Será acertado deixar ao critério das vagas a matrícula no primeiro ciclo de uma criança que ainda não completou seis anos? Falámos com um pediatra, um professor do ensino básico, um psicólogo e uma educadora de infância para ajudar os encarregados de educação no processo de decisão. Se tiver dúvidas, a opinião é unânime: não há vantagens em apressar o início do percurso na escolaridade obrigatória
A legislação em vigor estabelece que as crianças que fazem seis anos entre 16 de setembro e 31 de dezembro são as chamadas "condicionais", ou seja, podem entrar no primeiro ciclo naquele ano letivo apenas se sobrarem vagas, depois de entrarem todos os alunos que já tenham feito seis anos antes desta data. E, todos os anos, pais ou educadores de crianças com aniversários nos últimos três meses do ano questionam-se: devo fazer a matrícula ou aguardar mais um ano e deixá-lo no pré-escolar?
O pediatra Manuel Magalhães diz que o mais importante é que os pais não se demitam desta decisão, deixando-a ao critério da aleatoriedade das vagas, ou mesmo sucumbindo à pressão de estabelecimentos de ensino que precisem de mais alunos para completar turmas. "Há situações em que as escolas fazem mesmo pressões sobre os pais, decidem que as crianças vão entrar e os pais não têm grande voto na matéria", diz à CNN Portugal.
Mas a verdade é que os pais podem ter "voto na matéria": a matrícula de uma criança condicional não é obrigatória - ao contrário do que acontece para as crianças que já completaram seis anos - e, portanto, antes de avançarem com o processo, os encarregados de educação podem decidir ouvir quem mais de perto lida com as crianças, seja um educador de infância, o pediatra ou, eventualmente, um psicólogo a trabalhar na área educacional. "É importante os pais não se demitirem dessa responsabilidade", reforça Manuel Magalhães. "O sistema de ensino deve ser focado nas crianças e não na sua estrutura. Tem de se adaptar às crianças e não o contrário", assinala.
Numa altura em que ainda decorrem as matrículas para o primeiro ciclo do ensino básico - terminam no próximo dia 15 de maio - o pediatra decidiu publicar nas redes sociais conselhos para encarregados de educação indecisos entre fazer este ano ou no próximo a matrícula dos seus educandos, recorrendo à evidência científica compilada no relatório técnico da American Academy of Pediatrics, que indica que não existe uma idade ideal para começar no primeiro ano, mas sim vários fatores no desenvolvimento da criança que mostram se ela está ou não pronta a sentar-se numa sala de aulas.
Segundo o relatório técnico norte-americano, há aspetos que devem ser desenvolvidos em idade pré-escolar e que permitirão uma "transição mais suave" para o primeiro ano, explica Manuel Magalhães. Entre estes aspetos estão, por exemplo, um crescimento harmonioso em que a criança tenha desenvolvido competências básicas, nomeadamente cuidar da sua higiene e alimentar-se de forma autónoma, correr, saltar, desenhar e picotar, que tenha capacidade de estabelecer relações emocionais, de reconhecer os seus sentimentos, que tenha uma noção de valores e cultura e, naturalmente, que saiba ouvir e falar de forma organizada, tendo noção das letras e conhecendo bem os números.
"Se tiverem dúvidas, falem com os vossos pediatras", diz Manuel Magalhães, que considera que não existe, por norma, qualquer desvantagem em adiar a entrada no primeiro ciclo. "Os pais acham que vão perder um ano. Eu digo, não vão perder, vão ganhar um ano! Um ano de competências, de atenção, de brincar, de liberdade na aprendizagem", sublinha. "Os pais têm a ideia de que vão atrasar, de que eles vão perder os amigos da sala. As crianças habituam-se rapidamente a novos grupos de amigos, esta questão não deve ser uma preocupação", garante.
Treinar a brincar no pré-escolar
Manuel Magalhães aconselha mesmo os pais das crianças que tenham feito agora cinco anos e que, pela data de aniversário, sejam previsivelmente condicionadas à existência de vaga para entrar na escola primária, a falarem sobre o tema com o pediatra ou médico de família. E sugere que vão amadurecendo a decisão ao longo do tempo, olhando para a criança que têm em casa e para as suas características, sem deixarem para a altura das matrículas essa reflexão.
