparam muitas vezes com “sobrecargas” motivadas por estímulos sensoriais. “Podem sofrer episódios de convulsões, choro, gritos ou até autoagressão por estarem em sítios com demasiada luz ou ruído”, alerta.
“Imaginar personagens era tortura”
Mas os estereótipos errados prevalecem. O que também explica que muitas pessoas autistas cheguem à idade adulta sem qualquer diagnóstico – e muitas vezes, sem sequer suspeitarem. Foi o que aconteceu com Fil Botelho, pessoa não-binária de 30 anos, que pede para ser usada linguagem neutra quando nos referirmos ao seu caso. Começou a falar aos nove meses, com um ano já era fluente, sempre aprendeu tudo rapidamente. Por sorte, cresceu num contexto familiar amigável e isso também ajudou a que nunca desconfiasse. “Na minha família, o mais comum é ser-se super-rápido a fazer tudo e isso é motivo de orgulho.” Já a leitura não era a praia dela, até aprendeu a ler antes de entrar na escola, mas como também tem PHDA [perturbação de hiperatividade e défice de atenção, condição neurobiológica frequentemente associada ao autismo], sempre foi algo que lhe exigiu um esforço mental acrescido. “Além de que a minha capacidade de abstração era baixíssima, imaginar personagens para mim era tortura.”
De resto, aos olhos dos outros, pareceu sempre “normal”. “Consegui sempre ter alguns amigos, pertencia a vários grupos porque fazia várias atividades extracurriculares, ia a festas, mas muitas vezes a minha mãe tinha de me ir buscar, porque o barulho me deixava com dores de cabeça.” No fundo, “pertencia porque tentava pertencer”. “Nós temos uma capacidade de análise brutal e conseguimos perceber ‘ok, isto funciona assim, os códigos são estes’. Então começamos a mascarar. E pertencemos porque as pessoas não se dão conta do que somos. Mas eu não sentia que aquelas pessoas realmente fossem minhas amigas, na verdade não me interessavam, essa dificuldade foi uma constante. Para os outros eu era normal, para mim era só o vazio completo.” Algures na adolescência, a sensação acentuou-se. “Tinha notas muito altas na escola mas não era feliz. A dada altura, fiquei completamente deprimide, porque comecei a achar tudo extremamente aborrecido.” Ainda assim, manteve-se à tona, quantas vezes à custa de um esforço colossal, licenciou-se, fez dois mestrados na área da Música Clássica. “Mas sempre com um peso enorme em cima dos ombros e uma sensação de insatisfação brutal.” Depois veio o doutoramento e com ele um burnout, que acabou por ser revelador.
Isso e uma “dica” de uma ex-namorada, que chegou na mesma altura. “Ela disse-me: ‘Eu não quero ser ofensiva, se calhar vais levar a mal, mas tu tens muita pinta de ser autista.’ Pelos vistos, já se tinha apercebido durante a nossa relação, mas nunca me quis dizer nada.” Para Fil, foi um mundo novo que se abriu. Começou a ler incessantemente sobre o tema, foi-se identificando, procurou um diagnóstico junto de um psiquiatra especialista, tudo confirmado, a ex-namorada tinha acertado na mouche. As dificuldades não desapareceram como que por magia, mas, de alguma forma, as respostas ajudaram a encontrar-se. “Entrei num processo de desmascaramento para perceber quem eu realmente era. Mas a sociedade ainda não está preparada para que eu possa viver como sou. Com o burnout fiquei desempregade e, desde então, tem sido difícil arranjar emprego. Antes não estás bem e não sabes porquê e depois não estás bem, mas sabes porquê.” Só que, muitas vezes, nem o diagnóstico é fácil de obter. “A maioria dos psiquiatras não gosta muito desta versão do autismo de baixo nível e altas capacidades. Tratando-se de uma pessoa produtiva e aparentemente sem dificuldades, muitos acabam por não diagnosticar”, realça Fil. Pedro Almeida, psiquiatra, dá-lhe razão, reconhecendo que há uma visão “patologizante”, mesmo dentro da comunidade médica. E que, muitas vezes, a procura de diagnóstico “não é aceite”.
