quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Como ensinam os professores com deficiência?

Tinha 15 anos quando lhe diagnosticaram uma neuropatia periférica desmielinizante, doença crónica degenerativa que lhe afeta a mobilidade. Ana Paula Figueiredo tem 40 anos e há cinco que se desloca com o auxílio de um andarilho. É professora do grupo 520, de Biologia/Geologia, há 14 anos, mas por motivos de saúde tem apenas 11 anos de serviço contados. Em 2005, ficou efetiva na Escola Básica Integrada de Velas, na Ilha de São Jorge, nos Açores, e há quatro anos foi colocada por afetação na Escola Secundária Antero de Quental, na Ilha de São Miguel. Neste ano letivo, tem oito turmas do 7.º e 8.º anos do ensino regular. Dá aulas de Ciências Naturais, Higiene e Segurança no Trabalho, tem turmas de alunos com défice cognitivo ligeiro a profundo. De 2004 a 2008, deu aulas em São Jorge. Foram tempos difíceis. “Como, nessa altura, as limitações motoras ainda eram mais graves, e não me conseguia deslocar sozinha, nem realizar as diferentes atividades diárias sem auxílio, necessitei que os meus pais me acompanhassem, tal só foi possível por também eles serem professores reformados. Esse foi um período muito complicado pois não existia, na ilha, fisioterapia especializada nem um hospital com especialistas ou técnicos especializados”, recorda. Teve, por isso, de se ausentar da ilha várias vezes, obrigada a faltar às aulas, perdeu tempo de serviço. 

Há aspetos que, na sua opinião, podiam melhorar. Há cotas para a colocação dos docentes com deficiência, permitindo a afetação após três anos de estarem efetivos numa escola. “No entanto, isso, por vezes, implica a deslocação para locais muito afastados de casa, o que é difícil para os ditos normais, mas ainda é mais complicado para quem tem limitações e necessita de apoio da família, às vezes para as necessidades mais básicas”, refere. Além disso, os professores que necessitam de fisioterapia para sempre, como é o seu caso, “não têm qualquer redução de horário, ou são colocados a grandes distâncias dos centros de fisioterapia”. O que, por vezes, implica faltar às aulas ou à fisioterapia. “Os docentes que não conseguem conciliar os horários sobrecarregados pelas reuniões e pelas horas passadas em casa, pois as escolas não têm os espaços e materiais necessários, a preparar as aulas, com as horas necessárias para as consultas, fisioterapia, etc., têm de desistir da carreira docente e passar à carreira administrativa”, refere. 

Ana Paula nasceu para ser professora. Apesar de todos os contratempos, não se imagina a fazer outra coisa. O facto de ser portadora de uma deficiência motora limita a mobilidade, mas não influencia a forma de dar aulas. Como se cansa mais facilmente, passará mais tempo sentada do que os seus colegas. “Não existem cuidados especiais”, diz. E os alunos estão sempre dispostos a ajudar. “Antes de usar o andarilho, que também utilizo para transportar a pasta, eram os alunos que transportavam o material necessário às aulas. Independentemente da faixa etária – e este ano tenho alunos dos 12 aos 18 anos -, todos estão sempre prontos a ajudar, chegando a ‘brigar’ para escrever o sumário, apagar o quadro ou ir buscar alguma coisa necessária à funcionária”, conta. Fica muito contente quando vê a evolução dos seus alunos, entristece-se com o crescente desrespeito pela educação, pelos docentes. 

Se fosse ministra da Educação, Ana Paula adaptaria os currículos para as turmas adaptadas, tornaria as aulas e os temas mais práticos e as escolas não teriam obstáculos à circulação, permitindo que todos pudessem realizar as mais diferentes atividades. E não só. “Mostraria mais respeito pelos professores que são agentes de ensino e não meros criadores de documentos, ou seja, acabaria com a burocracia, o que levaria a que existissem mais horas para a elaboração de materiais tão necessários às aulas”. E alterava ainda o tempo para a aposentação, “pois a carreira docente é extremamente desgastante”. 

Aprendeu sem cadernos, ensina com estratégias
Carla Badalo não vê. Nasceu com um glaucoma congénito. Vê apenas claridade, nada mais. Chegou a andar com uma bengala, agora tem um cão-guia que a acompanha para todo o lado. Mas quando chega a um novo local para dar aulas, o cão-guia tem de perceber por onde pode andar, por onde tem de ir, precisa de instruções. “Não é fácil, não conheço o mundo tal e qual as outras pessoas”, diz. Mas, desde muito cedo, aprendeu que quem tem boca vai a Roma. Assim é. Procurou estratégias para contornar dificuldades. Estudou Línguas e Literaturas Modernas, Português e Francês, sem cadernos ou livros, sem ver como se escreviam as palavras. Como professora, encontrou métodos para ensinar. Em certas aulas pedia a máxima atenção aos alunos para detetarem erros que os colegas escrevessem no quadro. Quem descobrisse erros, se os houvesse, “ganhava” bolinhas, prémios pela atenção. 

Carla Badalo é professora desde 2001. No primeiro ano de estágio, deu aulas de Português e Francês. Em 2011, especializou-se em Educação Especial, na componente de deficiência visual, e em 2014 tirou uma nova especialização em Desenvolvimento Cognitivo e Motor. Carla Badalo é de Sintra e dá aulas a centenas de quilómetros de casa, em Viana do Castelo, no Agrupamento de Escolas de Abelheira. Quando começou a ensinar, não tinha materiais adaptados. A situação foi melhorando. Agora tem computador com Braille e com leitura de ecrã. Antes passava a matéria em acetatos ou em fotocópias. Neste momento, está na Educação Especial, coadjuva professores de várias disciplinas na parte da deficiência visual. A Educação Especial é a sua praia. 

Os alunos que têm deficiência visual precisam de acompanhamento. Precisam de ajuda em várias atividades do dia a dia. Há coisas muito importantes a ensinar, como contar dinheiro, orientação e mobilidade, treinar a visão. Carla Badalo aprendeu a adaptar-se a qualquer circunstância. O cão-guia são os seus olhos, mas ele precisa de orientações. “Não faz o trabalho por mim”. Mas quem aprendeu sem livros, sabia que era possível ensinar sem ver. E como fazia para corrigir os testes? Depois de algumas experiências, optou por pedir ou pagar, dependia da disponibilidade das colegas, para a correção das provas dos seus alunos. Um processo que fazia questão de acompanhar passo a passo, cada resposta dada. Um aluno não podia perguntar-lhe o que era aquele ponto de interrogação no teste ou por que razão aquela resposta estava mal e a professora não saber responder. “É preciso ter confiança no que se diz e no que se faz”. Se tiver de pagar essa correção, o dinheiro sai-lhe do bolso, não há qualquer comparticipação. 

Carla Badalo pede atenção aos colegas que trabalham com alunos com deficiência visual. Precisam de ter alguns cuidados. “Digam como se escreve, as vírgulas, as mudanças de linha, parágrafos, onde ficam os acentos nas palavras, os pontos finais, as maiúsculas”. Não se arrepende da profissão que escolheu. Mas não fica contente quando vê que as cotas para a colocação dos docentes com deficiência não são respeitadas à letra. “Nem sempre há vagas e a tutela não tem isso em conta”. O que está escrito nem sempre é aplicado na prática. 

Dar aulas sem ouvir 
Lurdes Gonçalves é professora há 18 anos, mas tem apenas 12 anos de serviço contados. Neste momento, dá aulas de Língua Gestual Portuguesa a uma turma da EB1 S. Bartolomeu, em Coimbra. É surda e garante que não ouvir não condiciona o seu trabalho na profissão que tem. “As minhas aulas baseiam-se em jogos, vocabulários, tiro ‘fotos’ com os gestos ligados aos temas.” Visitas a museus são uma forma simples e eficaz de chegar às crianças. “A minha forma de ensinar adapta-se ao tipo de criança e necessidade que cada criança tem. Logo, a habituação torna-se fácil”, refere. 

“Uma das minhas maiores alegrias é ver a evolução dos alunos ao longo do tempo, após muito esforço e dedicação”, afirma. Com os colegas não há complicações. Reconhece que a tutela tem lidado bem com os casos dos professores com algum tipo de deficiência até porque, no seu caso, não são necessários muitos cuidados. Mas se mandasse, haveria uma nova regra. “Se fosse ministra da Educação faria com que todos os professores soubessem ou aprendessem a Língua Gestual Portuguesa para que houvesse uma melhor comunicação com os alunos surdos”. 

O assunto foi colocado na agenda pela Federação Nacional dos Professores (FENPROF) e pela Confederação Nacional dos Organismos de Deficientes que, em novembro, organizaram um encontro subordinado ao tema “A deficiência e o (no) exercício da profissão docente”, que teve lugar na Secundária D. Pedro V, em Sete Rios, Lisboa. No final, destacou-se a importância de refletir sobre as soluções para melhorar e dignificar as condições de trabalho desses profissionais. Até porque, lembrou-se, da parte da Direção-Geral da Administração Escolar não há resposta aos pedidos de informação sobre a realidade dos docentes com deficiência. 

No site da FENPROF conta-se o que aconteceu nesse encontro. Quanto custa a um docente cego corrigir os testes dos seus alunos? Como pode um docente surdo exercer a sua atividade profissional sem ter consigo um intérprete de língua gestual? Em que condições trabalha um educador ou professor com mobilidade reduzida numa escola cheia de obstáculos arquitetónicos ou sem as necessárias adaptações de acessibilidade? Como ultrapassar dificuldades no acesso a equipamentos e materiais de apoio? Estas foram algumas das questões levantadas. 

“O professor cego tem que conhecer bem a sala e a instituição em que trabalha, tem que saber usar os equipamentos, tem que deslocar-se com segurança em todos os locais do seu espaço profissional. Autonomia, independência e segurança são fundamentais”, sublinhou Deodato Guerreiro, catedrático, especialista na área das ciências da comunicação, presente no encontro. Por outro lado, Paula Campos Pinto e Patrícia Neca, do Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, anunciaram que estão a preparar uma candidatura para apoio a um projeto de investigação, mais concretamente um estudo sobre a educação inclusiva que integrará a recolha de informação sobre a perspetiva dos professores com deficiência. 