"Na consulta dos cinco anos são avaliadas várias coisas e o médico percebe, por exemplo, se há até sinais de alarme", acrescenta. "Se eu tivesse agora um filho de cinco anos, queria brincar muito com ele, para treinar, por exemplo, a linguagem compreensiva e expressiva: perceber se ele me diz o que quer, o que sente, e para isso tenho de comunicar com ele, fazê-lo pedir-me coisas, explicar a sua vontade e perceber se ele faz as coisas que eu lhe peço. A articulação das palavras também é importante, porque pode ter impacto na forma como aprendem a ler e escrever, e depois analisar também a atenção. Pode ser a criança mais inteligente do mundo, mas se eu estiver a explicar algo e ela não me ouvir, não vai perceber", resume o médico.
E como se treinam estas competências em idade pré-escolar? A brincar. "Fazer puzzles, desenhos, pinturas, atividades mais calmas que obriguem a pensar e a cumprir regras", sugere o pediatra, que sublinha ainda a importância dos jogos de tabuleiro para a aquisição de competências várias, como contar as pintas dos dados, esperar pela vez ou compreender instruções. A destreza do punho é importante, treinar a motricidade fina para que a mão comece a desenhar o que cabeça imagina, diz ainda Manuel Magalhães, e a aprendizagem também pode acontecer no dia-a-dia enquanto as crianças sobem ou descem lanços de escadas e contam degraus. "As famílias estão cansadas, trabalham o dia todo, ao fim do dia não há grande disponibilidade para fazer este tipo de brincadeiras e é normal os pais ficarem indecisos nesta questão", admite. Mas lembra que é muito mais fácil para os mais novos aprenderem competências, como números e letras, em brincadeiras organizadas, do que sentados numa secretária de frente para o quadro, a ouvir um professor.
"Salvo algumas exceções, que as há, as crianças chamadas condicionais deveriam entrar sempre no ano seguinte. Nunca se perde nada em adiar", repete. Já sobre as matrículas antecipadas - é possível pedir para matricular no primeiro ciclo uma criança de cinco anos que só faça os seis a partir de janeiro do ano seguinte, ainda que esta possibilidade esteja condicionada a um relatório da equipa que acompanha o aluno na escola e à avaliação de um psicólogo - Manuel Magalhães é contundente: "Sou absolutamente contra. Não vejo razão nenhuma para que isso tenha de acontecer".
Também há casos em que os pais, por considerarem que é necessário maior amadurecimento da criança, pedem o adiamento da matrícula no primeiro ciclo, atirando a frequência do primeiro ano para os sete anos do futuro aluno. Nestes casos, também é necessária justificação médica e avaliação especializada, uma vez que se trata de adiar uma matrícula que, por lei, é obrigatória. "Se faltarem competências consideradas essenciais, nesses casos, com a antecedência devida, a questão deve ser colocada à educadora, deve ser feita uma avaliação psicológica, formal, sobre se o aluno beneficia de estar mais um ano na pré-escola e treinar melhor a brincar", explica o pediatra, que volta a dizer: o mais importante é os pais não se sentirem pressionados pelo contexto e conseguirem tomar uma decisão informada e ponderada.
A pressão parental para avançar
Hélder Ramos é professor do ensino básico há quase 20 anos e nunca esquece uma criança de cinco anos que lhe entrou na sala logo no início da carreira. "Era um miúdo muito bom. Mas nunca foi ótimo. Não lhe deram tempo", lamenta, em declarações à CNN Portugal. "Nestas idades, seis meses de crescimento fazem uma diferença abismal", acrescenta. "O que vai definir se uma criança tem um bom desempenho escolar é a maturidade, a resiliência. De que adianta saber ler e escrever, mas não ter paciência para fazer um trabalho ou, quando erra, para respirar fundo, aprender e avançar?", questiona.
Falando sobre matrículas antecipadas aos cinco anos - com as quais discorda - o professor defende que uma criança, para ter sucesso no 1.º ciclo, não pode saber apenas decifrar letras. Mas constata que, muitas vezes, os pais são iludidos pelo facto de os filhos já saberem ler e contar antes dos seis anos, pedindo ao estabelecimento de ensino um avanço do percurso escolar que não beneficia as crianças. "Os pais precisam de dizer aos amigos que o filho deles sabe mais do que os outros", lamenta. "Estão menos preocupados com o desempenho real das crianças e com o seu sucesso emocional, querem que ela faça habilidades e atividades para mostrarem aos amigos que também têm filhos", critica, dizendo que vê muitas vezes pressão parental para que os alunos avancem mais depressa do que o esperado.