Também Raquel Tavares Lebre aponta o dedo à “falta de conhecimento de profissionais de saúde”. “Recebemos feedbacks horrendos, no que toca à dificuldade de diagnóstico e mesmo a falta de conhecimento, com muitas pessoas que relatam casos em que os médicos dizem coisas como ‘não pode ser autista porque consegue olhar nos olhos’, ‘porque tem trabalho’, ‘porque consegue viver sozinho’, ‘porque tem um relacionamento e filhos’.” Um entrave a somar à tal “ideia estereotipada” que prevalece na sociedade. E que é particularmente ingrata no caso das mulheres, sublinha Raquel, que também recebeu o diagnóstico de autismo já em adulta. “Existe toda uma questão social associada à mulher, que acaba por dificultar o diagnóstico. Se uma menina é muito muito tímida, é o que é esperado pela sociedade. Se for mais agitada, já é vista como histérica, ou maria-rapaz, raramente como autista. Depois, ainda há a questão do mascaramento. “Alguém que é autista desde cedo sente que é diferente. Mas, com base naquilo que observa na sociedade, tem tendência a mascarar os traços autistas, para tentar integrar-se.”
Mesmo ao nível da investigação, “há todo um enviesamento de género em relação ao autismo”, reforça. Até porque durante muito tempo se olhava para o autismo como uma questão exclusivamente masculina. “A amostra que existe ao nível da investigação são sobretudo meninos ou homens. E tudo isto vai impactar nas mulheres autistas, que acabam por não ter a compreensão e a aceitação desejadas, embora hoje se saiba que o autismo não tem género, não difere de homem para mulher.” O problema é que este enviesamento reforça o mascaramento feminino. “Porque as mulheres sentem que se forem como são vão sofrer opressão. Além de que muitas vezes acabam por ter uma série de diagnósticos – depressão, ansiedade, borderline – antes de chegar ao autismo.” Tudo fatores que ajudam a justificar os diagnósticos tardios. “Todos os dias chegam à associação pessoas que só souberam em adultas.”
Carla Oliveira, psicóloga, também se depara com um número crescente de adultos à procura de um diagnóstico. E avança com uma explicação. “Regra geral, os casos em que há comportamentos mais visíveis, com mais impacto em termos sociais e ao nível do comportamento, são diagnosticados na infância. Depois, há outros casos, em que estas situações acabam por ficar camufladas. São crianças que até estão bem integradas na turma, mas que não têm nenhum amigo de referência, que estão isoladas, mas não parecem sofrer com isso, que não dão problemas. E aí não se sinaliza. Muitas vezes, também têm famílias que vão acomodando as situações, que instintivamente começam a evitar sítios com muito barulho, por exemplo. E acabam por ficar mais protegidas. Muitas vezes, a faculdade é o ponto de viragem, porque surgem dificuldades que até então foram sendo ultrapassadas. E aí acabam por ter de pedir ajuda, muitas vezes com quadros depressivos, de ansiedade, défice de atenção.” Mas casos há em que o desconhecimento se prolonga durante décadas.
Lia enciclopédias e gostava de apanhar rãs e cobras
Foi o que aconteceu com André Simões, de 52 anos. O diagnóstico chegou nem há dois anos. Em garoto, foi sempre confundido com “um menino introvertido”. “Sempre fui muito reservado, não brincava com outros meninos, estava sempre metido a um canto, nunca tive um grupo de melhores amigos. Sempre fui posto de parte e sempre me autocoloquei de parte. Quando muito tinha um ou outro amigo a quem me dedicava de forma obsessiva.” Por outro lado, também ele aprendeu a ler sozinho e muito cedo (a chamada hiperlexia, muitas vezes associada à neurodivergência), o que não raras vezes lhe valeu, erradamente, o epíteto de sobredotado. Até porque lia obsessivamente e livros muito à frente para a idade, enciclopédias, romances, o que fosse. E ainda tinha outros interesses invulgares. Um pouco mais crescido, com nove, dez anos, ia para os pântanos próximos de casa e apanhava todo o tipo de animais. Rãs, lagartos, cobras. “Felizmente a minha mãe, como era professora de Ciências, nunca se importou muito com isso.” Mas as dificuldades na interação social e os interesses atípicos para a idade foram sempre passando relativamente despercebidos. Na verdade, mesmo ele só começou a ligar os pontos mais tarde, quando soube mais sobre o autismo.