“Os professores de Educação Especial não têm que substituir colegas. Nas deslocações entre escolas do agrupamento, o professor não tem que pagar do seu bolso a deslocação nem é obrigado a ter carta de condução”, referiu Mário Nogueira, secretário-geral da FENPROF, no final do encontro. “Não se deve confundir direitos legalmente estabelecidos com favores”, disse, acrescentando que, nas escolas, o que está na lei tem de ser garantido pelas direções.

Fonte: Educare

Escala de avaliação da autodeterminação ARC-INICO-PT

É a versão em Português da Escala ARC-INICO de Evaluación de la Autodeterminación, desenvolvido pelo Verdugo et al. (2014), com o consentimento do autor principal. Por agora, a escala foi validada em um teste piloto com sete usuários de um Centro de Atendimento à Pessoa com Deficiência, na cidade de Braga (Portugal).
Para aceder à escala aqui.

Fonte: www.researchgate.net

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Suspensão imediata das metas curriculares não convence nem os contestatários

As direções das associações nacionais de professores de Matemática (APM) e de Português (APP) – duas das organizações que mais críticas fizeram à criação das metas curriculares pelo ministério da Educação de Nuno Crato – não apoiam a vontade do PCP, que no dia 8 de janeiro pretende formalizar, no Parlamento, a recomendação ao Governo para que proceda à sua suspensão imediata. “Rever as metas e os programas das disciplinas são medidas urgentes, mas urgência não deve ser confundida com precipitação”, frisa Lurdes Figueiral, da APM.

As direções das associações de professores de Matemática e de Português reagiram desde o início de forma muito crítica ao estabelecimento, por parte do então ministro Nuno Crato, das metas curriculares. Estas estipulam objetivos gerais que se desmultiplicam numa série de descritores, onde se pormenoriza o que os professores devem ter ensinado e os alunos aprendido, obrigatoriamente, no final de cada ano. Por exemplo, para o 1.º ciclo, as metas de Português e Matemática definem um total de 177 objetivos e 703 descritores.

Nesta terça-feira, contudo, quer Lurdes Figueiral, da APM, quer Filomena Viegas, da APP, discordaram da estratégia do PCP, que também não deverá ser apoiada pelo Bloco de Esquerda e que não está de acordo com o definido pelo Ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues.

Em resposta a questões colocadas (...), o gabinete de imprensa do ME admitiu que "há problemas sinalizados em algumas das metas curriculares em vigor”, mas sublinhou que “considera essencial que as escolas beneficiem de estabilidade na execução do currículo, pelo que a eventual suspensão de documentos orientadores será suportada por uma avaliação científica e pedagógica". Além disso, especifica, “eventuais alterações serão enquadradas na definição do perfil de saída dos alunos no final da escolaridade e numa construção de uma verdadeira articulação curricular”. Promete envolver no debate as associações de professores.

“A suspensão imediata é impensável. O ministro Nuno Crato criou as metas e depois transformou as metas nos programas, pelo que isso daria origem a um vazio”, avalia Lurdes Figueiral, que pede “respeito pelos professores, que devem ser envolvidos no processo e não chamados a responder de um dia para o outro a alterações de normas legislativas”.

No mesmo sentido, Filomena Viegas, da Associação de Professores de Português, considera que “pior do que um mau documento de referência seria os professores ficarem, de repente, sem qualquer orientação”. “É preciso proceder a um debate alargado e, provavelmente, a alterações pontuais, que permitam suavizar problemas até encontrar uma solução definitiva”, considera a dirigente da APP.

Ambas as professoras consideram que o fim dos exames do 4.º ano, aprovado na Assembleia da República, se poderá ter refletido, já, numa alteração do comportamento dos professores em relação às metas que, frisa Lurdes Figueiral, estão indissociavelmente ligadas à avaliação externa. Para garantir isso, Filomena Pereira sugere que, numa primeira fase, o ME poderá, “simplesmente, retirar o caráter obrigatório das metas. Parece pouco, mas, como medida transitória, já seria significativo” disse. O ME ainda não anunciou se vai substituir as provas finais de avaliação de Português e de Matemática no 1.º ciclo por provas de aferição. “Se isso acontecer”, preocupa-se, “a rigidez na aplicação das metas tenderá a manter-se e é importante que os professores se centrem mais no ensino e na aprendizagem dos seus alunos do que no cumprimento de objetivos, muitos desadequados e até errados", defende. 

Um dos objetivos citados como representativos e quase caricaturais da vontade do então ministro de “medir, quantificar e avaliar” é o de que no fim do 2.º ano uma criança consiga “ler um texto com articulação e entoação razoavelmente corretas e uma velocidade de leitura de, no mínimo, 90 palavras por minuto”. “E se um aluno for muito capaz noutros aspetos e não atingir esta meta? Repete o 2.º ano, recebendo mais do mesmo, até a atingir?”, pergunta desde o início Filomena Viegas.

Fonte: Público

Tempos novos, conluios de sempre

(...)
2. A gestão da Educação continua entregue ao acaso, desconcertada, cabendo a iniciativa à AR e tornando claro que o PS não tem problemas identificados e prioridades estabelecidas. Primeiro foram abolidos os exames nacionais de Matemática e Português do 1º ciclo do ensino básico, na manhã seguinte à tomada de posse do Governo, cujo programa não continha tal medida. E, surpreendentemente, os deputados do PS votaram à revelia do seu próprio programa de Governo. Seguiu-se a extinção da Prova de Avaliação de Capacidades e Conhecimentos (PACC), com a aprovação dos projetos de lei do BE e do PCP. Os deputados do PS voltaram a votar contra o programa de Governo, que apenas postulava a suspensão da prova, “procedendo à reponderação dos seus fundamentos, objetivos e termos de referência”. Apenas um deputado, Paulo Trigo Pereira, se absteve, depois de ter defendido publicamente a PACC (Público de 7.12.15) com uma imprecisão de monta. Com efeito, depois de invocar a alta qualidade do respetivo sistema de ensino, afirmou que a Finlândia tem uma prova semelhante. Mas a verdade é que não tem. E basta ler o texto que o próprio citou para verificar que confundiu um exame rigoroso de fim de secundário e entrada na universidade com um exame aplicado a quem detém um grau académico de mestre, pelo menos, e um título profissional de professor.

No primeiro debate em que António Costa participou como primeiro-ministro, Paulo Portas perguntou-lhe se acabariam os exames dos 6.º e 9.º anos. Costa mandou-o ler o programa de Governo, afirmando que o mesmo era “muito claro quanto às provas que serão mantidas”. Costa errou. Costa mostrou desconhecer o programa do seu próprio Governo, que nada diz sobre as provas que serão mantidas ou eliminadas, apenas referindo a intenção de reavaliar a sua realização. E, cereja no topo do desconcerto, na manhã desse mesmo dia, o ministro da Educação havia garantido que não seriam tomadas decisões sobre os exames sem ser ouvida a comunidade educativa.

Perante o apagamento do Ministério da Educação, com a AR a substituir o Governo, seguem-se mais duas iniciativas da Oposição, sobre as metas e o financiamento do ensino privado.

Enquanto isto, na Universidade de Coimbra contratam-se bolseiros como cobradores de propinas, há unidades de investigação sem dinheiro para funcionarem, a incompetente direção da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, responsável pelo vergonhoso processo de avaliação das unidades de investigação e desenvolvimento continua em funções (como, aliás, substancial parte das chefias apostadas em se oporem a uma efetiva mudança política) e a primeira iniciativa do Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior foi pedir à OCDE que, daqui a 18 meses, faça o favor de nos comunicar o que decidiu sobre o nosso futuro!

Por Santana Castilho

Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

Fonte: Extrato da crónica do Público

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A ilusão da excelente dificuldade

Nas últimas semanas, a pretexto de alterações significativas na área da Educação, têm emergido argumentos diversos que veiculam preocupações de ordem distinta.

Os argumentos favoráveis às mudanças descrevem uma recalibração daquilo que é considerado prioritário no ensino, sublinhando a escola enquanto espaço de aprendizagem e de partilha de conhecimentos, de desenvolvimento de competências, de descoberta. Este tipo de argumento enfatiza aspetos como a motivação e o bem-estar das pessoas que constituem a comunidade educativa, com particular atenção para a discência e a docência.

Por outro lado, os argumentos desfavoráveis a alterações como a suspensão da avaliação de professores e professoras nos moldes em que estava definida ou o fim dos exames do 4.º ano a que estavam sujeitas crianças de 10 anos (e também adultos, embora antes da reposição da Democracia em 1974) incidem na alegada desqualificação de conteúdos e na desresponsabilização de profissionais eventualmente menos aptos para o desempenho das suas funções.

Subjacente a uma saudável preocupação com a qualidade do ensino disponível para crianças e adolescentes está um guião invisível que, por não ser enunciado, corre o risco de passar por elemento constitutivo e inquestionável. Trata-se do princípio da dificuldade enquanto garantia de excelência. De acordo com este guião, tudo aquilo que não resulte em elevadas taxas de demonstrado insucesso decorre de um facilitismo abusivo, com o qual um Estado cumpridor e responsável não pode compactuar. Na tentativa de contrariar a desqualificação, implementaram-se medidas que geraram sempre, e em todos os setores da comunidade educativa (incluindo associações de pais), muitas dúvidas, no melhor dos cenários. E é bom recordar que tais dúvidas não resultaram de pessimismo congénito ou resistência à mudança, mas sim da constatação de que crianças com episódios repetidos de ansiedade antes de exames ou docentes com crescentes taxas de depressão não inspirariam o melhor que devemos exigir do sistema de ensino.

É na escola que as crianças e adolescentes passam a maior parte do tempo (se excluirmos as horas de sono). Esta constatação deve levar-nos a esperar que seja também na escola que crianças e adolescentes estejam em segurança, em contacto com conteúdos transversais e inclusivos, com profissionais motivados para acompanhar alunos e alunas, participando coletivamente na construção de um mundo comum onde o conhecimento é parte integrante da dignidade humana.

Contudo, de acordo com o modelo de excelência assente no princípio da dificuldade, a escola deveria converter-se numa unidade de transmutação de espírito crítico em reprodução conformista, substituindo-se ética, dedicação e curiosidade intelectual pelo tributo a uma linearidade reativa de inspiração pavloviana, visando o escrupuloso cumprimento de indicadores numéricos. Toda a vertente relacional, que confere à escola o sentido de comunidade, é erradicada, confundindo-se obediência com responsabilidade, repetição com aprendizagem.