Para o professor, é muitas vezes desvalorizada a motricidade fina, o saber pegar corretamente no lápis para escrever, conseguir rasgar papel com as mãos ou usar uma tesoura. "A pega correta no lápis, por exemplo, permite escrever de forma fluída e sem cansar. Com uma pega errada, a mão está em tensão constante e a escrita é muito dificultada. Às vezes, as crianças mais novas consolidam uma forma errada de escrever as letras e os números, com movimentos incorretos, e isso vai dificultar a escrita numa fase posterior", explica ainda o docente. "Quando reagimos à maturidade das crianças, estamos a forçar essa mesma maturidade", comenta, defendendo que os mais novos têm de ter a liberdade para brincar no devido tempo. "Mas sempre que um pai diz que o filho entrou na escola aos cinco anos, di-lo com vaidade".
Sobre as crianças condicionais, admite que há quem amadureça mais cedo e tenha condições para avançar, "da mesma maneira que está previsto na lei, no primeiro ciclo, que seja possível fazer os quatro anos em apenas três, porque realmente existem crianças de exceção. O problema é que são exatamente uma exceção. Se fossem a regra e as crianças estivessem todas prontas aos cinco anos, mudavam-se as normas", atalha. E há diferenças, naturalmente, entre uma criança que faz 6 anos a 16 de setembro e aquela que os completa a 31 de dezembro. E nem sempre o desenvolvimento é linear. "Se há dúvidas, falem com a educadora, levem eventualmente a um psicólogo. É a educadora quem tem termos de comparação com outros alunos e conhece aquele filho tão bem como os pais, passa muitas horas por semana com ele num contexto em que a criança vai agir de forma diferente da que se estivesse em casa", garante, apontando um caminho aos encarregados de educação mais desorientados.
Hélder Ramos defende ainda que os currículos do ensino básico são "extensos e intensos" e que não há vantagens em sujeitar crianças não preparadas a uma carga mais pesada tão cedo. Na dúvida, "a educadora de infância deve ser sempre a primeira pessoa a opinar", sublinha.
Valorizar a opinião do educador de infância
Hélder Leal é psicólogo educacional e defende que o tema das matrículas condicionais é "de extrema importância", porque o desenvolvimento humano "é motivado por diversos factores intrínsecos e extrínsecos que não se reduzem a questões de natureza legal" como esta, em que as datas de frequência do primeiro ano são definidas por despacho.
"Os dados empíricos vão revelando que existem, muito frequentemente, dificuldades consideráveis de natureza cognitiva e comportamental que acometem crianças que tenham ingressado precocemente na escolaridade obrigatória", diz o psicólogo à CNN Portugal. Hélder Leal também defende que o educador de infância é quem está mais habilitado para emitir uma opinião sobre se a criança deve entrar com cinco anos na escola primária e tem um "papel fundamental na relação com os pais", devendo garantir que qualquer decisão é sempre tomada em nome do superior interesse do aluno.
E ter em conta o interesse da criança também significa, muitas vezes, ir contra a pressa dos encarregados de educação ou resistir à "pressão parental", admite o psicólogo. "Os pais não têm, na maioria dos casos, as competências e o distanciamento emocional para tomar esta decisão de forma autónoma e íntegra", reflete.
Hélder Leal admite que, até há poucos anos, era "quase inexistente" a procura de um psicólogo, por parte dos encarregados de educação, para os auxiliar na tomada de decisão sobre a altura mais adequada para a matrícula. "Hoje temos uma geração de pais que pensam de forma diferente e que procuram respostas de modo a amenizar as dificuldades dos filhos no ingresso na escolaridade obrigatória", assinala. Ainda assim, admite que há pais que são mais obstinados em relação ao início da frequência escolar e que, nestes casos, educadores e psicólogos não são considerados nem ouvidos.
"Infelizmente, muitas dessas situações são posteriormente sinalizadas para avaliação psicológica ou requerimentos para serem acompanhados pela educação especial", lamenta. O psicólogo vai mais longe e defende mesmo uma mudança que preveja o fim do ingresso das crianças condicionais no primeiro ano, por considerar que poderia ajudar a "reduzir bastante as dificuldades de aprendizagem e as dificuldades emocionais" que surgem, geralmente, no segundo ano de escolaridade.
"Mais do que alfabetização na educação pré-escolar, são fundamentais as questões de natureza emocional e comportamental, como sejam o conseguir estar sentado, o saber esperar pela sua vez, o gosto e interesse em aprender ou o conseguir lidar com a frustração. Muitas vezes, a criança tem boas competências cognitivas mas falta-lhe maturidade emocional. Daí podem resultar consequências negativas no seu percurso escolar associadas, por exemplo, a dificuldades em lidar com o insucesso", explica o especialista.