Pelo meio, as diferenças face às pessoas que o rodeavam foram-se exponenciando. “Sempre vesti roupas diferentes, comecei a usar brincos desde muito cedo, nunca me senti confortável num grupo porque não tenho assunto nem sou capaz de fazer conversa de circunstância. Ou até sou, mas incomoda-me tanto que prefiro não o fazer, porque me esgota fisicamente. É algo que evito a todo o custo. A não ser que se trate dos meus assuntos de interesse, aí já não tenho dificuldade nenhuma.” O que também ajuda a explicar uma parte do sucesso que teve na vida académica e profissional. André é investigador e professor universitário na área dos Estudos Clássicos e nunca sentiu que ser autista o prejudicasse nesse campo. Pelo menos não na componente letiva. “A dar aulas não me custa nada falar porque não estou a fazer conversa, estou a falar de um interesse especial que tenho desde muito pequeno.” Já na componente não letiva, as limitações vêm ao de cima. “Interfere de forma clara na criação de redes de trabalho com outras universidades e investigadores. Porque isso depende muito da socialização em congressos e de conversas de circunstância que eu não sou capaz de fazer.”
Com cerca de 20 anos, recorda-se de estar a falar com uma amiga e de ela lhe dizer, algo irritada: “Tu tens de reagir quando eu falo contigo!” Ele foi apanhado de surpresa. “Nunca me tinha dado conta de que não reagia. A partir daí, comecei a fazer um esforço de dizer a mim mesmo: ‘Está na altura de fazer que sim com a cabeça, de dizer ‘hum hum’.” Uma permanente artificialidade que se torna extenuante. Ainda assim, não pensou em autismo. “Foi só com as redes sociais, quando comecei a ver outras pessoas com diagnóstico a descrever o que sentiam, que suspeitei do que podia ser, porque percebi que me estavam a descrever a mim. Até aí, a imagem que eu tinha do autismo era a imagem estereotipada.” Na altura, já andava a ser seguido em psiquiatria. “Este esforço constante traz toda uma carga de depressão crónica”, destaca. Portanto, decidiu abordar o assunto com o médico que o seguia, já depois de ter feito um teste online, que tinha dado um “grau elevadíssimo”. O diagnóstico não tardou a ter confirmação oficial. E mudou alguma coisa desde então? “Noto melhorias, sobretudo porque deixei de me forçar a encaixar em situações. Antes, se me sentia incomodado num sítio, pensava ‘deixa-te estar, que parvoíce, as pessoas estão todas bem aqui, porque é que tu não hás de estar?’. Agora não, simplesmente vou-me embora. Aprendi a proteger-me daquilo que sei que me vai prejudicar. E o facto de haver uma explicação também ajuda a diminuir a ansiedade.”
Pedro Almeida, psiquiatra, também enfatiza a importância do diagnóstico, sobretudo numa população em que a prevalência da depressão, ansiedade e burnout é elevada. “Ajuda as pessoas a identificar as suas necessidades e a procurar determinadas coisas que as ajudam, sejam tampões para os ouvidos, óculos de sol ou outros dispositivos. Depois, a questão das necessidades sociais, porque são pessoas que têm dificuldade na socialização e acabam por socializar melhor com outras que também são autistas, isso dá-lhes um sentido de grupo. E ainda porque o diagnóstico é algo que, de alguma forma, explica a sua vivência.”