Não é necessária uma argumentação extensa para demonstrar a fragilidade destes pressupostos, e talvez por essa razão – aliada à urgência de trabalhar para devolver à escola o seu papel insubstituível – as vozes que reclamam o regresso dos exames do 4.º ano parecem ocupar mais espaço. Não deixa de causar alguma estranheza que sejam estas as mesmas vozes que, no passado, utilizaram a expressão “superior interesse da criança” como justificação insuspeita para adiar uma série de direitos que, reconhecemos agora, visavam justamente combater a desproteção jurídica e garantir igualdade de oportunidades e reconhecimento a todas as crianças.

Em causa está, em suma, uma colisão entre modelos muito distintos de bem-estar e cidadania: entre quem se congratula com o facto de apenas colégios privados constarem do top 10 das melhores escolas do país, e todas as outras pessoas que acreditam, enfim, que “o Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva.” (artigo 73.º da Constituição da República Portuguesa).

Por Ana Cristina Santos

Investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Fonte: Público

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

“O meu filho é como um carro de Fórmula 1 sem travões”

Crianças hiperativas ou mais mexidas do que antes? Sociedade mais atenta ou menos tolerante ao movimento? As dúvidas de medicar. A hiperatividade parece estar na moda, envolta em muita controvérsia.

Aos três meses Pedro já rebolava. E, por força disso, “teve de ser criado no chão”. Aos seis começou a gatinhar e aos 11 não andava, corria. Na horizontal e na vertical. Trepava tudo o que podia e não devia. “Nesse momento acabou o ‘sossego'”, conta a mãe, Patrícia. Seguiram-se as quedas, as nódoas negras e os dedos trilhados. Só acalmava quando estava a dormir. O problema é que dormia pouco: 30 minutos antes e depois de comer, que passaram a uma hora por dia e três por noite aos dois anos de idade. Mais do que isso só viria a dormir mais tarde, graças à medicação.

Com ano e meio Pedro foi encaminhado para a consulta de psicologia, aos quatro tomava Risperidona — um antipsicótico para lhe travar os impulsos, também usado, por exemplo, no tratamento da esquizofrenia — e era seguido uma vez por mês no pedopsiquiatra. Mas o verdadeiro diagnóstico só chegou aos sete anos: perturbação de hiperatividade e défice de atenção (PHDA).

Miguel começou a dar sinal de “bichos-carpinteiros” ainda mais cedo, logo às 16 semanas de gravidez. Quando nasceu foi-lhe diagnosticada uma perturbação grave do sono que o deixava dormir apenas por períodos de meia hora, com intervalos de cinco horas. Aos nove meses já arrastava bancos e subia para cima deles, abria o frigorífico e “ratava o queijo todo que encontrasse”. E aos 14 meses tomava Atarax, um ansiolítico para dormir, que a mãe Ana lhe retirou ainda antes dos dois anos porque “não ajudou nada”. Com seis anos recebeu o diagnóstico de PHDA.

Pedro e Miguel são apenas duas dos milhares de crianças que, nos últimos anos, foram diagnosticadas com perturbação de hiperatividade e défice de atenção. Um número que não para de crescer, em Portugal e um pouco por todo o mundo, ao ponto de ser considerada uma das perturbações do neurodesenvolvimento mais frequentes nas crianças.

Não há estudos de prevalência que permitam saber, em detalhe, quantas crianças têm esta perturbação em Portugal, mas as várias estimativas apontam para percentagens entre os 3% e os 7%, em linha com os números citados a nível mundial, na ordem dos 5%. Embora haja países com uma prevalência estimada bem superior, como é o caso da Holanda, ou dos Estados Unidos onde, em 2011, segundo o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças, 11% das crianças entre os 4 e os 17 anos estavam diagnosticadas com PHDA.

Há hoje mais crianças hiperativas?

Há quem fale em “moda” e a verdade é que cada vez mais se ouve falar em hiperatividade. Desde logo nas escolas, onde se multiplicam os relatos de professores que dão conta de um número crescente de meninos medicados no 1.º ciclo. Mas o que explica que haja cada vez mais crianças “hiperativas”?

“O que acontece é que há um maior conhecimento e uma maior sensibilidade por parte dos médicos para este problema. Crianças que antes eram só rotuladas como mal-educadas, ou menos inteligentes, hoje em dia percebe-se que, entre outros problemas, podem ter critérios de diagnóstico de PHDA”, arrisca Filipe Silva, pediatra do desenvolvimento na unidade de neurodesenvolvimento do Hospital CUF Descobertas, em Lisboa, acrescentando que “o que tem acontecido nos cuidados de saúde infantis, em geral, é que como a mortalidade foi controlada sobrou mais disponibilidade para estarmos atentos a estas questões do comportamento. Há uns 10 anos havia outros problemas prioritários ao nível físico”.

Uma justificação partilhada pelo pediatra Gomes Pedro. “Quando estive na faculdade ninguém me ensinou sobre comportamento, perturbações de atenção e de sono. As doenças do foro emocional e social ficavam muitas vezes por diagnosticar, porque a orientação clínica era mais morfológica e menos neurológica.”

Mas se é verdade que os médicos estão mais atentos, não é menos verdade que estes problemas saltam hoje mais à vista. “Descemos a idade de entrada na escola e a exigência no 1.º ano é muito superior à que tinha no meu tempo. Está-se a exigir mais do que aquilo que uma criança daquela idade pode dar. Além disso, antes tínhamos regras muito mais rígidas em casa e na escola. As reguadas punham os miúdos quietos. E estes miúdos, que têm PHDA, precisam de regras bem definidas. Eles são caóticos e se houver regras ajuda-os bastante”, defende o neuropediatra de Coimbra, Luís Borges.

Já o pedopsiquiatra Augusto Carreira argumenta que há cada vez menos crianças com um padrão de vinculação seguro (figura da mãe) pois vão muito cedo para os infantários e isso, afirma, “aumenta a probabilidade de virem a ser hiperativas”. Há ainda outros fatores ambientais que podem contribuir para o aumento de crianças com PHDA como estas serem postas em contacto com estímulos visuais e sonoros desde muito cedo e estarem cada vez mais “confinadas a atividades programadas, com grande repressão de movimentos”.

“Se a criança não tem, desde muito cedo, a experiência de poder expandir-se com alguma liberdade, vai ter muito mais dificuldades em harmonizar o seu movimento. Além disso, há crianças que ficam relativamente hiperativas para contrariar esta tentativa de repressão do movimento e isto pode confundir os diagnósticos”, defende o diretor do serviço de pedopsiquiatria do Hospital D. Estefânia, que não tem dúvidas em afirmar que “as crianças estão mais agitadas neste momento do que há 30 anos”.

A somar a tudo isto acresce o facto de a escolaridade obrigatória ter vindo a subir, estando agora no 12.º ano, o que faz com que as crianças e jovens com mais dificuldades, por este ou outros motivos, sejam mais notados. Antigamente a solução era abandonarem a escola porque “não davam para os estudos” e assim “resolvia-se” o problema. Por este motivo, muitos especialistas costumam dizer que se não houvesse escola não havia tantos diagnósticos de PHDA. É porque é precisamente em situações que exigem mais atenção e concentração, que estas crianças sentem mais dificuldades e revelam mais diferenças em relação aos outros meninos da mesma idade.

Acontece que as mudanças não se ficam por aqui. A sociedade também mudou e “está menos tolerante para o movimento, o que faz com que qualquer ‘excesso’ ou variante disto seja logo interpretada como uma perturbação de hiperatividade com défice de atenção”, acrescenta o pedopsiquiatra Augusto Carreira.

Além do mais, a inexistência de marcadores que permitam diagnosticar esta perturbação do neurodesenvolvimento torna tudo muito “subjetivo”, admitem os especialistas, uma vez que o diagnóstico é feito sobretudo com base na observação da criança e em inquéritos feitos aos pais e aos professores.

“Depende sempre muito do observador. Tenho tido experiências de crianças que me chegam com diagnóstico de PHDA, mudam de professor e o novo, que é muito mais tolerante, deixa de valorizar a irrequietude como sendo um sintoma importante. Também há pais que, se uma criança mexe uma perna, eles já estão a dizer ‘Está quieto!’ e há outros em que ela pula e brinca e não dizem nada e acham normal”, exemplifica Augusto Carreira.

Filipe Silva diz que só há uma forma de reduzir esse risco da subjetividade: “cruzando informações” dos pais e dos professores, ou seja, dos diferentes contextos e “não só as atuais como as passadas”. “Se houver uma PHDA tem de haver uma série de queixas para trás.” Conta também a observação da criança em consulta, com o problema de, muitas vezes, estas consultas serem muito rápidas ou não serem com o especialista indicado. Na dúvida, “não se deve fazer o diagnóstico ou propõe-se uma reavaliação para daí a três ou seis meses”, aconselha Filipe Silva.

Sobrediagnóstico ou subdiagnóstico?

Apesar de todos estes constrangimentos, os médicos ouvidos pelo Observador, na sua esmagadora maioria, preferem falar em subdiagnóstico, sobretudo no caso das crianças que têm PHDA do subtipo desatento, ou seja, aquelas que são muito desatentas, mas que não manifestam sintomas de hiperatividade e, por isso, dão menos nas vistas, porque não incomodam. Embora admitam que possa haver avaliações mal feitas, que resultam, em alguns casos, em sobrediagnóstico.

“Efetivamente não acho que haja mais crianças diagnosticadas do que aquelas que têm o problema. Acho que continua a haver diagnósticos que não são bem feitos. Já tive experiência de alguns miúdos que não tinham esse problema, mas tinham outro, normalmente do espetro autista. E, ao mesmo tempo, há muitos diagnósticos que continuam por fazer”, afirma Ana Rodrigues, docente do departamento de ciências da educação sociais e humanidades da Faculdade de Motricidade Humana e com formação específica em PHDA, por Harvard.

“Há crianças que efetivamente terão PHDA, mas muitas estão mal diagnosticadas por causa desta necessidade que muitos pais e professores têm de que as crianças fiquem quietas”, denuncia Augusto Carreira. E não está sozinho nesta avaliação. O neuropediatra Luís Borges aproveita o momento para gracejar: “Parece que toda a gente queria ser médico. Eu recebo mais diagnósticos de PHDA do que aqueles que faço”.