Sobre um eventual ingresso no ensino primário aos sete anos, Hélder Leal não esconde que vê vantagens neste adiar do percurso escolar, perante uma escolaridade muito exigente que ocupa muito tempo letivo e pós-letivo aos mais novos. "As metodologias de ensino estão ultrapassadas, são muitas vezes arcaicas face ao paradigma digital actual. O tempo e o espaço para brincar encolheu consideravelmente e, infelizmente, cinge-se cada vez mais ao brincar sozinho, ao brincar à distância, sem toques, nem cheiros nem sabores e nem dissabores", declara.
O psicólogo diz também que vão surgindo pais - "talvez alternativos" -, mas mais conscientes para as questões do desenvolvimento dos filhos, e que requerem adiamentos do início do percurso letivo. Não condena, antes pelo contrário: "É importante refletir que, se não se brinca em idade precoce, poucas vezes se brinca dali para a frente", conclui.
Em relação às matrículas antecipadas, de crianças com cinco anos, diz que é sobretudo necessário perceber o que motiva este tipo de pedidos dos encarregados de educação. "Existem casos de crianças sobredotadas que, não sendo devidamente acompanhadas, resultam em prejuízo emocional e comportamental sério. São crianças que devem ser acompanhadas por um psicólogo não apenas pontualmente, mas ao longo do desenvolvimento", resume.
Salvaguardar a parte emocional
Elsa Antunes é educadora de infância desde 1991. "Já tenho na sala filhos dos meus alunos, e acho que ainda vou ter netos dos meus alunos", comenta a rir-se, ao telefone com a CNN Portugal. Acumula uma longa experiência de trabalho com crianças em idade pré-escolar e admite que a sua forma de pensar foi mudando ao longo dos anos, sobretudo em relação à idade de entrada no 1.º ciclo do ensino básico. De um modo geral, e sem entrar em casos específicos, diz que responde normalmente da mesma forma se lhe pedem opinião. "Digo que deixem as crianças amadurecer. É importante brincar e não perdem nada".
Garante que é mais comum que os encarregados de educação queiram que os filhos vão mais cedo para o primeiro ano - "mesmo não tendo maturidade" - do que os pais que refletem sobre um eventual adiamento. Descartam o grau de exigência do primeiro ciclo, a importância da parte lúdica e preferem o avanço possível, mesmo que isso faça a criança "bloquear" numa fase mais tardia e ter dificuldades no ensino primário.
Elsa Antunes recorda também que, no jardim de infância, a brincadeira é orientada por um educador mas as crianças aprendem muito na interação umas com as outras, que é facilitada pelas dinâmicas de sala, que não se repetem no primeiro ano. "É uma mais-valia para o desenvolvimento", assinala. E se os pais dizem que ficar no pré-escolar mais um ano "é só um ano perdido", a educadora assegura que não. "Mais um ano no pré-escolar não vai ser igual. Vamos ter outras crianças, outras atividades, outras temáticas, outras maneiras de trabalhar", diz Elsa Antunes. "De há uns tempos para cá vejo uma mudança de mentalidade, as pessoas estão mais despertas para isso", nota. "Antes pensava-se que brincar não é aprender. Mas aprende-se sobretudo a brincar", reforça.
A educadora de infância diz também que é preciso deixar de "crucificar os pais", muitas vezes mergulhados na rotina dos dias corridos e sem muito tempo ou ferramentas para avaliar a evolução dos filhos. E garante que a opinião de quem acompanha as crianças em sala do pré-escolar é sempre "uma mais-valia", em qualquer decisão. "Reconheço que há crianças que são muito interessadas e isso nota-se comparativamente com os mais velhos. Não é que tenham mais capacidades, mas de facto estão mais à frente", refere. "Estão sempre atentos, dão sugestões. E quando falamos de um tema ou projeto, eles conseguem agarrar nos conhecimentos adquiridos e transpo-los para outro projeto, usá-los em situações que nem nós, adultos, tínhamos pensado".
Duvida da necessidade de acelerar processos mas assume que, quando lhe pedem relatórios sobre matrículas antecipadas de crianças em idade precoce, os faz sempre "em consciência", independentemente daquela que percebe ser a vontade dos pais. "Não vamos esconder a realidade", desabafa.
Sobre o papel dos educadores de infância na preparação das crianças, Elsa Antunes vinca também que não é no pré-escolar que os mais pequenos devem aprender a ler ou escrever. "Não é esse o nosso papel", explica. "As crianças têm contacto com a as letras, os números, a adição e subtração, com as palavras. Mas um dos factores mais importantes que vejo para uma criança frequentar o primeiro ciclo é sem dúvida a maturidade", resume.