A ideia de uma escola pública tem menos de 200 anos. Antes de existir escola pública e durante muitos anos, a educação era do foro privado. Sendo do foro privado consumava-se numa espécie de acordo em que alguém prestava um serviço a outrem a troco de algum pagamento. A emergência de uma escola pública no início do século XIX foi fundada em premissas muito distintas: a escola era vista como um bem que devia ser disponibilizado para todos os cidadãos, gratuitamente e promotora de uma ideologia de estado não enfeudada a interesses “privados”. Foi o que se chamou a escola “universal, gratuita e laica”. Durante muitos anos esta diferença entre o que era público (universal gratuito e laico) e o privado (restrito, pago e ideologicamente “alternativo”) foi clara e toda a gente entendia esta diferença.
Atualmente instalou-se um debate que esbateu as fronteiras entre estes domínios privados e públicos. Tendo começado noutros domínios, acabou por chegar à educação. Dizemos que começou noutros domínios porque na Saúde, na Economia e em muitos outras áreas é cada vez mais difícil deslindar quem paga, quem se responsabiliza, quem assegura os serviços básicos à população. Temos até o exemplo das “famosas” Parcerias Público Privadas em que descobrimos que havia uma perfeita articulação entre o público e o privado: o público socializava os prejuízos e o privado arrecadava os lucros. Mas adiante… O processo chegou à Educação e está instalado o debate. Deixaria aqui três reflexões sobre este tema:
Em primeiro lugar, e até por razões históricas e que se prendem também com o respeito pelas opções ideológicas das famílias, a educação privada tem o direito e mesmo necessidade de existir. A educação pública, como diríamos “republicana”, não pode ter o monopólio das opções educativas. Imagino, por exemplo, famílias que pretendem para os seus filhos uma educação religiosa - que por razões de equidade não deve ser integrada no currículo da escola - e que gostariam de um ensino confessional. Penso que, desde que seja salvaguardada a aquisição de competências consideradas fundamentais, este ensino deve estar disponível.
Em segundo lugar: disponível sim, mas quem o paga? Aqui o assunto parece claro: o estado paga as escolas públicas e o privado paga o privado. Injetar dinheiro público nas escolas privadas é uma desvirtuação da missão do estado. Por duas razões principais: a) antes de mais porque todo o financiamento privado é um desfalque no financiamento público. Se se põe num lado, tem que se tirar do outro, não é verdade? Num tempo em que todos os tostões contam é incompreensível como é que se pagam aos privados serviços onde o estado já gastou dinheiro público; depois porque b) não é sério que o estado depois de pagar as escolas, a formação dos professores, os serviços de apoio, a máquina organizativa da educação, vá desvalorizar tudo isto para financiar quem não gastou um tostão em nenhuma destas despesas e que vai eventualmente lucrar com este financiamento.
Em terceiro lugar, não me parece sério falar em “liberdade de escolha”. E dou um exemplo muito direto: qual é a escolha que têm os pais dos alunos com uma condição de deficiência e que, pela legislação nacional e internacional, têm direito a ser educados em modelos inclusivos? ( E estamos a falar de pelo menos 50.000 alunos em Portugal). E qual é a escolha que tem os pais dos alunos que têm um desempenho académico baixo? Aqui quando se fala em liberdade de escolha devíamos falar em batota porque a esmagadora maioria das famílias não tem qualquer liberdade de escolha: a) ou porque vive em locais sem alternativa, b) ou porque não tem dinheiro para os transportes, c) porque não lhe é possível assegurar pela distância ou pelos horários a frequência, d) ou porque a escola privada torce o nariz para receber um “mau” aluno, e) ou porque simplesmente não o recebe por ele ter uma deficiência e “não ter condições”.
A discussão está pois tornada turva para que alguém possa pescar nestas águas… A defesa do ensino privado como um direito (e não uma opção) e uma liberdade de escolha ( e não uma alternativa) desvia recursos que deviam ser usados na escola pública e empobrecem-na de tal forma que qualquer dia até parece que o mais lógico é acabar com ela ( ou então que a escola pública é necessária sim mas para os pobres e para os “maus” alunos).
Afinal quando havia setores políticos e económicos que clamavam por menos estado não estavam a ser sinceros; na prática quer-se mais estado: um estado que não só assegure uma rede pública de escolas para todos, durante todo o ensino básico e mesmo nos lugares mais recônditos do país mas adicionalmente também um estado que pague duplicação de serviços, financie projetos corporativos e conducentes a lucros privados e que, enfim, acentue que desde as primeiras idades existe falta de equidade. Esta grave falta de equidade V~e-se numa razão muito simples: os alunos que podem entrar no privado, têm abertas as portas do público; mas muitos alunos que frequentam o público não têm acesso ao privado.
Como diria o povo: “Assim também eu…”
David Rodrigues
Professor Universitário
Presidente da Pró – Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial.
Via FB mas com publicação anunciada no DN
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