Aliás, o último relatório Saúde Mental em Números, da DGS, deixou um alerta para esta questão: “Vamos sabendo da facilidade com que em Portugal muitos profissionais, licenciados ou não em medicina, sugerem ou mesmo ‘diagnosticam’ ‘hiperatividade infantil'”.

Foi, provavelmente, essa “facilidade” que fez com que a filha de Rafaela, Beatriz, estivesse a tomar metilfenidato durante um certo período, sem sequer ter PHDA. “No final do segundo ano deram-me uma carta na escola para eu ir ao médico porque ela não tinha adquirido conhecimentos e estava muito aquém dos outros meninos, dando-me a entender que seria autismo. Fui a uma psicóloga e saí de lá com o diagnóstico de PHDA. Com esse relatório fui ao pedopsiquiatra que o confirmou e me receitou logo Ritalina. Tomou durante um ano letivo e meio e nada mudou em temos de aquisição de conhecimentos. Mais tarde decidi ir a outra pedopsiquiatra que me disse que era impossível ser PHDA. Agora penso que poderia ter feito as coisas de outra forma, mas eu fiz o 12.º ano e mal e não estudei para médica. Fui a vários profissionais de saúde e eles é que erraram.”

O pediatra Gomes Pedro não tem dúvidas que deveria caber unicamente aos pediatras o diagnóstico desta perturbação, pois são os médicos que conhecem as crianças desde bebés, assim como o seu percurso. O problema, diz, é que há muitos profissionais a reclamarem para si o direito do diagnóstico. Inclusive os professores.

Mas do lado dos docentes também se ouvem queixas. “Nem sempre nos são pedidas informações a propósito das crianças. Devia haver um trabalho colaborativo e muitas vezes não acontece”, critica Carla Ferreira, professora de educação especial do Agrupamento Escolar Serpa Pinto, em Cinfães, afirmando que “cada vez mais nos chegam à escola relatórios médicos e temos cada vez mais crianças medicadas para o efeito”.

Medicar ou não medicar, eis a questão

E a verdade é essa. Há cada vez mais crianças a serem medicadas um pouco por todo o mundo com psicofármacos. Em 2014, foram vendidas, em Portugal, mais de 270 mil embalagens de metilfenidato (o psicoestimulante que aumenta os níveis de dopamina, melhorando as funções executivas do cérebro), de acordo com o Infarmed, um número que tem vindo a crescer consistentemente desde que este fármaco começou a ser comparticipado pelo Serviço Nacional de Saúde (em 2003). E se este indicador pode sofrer alguma influência da crise financeira — porque as pessoas para não gastarem tanto dinheiro de uma só vez podem optar por ir comprando embalagens mais pequenas, e por sua vez mais baratas, o que resulta no final do ano em mais embalagens vendidas — isso já não acontece no indicador das doses diárias definidas (DDD) e também esse revela um aumento continuado do consumo ao longo da última década, tendo atingido, em 2014, cerca de 13,4 DDD por 1.000 habitantes por dia, conforme dados publicados, este ano, pelo Infarmed. O relatório Saúde Mental em Números 2014 fala em “fúria farmacoterapêutica”.

“Antes davam-se reguadas, depois a estratégia era mandar os alunos para a rua e agora medicam-se as crianças. Para alguns isso é uma evolução, porque as crianças já não vão para a rua, nem são batidas. Para outros esta ainda não é a resposta adequada”, relata Augusto Carreira, diretor de pedopsiquiatria do Hospital D. Estefânia, acrescentando que, “muitas vezes, há a tentação de medicar os miúdos para satisfazer esta predisposição dos pais para ver nos filhos uma hiperatividade”, levando, em alguns casos, a um sobrediagnóstico acompanhado de um sobretratamento. E esta atitude faz com que “muitas crianças estejam a ser medicadas sem ser necessário”, denuncia o neuropediatra Luís Borges.


O neuropsicólogo Fernando Rodrigues não hesita em falar em “sobremedicação”, muito por causa dos “professores que pedem aos pais para levarem os filhos ao pedopsiquiatra e medicarem as crianças”, e recupera as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para lembrar que “em qualquer domínio da saúde mental a primeira linha recomendada nunca é a medicação”.

O próprio Infarmed (autoridade do medicamento em Portugal) deixa claro, nos documentos informativos que tem publicado sobre este remédio, que o metilfenidato só é recomendado, a partir dos seis anos de idade, “quando as medidas terapêuticas isoladas provarem ser insuficientes”. E por medidas terapêuticas isoladas entende-se intervenção psicossocial como educação especial, psicoterapia, psicomotricidade, entre outras. Mas uma coisa é o que o Infarmed, e outras organizações internacionais recomendam, outra é a realidade.

Por um lado, há médicos que se sentem pressionados a fazê-lo, como denuncia o psiquiatra Álvaro Carvalho, coordenador nacional para a Saúde Mental. “Os pedopsiquiatras têm vindo a queixar-se de prescrever anfetaminas em situação que são até falsas hiperatividades, que chegam com diagnóstico já feito ao consultório”, conta ao Observador, explicando que isso acaba por acontecer porque “eles são poucos, têm muito que fazer e depois são chateados e pressionados por todos os lados”. Na sequência destes dados empíricos foi criado um grupo de trabalho que, no primeiro trimestre do próximo ano, apresentará conclusões, confirmando ou negando esta informação, que poderão resultar em normas de orientação terapêutica para os médicos.

Por outro, há especialistas que realmente defendem esta intervenção farmacológica. O neuropediatra Luís Borges explica que “em muitos casos, a partir dos sete ou oito anos, a intervenção psicoterapêutica vai ser inoperante e deve-se começar logo com a medicação”. Também o pediatra Gomes Pedro defende que “quando a PHDA é real, não deverá tardar o início de uma estratégia medicamentosa”. Na mesma linha, o pediatra do desenvolvimento Filipe Silva entende que se em queixas mais ligeiras e numa fase inicial se pode começar pelas medidas pedagógicas e comportamentais, “quando existem queixas muito intensas a medicação tem um papel importante”.

Que o diga Patrícia. Mal recebeu o diagnóstico de PHDA, Pedro começou a ser medicado com metilfenidato. “Ficou muito melhor ao nível da agitação motora, e com os impulsos travados, sem nunca ficar apático, nem tipo zombie“, atesta a mãe, contrariando aquela que é uma das críticas mais apontadas a este tipo de fármaco: que deixa as crianças dopadas, apáticas, sem reação, sem alegria e sem criatividade.

“A medicação é extremamente bem tolerada. Tem sucesso em 80% dos casos”, garante Luís Borges, que tem uma vasta experiência no ramo da neuropediatria. Filipe Silva acrescenta que esses efeitos só se verificam de forma relevante “quando as crianças estão mal medicadas, com doses excessivas, ou porque simplesmente aquele não é o medicamento apropriado” e, quando isso acontece, “pode ter de haver acertos de dosagem”, explica Ana Rodrigues. “Deixar de medicar, se a criança precisa, não é, de todo, a solução”, enfatiza a professora da Faculdade de Motricidade Humana, admitindo que há casos em que não é preciso medicar, mas que essa avaliação cabe ao especialista, que terá de perceber se os critérios de diagnóstico da PHDA estão a causar muitos problemas na vida da criança ou não. E lembra que uma criança com PHDA não medicada tem muito mais probabilidades de vir a desenvolver problemas de adição (drogas, álcool, entre outros) e uma maior predisposição para vir a ter depressão em adulto.

Os efeitos secundários mais comuns, e que têm de ser muito bem vigiados devido à sua gravidade, têm a ver com a perda de sono e a perda de apetite. Ainda assim, “se tomarem um bom pequeno-almoço antes da medicação, depois ao almoço podem perder o apetite mas ao lanche e ao jantar já comem, porque entretanto passou o efeito da medicação”, explica Luís Borges, sublinhando que tudo isto tem de ser monitorizado pelo médico. Para contornar a perda de sono, basta ter cuidado com a hora a que se dá o medicamento.

A ideia de que este psicofármaco vicia e cria dependência é também afastada pelos especialistas. Já em relação aos efeitos a longo prazo, nada conseguem garantir. Nem eles, nem ninguém, apesar dos inúmeros estudos que têm sido desenvolvidos. Aliás, neste preciso momento, está a ser realizado pelo menos um estudo com o propósito de responder a essa dúvida, conduzido pelo psiquiatra norte-americano Allen Frances, que trabalhou na terceira e coordenou a quarta edição do DSM (o manual da associação de psiquiatria norte-americana que elenca e traça critérios de diagnóstico dos vários transtornos mentais, incluindo a PHDA).

Allen Frances tem sido muito crítico em relação à forma como a associação de psiquiatria, que anda de mãos dadas com a indústria farmacêutica, tem introduzido, ao longo dos anos, cada vez mais transtornos naquele manual, transformando problemas do quotidiano em transtornos mentais — em França os médicos não se guiam pelo DSM e a estimativa de prevalência de crianças com PHDA é muito baixa — e tem alertado muito para os perigos da medicação.

E precisamente por não saberem que consequências a longo prazo apresenta este medicamento e por não aceitarem que o filho pudesse alterar a sua personalidade, Maria e o marido optaram por nunca acatar a recomendação dos diferentes médicos por onde passaram. O filho, que começou a revelar os primeiros sintomas aos quatro anos e a quem foi diagnosticada PHDA no primeiro ano da escola, não toma qualquer medicação. Está no 5.º ano, “tem uma péssima autoestima, enorme dificuldade em concentrar-se, uma grande impulsividade e fala pelos cotovelos”, mas Maria prefere que ele “aprenda a trabalhar e a viver com o que tem do que lhe dar medicamentos”.

“A decisão de não medicar é difícil, mas medicar também é. Nós sabemos o que vamos enfrentar. Sabe quando eles são pequenos e não gostam de chucha? Isto é um bocado a mesma coisa. Eu não tenho ‘chucha’ para o calar. Há dias extenuantes”, resume Maria, que também decidiu acabar com a consulta semanal com a psicóloga, depois de ano e meio. “Ele começou a tornar-se agressivo porque via aquilo como castigo. Revoltou-se contra mim e contra o irmão.”