Mas quais são então os sinais que podem ter passado despercebidos ao longo da vida e que devem levar à procura de um diagnóstico? “É sempre uma conjugação de sinais. Por um lado, uma grande ansiedade social, principalmente com desconhecidos e grupos, uma necessidade de mascarar atitudes e reações nas interações sociais, imitando os comportamentos dos outros, uma forte tendência à introversão. Por outro, uma sensibilidade sensorial aumentada, ou seja, pessoas que são muito afetadas por ruídos ou por cheiros. Não quer dizer que uma buzina muito alta não possa incomodar uma pessoa neurotípica, por exemplo. A diferença é que no caso de uma pessoa autista o incómodo pode levar vários minutos a passar. Também pode haver uma grande dificuldade com mudanças de rotinas, ansiedade extrema, interesses muito específicos e uma comunicação mais direta que se confunde com brusquidão.” Carla Oliveira acrescenta outros pontos. “Pode haver um conceito de amizade ou namoro distinto do que é socialmente ou culturalmente esperado. Às vezes, temos pessoas autistas que são muito mais pragmáticas nos relacionamentos.” A psicóloga fala ainda de uma certa “rigidez”. “Há dificuldade em aceitar que as coisas possam ser feitas de outra forma, um pensamento de tudo ou nada, de preto e branco, é difícil compreender que há zonas cinzentas. Além de uma compreensão mais literal das coisas. ”
Sinais que vale a pena partilhar e repetir para que casos como os de Joana, Fil ou André, que só ao fim de décadas souberam que eram autistas, comecem a diminuir com o tempo. André, que precisamente por isso começou a falar sobre o tema no TikTok, chama a atenção para a necessidade urgente de sensibilizar. “Falha sobretudo uma maior consciencialização por parte da sociedade. Contra mim falo. Cheguei aos 51 anos sem saber que era autista. Quando vemos o autismo nos filmes, só vemos os dois extremos do espectro: ou vemos o autista com problemas cognitivos que não consegue falar, ou no outro extremo o génio matemático, que consegue decorar o mapa inteiro de uma cidade. Fora disso, fica a grande maioria das pessoas autistas, que, não se identificando, não conseguem suspeitar que o são.” Também Raquel Tavares Lebre reconhece que há ainda “um longo caminho a percorrer”. “O autismo continua a estar muito associado à ideia de patologia, a ser visto como uma doença, como um problema, como algo que temos de tentar mudar. Enquanto estiver associado a este tipo de premissas, ainda temos muito a fazer.”
O desafio crescente nas escolas e a falta de números rigorosos
Além do aumento considerável de diagnósticos de autismo na idade adulta, também o número de crianças autistas sinalizadas nas escolas segue em crescendo, o que se traduz num desafio adicional para pessoal docente e não-docente. Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, dá conta disso mesmo. “Cada vez temos um público mais heterogéneo, com necessidades específicas, e isso sente-se também ao nível do autismo. Cada vez há mais miúdos com diagnóstico e os professores queixam-se que são precisos mais apoios, particularmente ao nível dos assistentes operacionais”, destaca o docente, que sublinha a importância de reforçar a formação para atender às necessidades destes alunos. Dificuldades que também chegam à Associação Portuguesa Voz do Autista. “Recebemos muito feedback de professores que se deparam com cada vez mais crianças autistas nas escolas e que nos pedem ajuda, porque sentem uma necessidade urgente de saber como lidar, de como ajudar em caso de sobrecarga, por exemplo. E mesmo ao nível dos métodos de aprendizagem, sentem que há uma lacuna.” Mas o número de pessoas autistas está mesmo a aumentar? A pergunta não pode ser respondida de forma exata. Desde logo, porque faltam números rigorosos e estudos transversais, sobretudo em Portugal. Mundialmente, estima-se que 1% da população seja autista. No nosso país, um estudo epidemiológico publicado em 2005 estimava que 0,09% da população apresentasse sinais de autismo. Um outro estudo, de 2020, que incidiu sobre as crianças da região Centro entre os sete e os nove anos e foi desenvolvido no âmbito de um projeto europeu sobre o tema, apontava para uma prevalência de 0,5%, num total de 50 mil pessoas. Cinco vezes mais, portanto. Um aumento que tem uma explicação simples, avança Pedro Almeida. “Desde 2013 que houve um expandir do autismo em direção a um espectro e passou-se a abranger dinâmicas e grupos que até aí ficavam de fora. A partir daí, houve um boom de diagnósticos. E o facto de haver uma maior consciencialização também ajuda, porque hoje já temos muitas pessoas que nos procuram por sua iniciativa.” De resto, para lá da revisão dos critérios e da maior sensibilização, “não existe nenhuma evidência científica” de que hoje nasçam mais pessoas autistas. Por muito que, durante anos, tenham proliferado teorias infundadas sobre eventuais ligações do autismo às vacinas ou à vitamina D. “Hoje, sabemos que é genético, não há uma causa externa. O resto são mitos”, frisa Raquel Tavares Lebre.