A única via que lhes resta é lidar com o problema, usando outras estratégias, sem nunca esquecerem que tem de haver regras bem definidas e até apoiadas em suportes visuais como tabelas e quadros com as tarefas, as horas, e bonecos com caras felizes e tristes sempre que as crianças fazem tudo bem ou mal.

Ana Rodrigues e o neuropediatra Nuno Lobo Antunes, no livro “Mais forte do que eu!”, dão algumas dicas aos pais com filhos com PHDA. As instruções devem ser curtas, dadas de forma positiva, com conteúdos específicos. Por exemplo: se o objetivo é que o filho não esteja sempre a interromper as conversas, o que devem dizer à criança, por exemplo, é que, quando ele quer dizer alguma coisa e os outros estão a falar, deve levantar a mão e esperar para falar, ou meter a mão à frente da boca; se querem que ele não bata nos outros meninos quando se enerva, podem dizer-lhe, por exemplo, para guardar as mãos para ele mesmo quando está enervado.

E estes truques e dicas valem igualmente para quem opta pela medicação. É que os medicamentos só fazem efeito durante um período de tempo (entre quatro a 12 horas, consoante o medicamento que seja dado – Concerta, Ritalina ou Rubifen) e quando os miúdos chegam a casa, ao final do dia, estão “ao natural”. Ou seja, o problema não desapareceu, pelo que continua a ser importante ajudar as crianças a gerirem os seus comportamentos e a lidarem com as dificuldades que têm.

O Pedro “durante o dia é a Cinderela, chega à noite vira abóbora. Costumo dizer que o meu filho é como um carro de Fórmula 1 sem travões”, diz, sorrindo, Patrícia. Hoje com 12 anos, Pedro está no 7.º ano e já começou a estudar sozinho. Entretanto mudou de escola cinco vezes “para conseguir avançar”. “As escolas não estão adaptadas. Vivemos numa sociedade autista.”

A escola tem de se adaptar às crianças

Tal como Maria, muitos outros pais acabam por mudar os filhos de escola em busca do sítio que mais se adeque aos filhos, com professores que entendam o problema, e onde eles se sintam melhor, visto que com esta perturbação vem, quase sempre, o mau desempenho escolar, por conta da grave falta de atenção e da impulsividade, que prejudicam na parte das relações com os outros meninos.

Mas a verdade é que “os sintomas da PHDA podem não causar problemas se o ambiente for adequado, se a escola se adaptar”, avança o neuropediatra Luís Borges. “Agora se continuar a exigir fichas e mais fichas teremos cada vez mais crianças diagnosticadas e a revelarem dificuldades. Há uma dissonância entre as capacidades da criança e o sistema. Estamos a exigir demasiado às crianças.”

E Luís Borges não está sozinho. O neuropsicólogo clínico Fernando Rodrigues concorda que se “devia mudar a escola para que esta se adaptasse à nossa individualidade. O insucesso escolar é maior porque a criança não tem uma adaptação àquele sistema”. E até deixa uma sugestão: “Porque é que não se espaçam mais as aulas? Logo às primeiras horas as crianças tinham as aulas que requerem mais atenção, depois vinha o exercício físico, depois o almoço, outra aula e novamente exercício. O movimento ajuda estas crianças a focar”.

A terapeuta ocupacional infantil norte-americana Angela Hanscom também defende a importância do movimento, na medida em que ajuda ao desenvolvimento das funções executivas, que são aquelas que falham nestas crianças. “Para que as crianças aprendam, elas precisam de ser capazes de prestar atenção. Para prestar atenção, precisamos de deixá-las mexer-se” durante algumas horas por dia, escreveu Angela Hanscom, há um ano, num artigo no seu blogue, que acabou por ser publicado no The Washington Post. Quando se obriga estas crianças a estarem muito tempo quietas numa sala de aula o cérebro delas “adormece”, explica. A mesma terapeuta aconselha a utilização de bolas tipo pilates nas salas de aula em substitução das habituais cadeiras.

“Não tenho dúvidas que o método de ensino pode condicionar fortemente a expressão de determinado tipo de sintomas. Se tiver um método que permita uma maior liberdade de movimentos na sala de aula, vou ter menos necessidade de controlar essas crianças com fármacos”, corrobora Augusto Carreira.

Também Ana Rodrigues afirma que “não é benéfico ter 90 minutos de aulas, poucos intervalos e nenhum exercício físico”.

Uma vez que o método de ensino teima em não se adaptar, seria fundamental que todos os professores compreendessem esta perturbação e soubessem lidar com ela. “Os professores têm aqui um papel muito importante, não só no diagnóstico como na intervenção. Não é fácil encontrar estratégias, mas é possível. Muitas vezes o que acontece é que os professores até sabem do problema mas depois, na hora, quando o miúdo perturba, eles não associam isso ao problema da PHDA e a estratégia que encontram é mandar estar quieto e calado. E isso não funciona com estas crianças”, explica Ana Rodrigues.

Contudo, o facto de as turmas terem cada vez mais alunos, e de haver cada vez mais metas a cumprir e matéria a dar, faz com que os professores tenham “pouco tempo para tomar em atenção essas distinções das crianças que têm a ver não só com a sua personalidade, mas com a maturidade da criança”, lamenta o pediatra Gomes Pedro.

[Os nomes das mães e das crianças com PHDA utilizados ao longo do artigo são fictícios]

Fonte: Observador

Menino cego percorre 120 km para ir à escola

Diogo Santos, sete anos, sofre de amaurose congénita de Leber, uma forma hereditária de perda de visão. Um caso raro que acontece à nascença. Perdeu a visão nessa altura.

Nos primeiros cinco anos, frequentou o infantário da cidade, mas desde o ano letivo 2014/2015, altura em que passou para o primeiro ciclo, Mirandela deixou de ter capacidade de resposta, porque não existe uma escola de referência nem foi colocada qualquer professora especializada em Braille.

O Estado criou uma rede de escolas de referência para a inclusão de alunos cegos ou baixa visão. Na região transmontana, só havia duas: ou o Agrupamento de Escolas Abade de Baçal, em Bragança, ou Diogo Cão, em Vila Real, escola sobre a qual recaiu a escolha.

A rotina diária foi completamente alterada. Diogo levanta-se todos os dias às sete horas para, meia hora depois, estar à porta de casa pronto a viajar até Vila Real, onde frequenta a escola, numa turma com mais 25 alunos. São cerca de 60 quilómetros de táxi. "A escola contratou uma empresa para levar o Diogo e outra menina de Cabanelas", conta o pai, Miguel Ângelo.

Fonte: JN por indicação de Livresco

O despotismo da translucidez

A Educação, área que continua ainda a ser menosprezada em termos de importância – embora os sucessivos governos a façam resplandecer nos programas eleitorais que depois transformam em programas de governo –, tem sido alvo de um policiamento controlador e fiscalizador que, não sendo seu exclusivo, é totalmente desproporcional pois tolhe o desígnio verdadeiro da docência: ensinar e educar.

Prestação de contas, rankings, metas, objetivos são alguns dos vocábulos que invadiram as escolas e com os quais os professores têm de trabalhar, em nome da transparência que oprime, esmaga e deteriora a prática ou desempenho docente.

Na verdade, se no passado o tempo do professor era aplicado essencialmente em contexto de sala, a dar aulas, atualmente caminhamos a passos largos para que essa realidade se transforme radicalmente, dada a preocupação imensa, quase obsessiva, com as evidências (provas palpáveis), através da documentação de tudo o que ocorre na sala de aula e na escola, em nome da translucidez.

Os professores dos dias de hoje vivem afundados numa gigantesca teia burocrática, rodeados de papelada (agora também de plataformas…), que desvirtua o seu verdadeiro trabalho, em nome da translucidez.

A classe docente é desconsiderada pelos nossos políticos que, enquanto oposição, até parece que a defendem, contudo quando estão no governo procedem de modo diferente. Alguns sindicatos, com declarações irresponsáveis, também em nada abonam a imagem pública que todos almejamos conferir aos professores, a de excelentes profissionais. Os maus professores representam um número residual e, esses, o sistema encarregar-se-á de os colocar de fora, como sucede nas demais profissões.

Concordo que é importante ter evidências do que se faz nas escolas, mas garanto que diariamente os professores trabalham mais do que são obrigados e do que qualquer relatório ou fotografia possa documentar: tiram dúvidas aos alunos e atendem encarregados de educação fora do horário, trabalham em casa e na escola muito para além das 40h semanais, ouvem os alunos e aconselham-nos em relação a problemas pessoais, participam em múltiplas reuniões, resolvem problemas que não lhes competem… Alguma avaliação externa ou inspeção valoriza o trabalho oculto dos professores? Algum governo enaltece aquilo que fazem, muito para além da sua obrigação, e ninguém vê?

E, nem por isso, o seu estatuto foi melhorado, o seu vencimento aumentado (pelo contrário!), a sua imagem profissional favorecida/valorizada, o seu reconhecimento é efetivado… por que será? Vale tudo em nome desta preocupação obsessiva, quase doentia?

Se é óbvio que os professores escolheram uma bela profissão - a de formar pessoas -, consubstanciada numa educação integral que sirva de alicerce aos alunos para a vida, também é evidente que estes excelentes profissionais merecem ser vistos por todos com outros olhos, a começar pela classe política que, sabe, ter nos docentes, a garantia de pessoas que contribuem decisivamente para o futuro, ou não estivessem a preparar as mulheres e os homens do porvir.

Por Filinto Lima
Professor/diretor

Fonte: Público

sábado, 26 de dezembro de 2015

A escola e a opinião

Fala-se muito da escola, sobretudo na época dos exames e na época da divulgação dos rankings. Fala-se da escola nos jornais, fala-se da escola na Assembleia da República, fala-se da escola em todos os ambientes profanos em que não há escolas nem alunos nem professores, mas onde muitos sonham ser mestres, tiranos do espírito. A escola é um objeto privilegiado da opinião arrogante e confortada na sua presunção de suficiência. Quem conhece um pouco da escola atual, quem tem alguma experiência dela (e seja-me permitido, aqui, reivindicar essa condição), sabe que ela é determinada por forças que permanecem insondáveis para os que simplesmente “acham” e emitem opinião baseada no respetivo “achamento”, e que são sempre insuficientemente ou mal descritas pelos media. Este discurso generalizado sobre a escola quase ignora a questão dos saberes transmissíveis que são — ou devem ser — transmitidos (em suma, aquilo que justifica a existência da escola) e adora deter-se nas reformas e nas modificações da instituição escolar, nessa nova mística que é a avaliação, assim como na máquina gestionária que a administra. Deste modo, formou-se a imagem de uma escola desligada da referência aos saberes. Os exames e os rankings fazem parte dessa lógica gestionária. Não estou a dizer que se devia acabar com eles, mas prioritário mesmo seria perceber que o suposto “facilitismo” que eles pretendem contrariar começa exatamente nas provas e na lógica examinadora que foi montada. Em junho, tive oportunidade de escrever aqui um artigo onde denunciava um erro clamoroso, escandaloso, do exame da prova escrita de Português do 12.º ano. Ninguém contestou os meus argumentos e a prova seguiu o seu curso sem que alguém tenha colocado a questão que verdadeiramente importa: quem avalia os avaliadores, quem examina os examinadores? Obviamente, ninguém. O que é preciso é que tudo aceda sem entraves ao estado estatístico. Experimente-se consultar a parafernália de materiais didáticos que as editoras de livros escolares traficam como adjuvantes da famigerada “preparação para os exames”. São um verdadeiro sismógrafo de uma mística da medição e da avaliação de competências mensuráveis. Permitem perceber com toda a evidência (sobretudo nas disciplinas das Humanidades) aquilo em que se transformou a dita preparação para os exames, a idiotice que ela cauciona, a negação que ela representa de tudo o que uma escola deve ser e dos modos exigentes de transmissão do saber. Se é preciso que haja exames, comece-se então por criticar esta tecnologia da preparação para os exames e o falso saber que ela trafica. As ideias do “facilitismo” e do seu oposto, a exigência, tal como são colocada no espaço público (e nas instituições de discussão e decisão políticas) desde há muito tempo, são altamente falaciosas porque se ficam pela superfície, pela “opinião”. Ora, o princípio básico, essencial, do qual é preciso partir é este: o primeiro dever da escola é resistir ao poder da opinião. É para isso que servem os saberes: para destruir a opinião. E por isso é que há um velho contencioso, uma antiga inimizade, entre os media e a escola. Toda a “opinião” que se debita sobre ela obriga-nos a pensar como é pernicioso o triunfo de uma opinião mediatizada. Onde ela reina, não temos a liberdade de expressão e de pensamento, mas exatamente o seu contrário, na medida em que passamos a não poder dizer ou pensar senão aquilo que é passível de ser recebido e entendido pela comunidade ou pelas técnicas de comunicação.

Por António Guerreiro

Fonte: Público

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Os alunos especiais cresceram e já andam no secundário

Quando o toque de entrada interrompe o bulício próprio de uma escola com 1500 alunos, as portas das salas de aula funcionam como uma espécie de funil para onde escorre a multidão, que em segundos deixa o corredor vazio. Numa dessas salas da secundária Avelar Brotero, em Coimbra, entram apenas cinco adolescentes. O resto da sua turma, do 11.º ano do curso profissional de Multimédia, estará a aprender estatística ou trigonometria. Estes sentam-se, abrem os dossiers e copiam, do quadro, o sumário. Vão corrigir a ficha de avaliação de Matemática e a professora, Ana Janela, aproveita para fazer revisões: “1+1? 2+1? 3+1?”

Para Manuel, Miguel e Áurea, o resultado não é óbvio. Não teriam dificuldades se estivessem a contar maçãs, lápis, pedras – qualquer coisa que pudessem ver e tocar. E é por isso mesmo que a professora insiste: “Manel, 4+1?” Para estes jovens que têm 18, 17 e 16 anos, respetivamente, explorar a capacidade de abstração representa “um esforço imenso, mas necessário”, explica Paula Baião Constantino, a coordenadora da Educação Especial na escola. “Eles só serão capazes se as pessoas, à volta, acreditarem que são capazes”, diz.

Tal como Luís, de 18 anos, e Ana, de 17, Manuel, Miguel e Áurea fazem parte das crianças e jovens com necessidades educativas especiais (NEE) que frequentam as escolas portuguesas – 75.032, em 2013/2014. Mas integram um grupo particular: o daqueles que, devido a défices cognitivos mais ou menos severos, associados ou não a outras doenças, têm, desde o ensino básico, um Currículo Específico Individual (CEI), a medida mais restritiva do universo das que são aplicadas aos alunos com NEE. Há menos de uma década seriam conhecidos como deficientes mentais e estariam confinados às escolas de ensino especial. Hoje estão no ensino regular: são 13.037 e 2158 estão no secundário.

“Então? 4+1?” É Miguel que responde: “Cinco”. Como Manuel, Miguel tem Trissomia 21. Sabe ler, escrever, comunica com a mãe por SMS, utiliza o chat do Facebook, tem aulas de música e joga basquetebol fora da escola. Fez parte dos primeiros grupos de crianças a beneficiar da legislação de 2008 que esvaziou as escolas de ensino especial e abriu as portas do ensino básico a crianças com NEE até aos 15 anos ou ao 9.º ano de escolaridade. Mais tarde, há três anos, apanhou o alargamento da escolaridade obrigatória para o 12.º ano ou 18 de idade.

Transição sem recursos
Nenhuma das transições foi fácil. No ensino básico, os alunos com CEI acompanham a turma do 5.º ano para o 6.º, deste para o 7.º e assim sucessivamente, mas não partilham necessariamente com ela a sala de aula, não fazem testes ou exames e também não têm direito a diploma. Podem estar com a turma em várias disciplinas, em apenas duas, uma ou em nenhuma – depende do que é definido como adequado a cada um deles.

Enquanto aos colegas é pedido que aprendam gramática e façam equações, a estas crianças podem ser colocadas metas aparentemente tão simples como escrever o próprio nome, apanhar o autocarro certo para chegar à escola ou saber determinar a quantidade de leite necessária para fazer uma mousse de chocolate.

Alguns, não serão capazes de cumprir qualquer uma destas tarefas, outros conseguem fazer muito mais. Nem a todos são dadas as condições desejáveis, como denunciou há pouco mais de um ano o Conselho Nacional de Educação (CNE). “A atitude voluntarista do legislador não encontra respaldo na capacidade de mobilização equitativa de recursos”, pode ler-se no relatório daquele órgão consultivo do Governo, publicado em julho de 2014.

Dois anos antes, já investigadores de Educação Especial e dirigentes de associações de pais e de professores e investigadores tinham alertado para os problemas que surgiriam daí a meses, quando os alunos com défice cognitivo chegassem às escolas do ensino secundário.

Escolas “tiveram de reagir”
Nessa altura, aquela que à época era própria diretora de serviços de Educação Especial do Ministério da Educação e Ciência, Filomena Pereira, admitiu que as escolas pudessem “não estar preparadas". “Mas quando um pai e uma mãe têm um filho deficiente, também não estão e reagem”, comparou (...).

“Tiveram de reagir. Que remédio…. Só que umas reagiram melhor e outras pior, sempre de acordo com as circunstâncias de cada uma e segundo a sensibilidade dos professores e das direções – não há garantias de equidade”, comenta, hoje, João Adelino Santos, professor de Educação Especial e diretor do Agrupamento de Escolas de Vila Nova de Paiva, que há anos vem acompanhando e tomando posições sobre o processo no seu blogue, o Incluso.

A primeira portaria a definir o modelo de integração de alunos com CEI no secundário, publicada já os estudantes estavam na escola, foi contestada por pais, por professores e pelo próprio CNE, antes de ser revogada, este ano. Quer João Adelino Santos quer Paula Baião Constantino afirmam que ela era “tão absurda, que nunca foi aplicada”. Era prescritiva em relação ao que os jovens tinham de aprender e definia que eles só deveriam passar cinco horas por semana na escola – “Era uma espécie de regresso ao ensino especial dos jovens com défice cognitivo”, resumem.

Depois de vários debates na Assembleia da República e de recomendações dos próprios partidos que sustentavam o Governo, o PSD e o CDS/PP, o controlo do processo foi entregue às escolas do secundário, que passaram a ser responsáveis pelo desenho dos CEI e pela organização dos Planos Individuais de Transição (PIT) para a vida pós-escolar dos alunos, que implicam algum contacto com o meio profissional.

Inclusão, numa sala à parte
“Em cada escola se faz o melhor que a direção e professores sabem”, acredita João Adelino Santos. O que isso significa, não sabe. Por exemplo: será que em alguma os jovens estão com as turmas de referência noutra aula que não a de Educação Física? “Os professores nem têm formação para lidar com estas crianças nem meios para o fazer. Com turmas de quase 30 alunos (porque a legislação não prevê a redução do número de estudantes, nestes casos) não conseguem atender à heterogeneidade dos restantes, quanto mais destes…”, comenta Paula Constantino.

Ana Janela é professora de Educação Especial e abriu a manhã com uma aula de Português. Ana, Áurea, Luís, Manuel e Miguel começaram por contar o que fizeram no fim de semana, uma atividade que ocupa a maior parte da aula. Nem para todos é fácil perceber que o fim de semana tem dois dias, o sábado e o domingo, e que cada um se pode dividir em manhã, tarde e noite. Têm de se concentrar, para recordar e situar no espaço e no tempo o que fizeram.

Enquanto os colegas da turma estudam o Sermão de Santo António aos Peixes e se preparam para ler Os Maias, os cinco adolescentes observam Ana Janela, que desenha no quadro uma tabela com duas colunas, uma para cada dia, divididas, na horizontal, em três blocos, correspondentes à manhã, tarde e noite. Interrogando pacientemente cada aluno vai preenchendo os quadrados, ao mesmo tempo que aproveita qualquer pretexto para estender a conversa à turma. Se o Miguel foi apanhar azeitonas, Ana Janela quer saber quem conhece o nome da árvore. 

A professora aproveita a conversa, também, para ensinar regras que depois lhes há de mostrar sistematizadas, num PowerPoint: “comunicamos com palavras e com o corpo; devemos estar atentos quando o outro fala; olhá-lo nos olhos, não o interromper, guardar algum espaço, não lhe tocar”, explica, pouco antes de o som da campainha soar para a saída e Miguel a abraçar.

“E se fosse 13+6?”
Mesmo dentro da pequenina turma, cada um dos alunos é muito diferente dos outros. Por exemplo, Ana e Luís fizeram uma ficha de avaliação de Matemática “ajustada às suas competências”. Para eles, a correção está no lado esquerdo do quadro branco: “9+4=13; 13+4=17; 19+4=21”. “E se fosse 13+6?”, pergunta a professora. Luís, que entre outros problemas tem hiperatividade, está impaciente e diz de imediato que não sabe. Ana conta seis dedos, despachada: “14, 15, 16, 17, 18, 19. Dezanove!”

Ana é chamada muitas vezes a ajudar a professora. E também ajuda quando não é chamada a fazê-lo – levanta-se sem aviso e vai ver se um colega deu erros ortográficos. Luís faz o mesmo, mas só em relação a Áurea. É um rapaz alto e forte, que se apressa a responder sempre que ela hesita e que lhe rouba o dossier para o abrir na página certa quando Áurea ainda o está a folhear. Começaram a namorar há seis meses e não há conselhos de pais e professores capazes de convencer o rapaz de que a hiperproteção em relação à menina de traços delicados e sorriso doce lhe está a fazer mais mal do que bem.

“Deixa a Áurea responder, Luís! Dá-lhe espaço! Deixa-a crescer!”, pedem os professores. “Gosto tanto dela! Estou sempre a pensar nela, a querer falar com ela, a querer estar com ela”, comenta, no recreio, Luís, de sorriso rasgado, o braço sobre os ombros de Áurea, que se aninha naquele abraço. Ela tapa o sorriso com a mão, envergonhada. Luís enche-a de beijos alegres: “Merece tudo”.

Autónomos, como os outros
Não andam atrás uns dos outros. No intervalo dirigem-se todos para a cantina, mas separados. Mal saem da sala, ou estão abraçados, como Áurea e Luís, ou cada um deles é engolido pela multidão de colegas que voltam a encher o corredor quando a campainha toca. Ninguém se aflige: já conhecem todos os cantos da escola enorme e são autónomos – sabem carregar com dinheiro os cartões que usam para adquirir material escolar ou as refeições, vão para a fila, transportam os tabuleiros até às mesas e sentam-se onde querem.

É assim que se forma um dos grupos. A uma das mesas Áurea, Luís e Ana encontram-se com Ana Filipa e João, alunos do 12.º ano que também têm currículo específico individual.

Luís, que faz as apresentações, revela, com um risinho, que Ana e João são namorados. “Uma história complicada”, diz João, depois de se fingir zangado com a inconfidência. Trata Ana por “amor” e daí a algumas horas há de fazê-la chorar, quando, num convívio de outono, aceitar cantar “O meu Verão não acabou”, de FF. Namoraram, acabaram, e recomeçaram precisamente no verão: “Então, amor!?”, dirá João, a rir, contente por Ana se ter emocionado.

Ao almoço, João, de 20 anos, diz gostava de ser cantor. Ou professor. Para já, vai fazer um dos cursos profissionais para pessoas com deficiência e incapacidades, disponíveis numa das instituições da cidade, para ficar com o diploma do 9.º ano e uma certidão profissional. “Depois, quem sabe? Ainda sou novo. Tenho tempo”.

Paula Constantino aponta João como exemplo de um dos alunos com CEI que poderiam ter tido uma vida diferente. Vasco, que está no 10.º ano, é outro que “tem muitas capacidades”: “Não sei se no ensino básico se explorou ao limite a possibilidade de eles se manterem no ensino regular, num curso de Educação e Formação, por exemplo”.

Agora não há nada a fazer. Não podem frequentar um curso profissional ou, sequer, vocacional, no ensino regular, porque antes não tiveram um currículo normal. Eles não se importam: “Estou bem assim”, diz João.

Sem perdão
Já almoçaram, a cantina foi-se esvaziando da primeira leva de alunos. Eles ficam para trás, a conversar: no básico, nem um gostava de estar com a turma de referência; Ana diz que os colegas lhe chamavam "estúpida", de Luís diziam que era "burro"; João despacha o assunto, não lhe apetece falar disso, mas adianta que resolveu "problemas parecidos” à sua maneira. Ana diz que se encolhia. Conta que alguns dos antigos colegas já tentaram contactá-la através do Facebook, mas ela não lhes perdoa: “Nunca”.

Agora, a questão não se põe. Tanto, pelo menos. Ana Filipa diz que já lhe aconteceu ir sentar-se na mesa dos colegas de turma, só porque não havia outro lugar, e dizerem-lhe “aqui não” ou “está ocupado”. Luís, Ana e João não têm motivos de queixa nem de satisfação – só estão com eles a Educação Física e uma ou outra vez, quando há festas. Parecem ignorar-se mutuamente, como hão-de fazer daqui a meia hora, quando se encontrarem para um magusto.

Os quatro dão-se bem com os restantes alunos com CEI e todos parecem ser, realmente, amigos. Mostram-se alegres. Apoiam-se nas aulas e nos balneários, conversam nos intervalos, trocam mensagens de telemóvel ou de Facebook ao fim de semana, às vezes encontram-se fora da escola.

Dizem que são “mais felizes agora”, no secundário. “O ensino é mais exigente, mas os professores já não andam tanto em cima de nós; somos responsabilizados, mas também somos mais livres, estamos à vontade”, explica Vasco, que está no 10.º ano.

Antes do magusto, os alunos com CEI representam, para os colegas da turma de Multimédia, uma curtíssima peça sobre a lenda de São Martinho. Ensaiaram na aula de Português, mas não correu bem e estão ansiosos. Com as folhas de papel a tremer-lhes nas mãos lêem as frases que não conseguiram decorar, mesmo que que elas se resumam a duas palavras: “Tenho frio”.

Durante a peça nunca se faz silêncio – muitos dos colegas que assistem brincam, conversam entre si e riem baixinho de outras coisas. Os atores parecem não dar por isso. Quando a peça acaba, sorriem, aliviados. Vão ao centro da sala de atividades e fazem vénias para os aplausos. Não tarda, voltarão a encontrar-se com o resto da turma, para a aula de Educação Física.

Preparar a integração é discriminar?
A aula, no campo de jogos exterior da escola, decorre forma tensa e confusa. Os 22 alunos da turma de referência obrigam à vigilância permanente da professora. Apesar de esta se mostrar firme e severa, muitos desobedecem, riem nas suas costas, falam enquanto ela dá indicações.

É o único momento do dia em que é percetível o desconforto dos cinco alunos com CEI. Juntam-se num extremo do campo de jogos. E, apesar do vaivém da professora e da atenção constante de uma auxiliar de ação educativa, Ana Ladeiro, não sossegam..

Miguel quer praticar ténis sozinho, Manuel chora porque quer uma bola grande, Luís só quer jogar com Áurea e Ana interrompe várias vezes o que está a fazer, por se sentir indisposta. Durante alguns momentos, ao longo da aula, um ou outro faz o mesmo que o resto da turma, mas nunca todos ao mesmo tempo e nunca com os outros colegas.

A professora, Cristina Ferreira, mostra-se cansada e desanimada. “Sou a favor da inclusão, mas isto não é inclusão. Tínhamos de ser, pelo menos, dois professores, e deviam escolher a dedo a turma em que integram estes alunos e prepará-la, de alguma forma. Esta, com jovens com comportamentos desajustados e que não são solidários, não é adequada”, comenta.

Paula Constantino não pensa da mesma maneira. “Chegar a uma turma e dizer: “Vão ter colegas especiais, tratem-nos de forma especial”, não é, à partida, estar a promover a discriminação?”

Antes de tocar para a saída, todos regressam ao balneário. Miguel e Manuel são os primeiros a reaparecer e a aproximar-se de Ana Ladeiro, que espera por ambos, para os acompanhar ao portão da escola. Já não há sinais de lágrimas ou de nervosismo. Vêm sorridentes. Miguel – tal como fez com as professoras de Educação Especial – cumprimenta-a, mais uma vez, com um abraço: "Gosto de ti".

Fonte: Público

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

SEMEAR A MUDANÇA

Sensibilizar a sociedade civil. Há seis anos que o BIPP – Soluções para a Deficiência implementa estes dois objetivos, promovendo a inclusão de jovens com deficiência no mercado de trabalho, dando-lhes autonomia e qualidade de vida. Há duas semanas, a instituição viu o seu trabalho reconhecido com a atribuição do primeiro lugar do Prémio BPI Capacitar. Com o dinheiro que vai receber, ajudará ainda mais jovens a entrar no mercado de trabalho.

Não fora o frio que se faz sentir nesta manhã de dezembro e até parecia que estávamos na primavera. Os tons de verde, o cheiro a terra molhada e o sol que aquece este pedaço de terreno da Tapada da Ajuda ajudam a esquecer o calendário. Estamos numa zona privilegiada de Lisboa onde o silêncio impera. Aqui, respira-se tranquilidade.

Mas a azáfama é muita. Alguns dos 42 formandos do projeto Semear impulsionado pelo BIPP – Soluções para a Deficiência sorriem ao ver-nos chegar. Outros continuam o trabalho de enxada na mão, a semear couves ou a ouvir os formadores. São jovens adultos com necessidades especiais divididos em duas turmas e integram o projeto desde o seu arranque, em outubro do ano passado. O programa, que inclui formação técnica em jardinagem e agricultura, visa ainda a capacitação social e pessoal com vista à posterior integração no mercado de trabalho.

Todos estes jovens, com idades entre os 19 e os 45 anos, estavam desempregados e inscritos no Instituto de Emprego e Formação Profissional. «Alguns são dependentes de subsídios e não estão devidamente integrados na sociedade», diz Joana Santiago, presidente da direção da instituição particular de solidariedade social. «O nosso objetivo é que deixem de ser subsidiodependentes para passarem a ser ativos e contribuintes.» Os dias que outrora eram passados em casa, no café ou em instituições foram substituídos por aulas teóricas em sala e formação prática em campo. «O projeto Semear vai dar-lhes mais autonomia e maior capacidade financeira porque muitos deles vivem em famílias socialmente desfavorecidas e são oriundos de contextos de abandono e institucionalização.» (...)

ACABAR COM OS MITOS que persistem acerca das pessoas com deficiência é outra das metas do Semear. Mudar as suas perspetivas de vida também. «Se não conseguirmos investir na capacitação pessoal e social destes jovens não iremos conseguir integrá-los», diz a presidente da direção. «Eles precisam de ser treinados na sua autonomia, aprender a viver em sociedade, saber usar o dinheiro, saber andar de transportes públicos, tomar conta de si próprios, gerir o seu próprio rendimento…»

Aos poucos cada um deles demonstra aquilo que sabe fazer melhor e quais as tarefas em que mais se destaca. «A deficiência intelectual esconde-se. Não se vê na cara. Estes jovens normalmente não são aceites na sociedade. Muita gente espera deles aquilo que eles não conseguem dar. Ainda persistem muitos tabus em relação à deficiência e às incapacidades mas estas pessoas são fantásticas a trabalhar quando são bem integradas», reforça Joana. É nesta diferenciação que se baseiam as escolhas profissionais mais tarde. Para isso contribuem os estágios em contexto de trabalho, como aconteceu recentemente numa empresa no setor agroalimentar, a ELS, onde os formandos do Semear tiveram a oportunidade de mostrar as suas capacidades profissionais. A experiência de uma semana foi bem recebida e alguns gostariam de a repetir.

É o caso de Miguel Ribeiro, 27 anos. Define-se como «rápido e eficaz» e gostaria de ter passado mais tempo na formação da empresa de Loures. «Gosto muito de semear e de trabalhos que puxem pelo físico.» Tal como o colega Diogo Oliveira (na foto), que gostaria de ser «jardineiro para sempre», como diz repetida e convictamente. Com 20 anos, e ao contrário de Miguel, não gosta muito de semear. Prefere «tirar pedras do caminho». No fundo, é isso que este projeto faz – afasta possíveis obstáculos do percurso de cada um destes jovens proporcionando uma nova vida. Diogo lembra-se de ter sido elogiado na formação no exterior, na empresa agroalimentar, por ser considerado «muito rápido a embalar». Ainda assim, também se cansa. E, na Tapada da Ajuda, sempre que precisa de descansar, escolhe sempre o mesmo local para relaxar as pernas e respirar fundo.

Os formandos têm direito a um intervalo a meio da manhã e outro a meio da tarde. Alguns aproveitam para lanchar, outros sobem a um pequeno bar onde bebem café e uns quantos aproveitam para falar um pouco das suas vidas. «Eu também gostava de ser gravado», diz Artur, enquanto se prepara para partilhar um pouco do seu dia-a-dia. Alexandre Pereira, 26 anos, elogia os formadores e a iniciativa, mas confessa que as aulas teóricas lhe custam um pouco. «Tomo medicação e se fico muito tempo em sala adormeço.» O sol deixa-o bem-disposto e o trabalho no campo também. «É um trabalho que me alegra.»

Duas vezes por semana «vendem» o que cultivam, a um preço simbólico, no edifício principal do Instituto Superior de Agronomia. «Vendemos os produtos para podermos angariar verbas para comprar ferramentas e material. Claro que a iniciativa não gera o dinheiro suficiente para o que necessitamos mas é interessante sensibilizar professores, colaboradores e pessoas de fora do ISA», diz Joana. Quando há excedente de produção, o Semear promove o escoamento para uma empresa parceira, a Frustock, e também a doação de alguns produtos ao Banco Alimentar.

Os formandos produzem consoante os módulos de formação que estão a ter. «Já cultivámos couve-coração-de-boi e neste ano estamos a produzir couve-lombarda, fava, cenoura, alface, alho, tomate, para consumo em fresco. Já tivemos melão, que foi um sucesso enorme, algumas ervas aromáticas (alecrim, tomilho, erva-príncipe, erva-cidreira) e também já semeámos ervilha apesar de ainda não ter dado nada», explica o formador agrícola Fernando Quintela. «Esta terra é nutritiva e ótima, as plantas dão-se lindamente, mas é também argilosa e pesada. Para trabalhar, é difícil, e se chove um pouco a terra agarra-se às botas e às ferramentas, o que dificulta muito o trabalho.»

Apesar das caraterísticas da terra, os jovens que integram o Semear veem nela a oportunidade de ter um futuro diferente. Não têm medo do trabalho duro do campo, não se negam a pôr as mãos na terra nem se importam de sujar as botas. E é com ansiedade que querem ver o resultado das culturas que semeiam. «Perguntam constantemente quando podem colher aquilo que plantaram», diz Fernando. No começo desta formação, levavam alguns produtos. «Chegar ao fim do dia, poder levar para casa os hortícolas e frutos que cultivaram era verdadeiramente entusiasmante. Vale mesmo a pena assistir à reação deles.»

«Os formandos preparam umas linhas de terra a que chamamos de “camalhões” porque fazem de cama às plantas e servem para drenar o excesso de água quando o solo é regado», explica Helena Santos, formadora do módulo das brassicáceas, recém-chegada ao projeto. As brassicáceas integram todas as plantas pertencentes ao género «brássica», como as couves, a rúcula, as mostardas-vermelhas, o nabo, a nabiça, entre outras.

«Recebemos as sementes e colocamo-las diretamente na terra, como no caso da rúcula.» Os formandos aprendem a preparar o solo, quais os cuidados a ter com as plantas, os compassos de plantação, as características das plantas, as utilidades das culturas, se são culturas de inverno ou de verão, como e quando deve ser feita a colheita, etc. Helena confessa que o maior desafio dos formadores é lidar com a heterogeneidade do grupo. «Temos de aprender a lidar com isso, quer individualmente quer na dinâmica do grupo. Todos os dias aprendemos um pouco.»

UMA VEZ POR SEMANA, os estudantes de Agronomia têm a oportunidade de trabalhar com os formandos do Semear. A hora de almoço é passada nesta atividade conjunta em que cada aluno é mentor, mas também acaba por aprender com aquilo que os jovens que integram o projeto do BIPP têm para partilhar. Acima de tudo, pretende acabar-se com os preconceitos existentes na sociedade relativamente a pessoas com necessidades especiais. Os estudantes do ISA têm também aqui uma oportunidade de aplicar na prática os seus conhecimentos. «Os meus alunos estão constantemente com as mãos na terra e não têm problemas em agarrar-se às enxadas, acabando por ser um exemplo para estes estudantes do ensino superior», diz Fernando Quintela. «É uma experiência nova para todos.» Tratam-se pelo nome, cumprimentam-se, fruto de uma enorme cumplicidade que, semana a semana, vai sendo aprofundada.

Francisca Viveiros tem 19 anos e é aluna do terceiro ano de Engenharia Agronómica do ISA. «No início estava um pouco assustada com a mentoria porque tinha receio de que estes jovens fossem de facto muito diferentes e que sentisse dificuldade em lidar com eles. Acabei por concluir que é muito fácil e que não se nota qualquer tipo de diferença.» Defende que a iniciativa deveria ser alargada a mais dias ou de forma mais ativa por parte dos mentores. «É uma experiência em que se ganha muito e não há nada a perder.» Enquanto potenciais futuros empregadores, estes jovens começam a ser sensibilizados para as capacidades das pessoas com deficiência.

E desengane-se quem pensa que os formandos ficam por aqui… Há quem vá mais além, como Carlos Alves, 45 anos, responsável pelo projeto de intervenção comunitária Pensar Verde numa zona carenciada de Lisboa, o Bairro da Liberdade, em Campolide. «É um local onde é difícil, mas não é impossível, sonhar», diz Carlos, que considera a formação Semear um desafio diário. «As pessoas não se definem pelo tipo de deficiência que têm, mas por aquilo que querem fazer. Esta formação pode abrir muitas portas. O conhecimento nunca é de mais. Há cada vez mais espaços verdes e qualquer junta de freguesia teria a ganhar ao ter pessoas como nós a trabalhar.» Não se deixa desanimar pelas dificuldades e gosta de «motivar os desmotivados». Transformar terreno baldio num espaço dedicado a hortas comunitárias comercializando produtos hortícolas é o objetivo do projeto.

JOANA SANTIAGO viu a sua vida dar uma volta completa com o nascimento, há 18 anos, de Francisco, o terceiro filho, que tem «uma deficiência sem diagnóstico, motora e intelectual». No ano passado deixou a profissão de enfermeira para se dedicar a tempo inteiro aos desafios que o BIPP lhe coloca diariamente. Criou o Banco de Informação Pais a Pais (BIPP) em 2005, em Cascais, mas só abriram portas em 2009. Além do Semear, o BIPP desenvolve outros projetos de inclusão para pessoas com deficiência. Sente-se «responsável por esta casa» e defende de forma acérrima a necessidade de criação de soluções para estes jovens.

«Não concebo que um jovem chegue à idade adulta e fique fechado numa instituição o resto da vida. Não se arrumam as pessoas assim.» Critica a falta de união e sinergia entre as várias instituições em Portugal. «Podemos fazer coisas juntos. É isto que falta no nosso país: a sinergia institucional enquanto objeto de mudança.» A vida obrigou-a a adaptar-se e motivou-a a lutar pela igualdade de oportunidades na diferença. Não só pelo Francisco, mas também para todos os jovens como ele. Que podem ser felizes e ter uma vida dita normal.

EMPREGAR JOVENS COM DEFICIÊNCIA
O que distingue o Semear de outros projetos que trabalhem com pessoas com deficiência é a perspetiva de empregabilidade. «Estas pessoas tinham duas opções: serem institucionalizadas ou ficarem à mercê do que a sociedade tem para lhes oferecer», diz Catarina Bento, técnica de reabilitação psicomotora do Semear. O setor primário é dos que mais se adequam às capacidades de trabalho de jovens com deficiência intelectual. «Cerca de um terço da turma tem uma vida autónoma, mas não é completamente funcional, daí que seja estabelecida uma rede de suporte para que os jovens continuem integrados no mercado de trabalho.» Caso as tarefas não correspondam ao que mais gostam de fazer, não se insiste. «Temos de procurar atividades em que se sintam motivados, pelo que iremos encaminhá-los para empresas adaptadas ao seu perfil. Não nos interessa ter jovens a andar de formação em formação. Escolhemos jovens devidamente maduros para integrar ativamente o mercado de trabalho e com aptidão para esta atividade», acrescenta Joana Santiago, presidente da direção do BIPP – Soluções para a Deficiência, a instituição particular de solidariedade social que fundou em 2005. (...)