Perplexidade é talvez o sentimento mais forte que me assola ao ver o tipo de prova tornada pública. Antes porém um breve comentário sobre a sua existência.
Em nome de quê o Ministério de Educação e Ciência não coloca restrições quanto à competência para ensinar a qualquer professor contratado, podendo lecionar nas escolas públicas durante mais de uma dezena de anos? Seguindo a lógica deste ministério, será que a natureza do vínculo laboral faz olhar para a qualidade de ensino de formas distintas? Onde está o reconhecimento da formação inicial de professores realizado no ensino superior, mesmo quando sujeito a um sistema de avaliação externa?
Quanto aos objetivos que este tipo de prova pretende avaliar novas questões se me colocam. Afirma-se que se pretende avaliar “conhecimentos e capacidades considerados essências para a docência nos diferentes níveis de ensino”. Contudo, desde logo emerge a questão de saber se “a leitura e interpretação de textos de diversas tipologias, a mobilização do raciocínio lógico e do pensamento crítico orientado para a resolução de problemas em contextos não disciplinares e o domínio da expressão escrita” são capacidades que caracterizam e distinguem o desempenho da função docente de outras práticas profissionais.
Poder-se-ia dizer que são capacidades importantes em diversas profissões ditas intelectuais, como seja a docência, cargos de administração superior, medicina, magistratura, engenharia… Será que se pensa também sujeitar outros profissionais a uma prova que teste este tipo de capacidades à entrada da profissão ou é apenas para os professores? E em caso afirmativo, qual a razão?
Uma vez mais, como em tantas outras decisões tomadas, este ministério parece inspirar-se em práticas existentes noutros países, como seja o GRE (Graduate Record Examination) aplicado nos Estados Unidos a estudantes à entrada de cursos de pós-graduação, e de forma inadequada aplica-as a uma situação distinta. Note-se que, no presente caso, o que se afirma é a necessidade de avaliar as competências para a docência, a quem já nela está, e não verificar se o indivíduo tem ou não capacidades para entrar numa nova situação, neste caso de natureza académica e não profissional.
O tipo de questões nesta prova modelo merece igualmente um comentário. É sabido que existe uma forte relação entre a matemática e o raciocínio lógico. Mas será esta relação a razão para diversas perguntas recorrerem a esta ciência? Fala-se em resolução de problemas em contextos não disciplinares, mas serão eles mesmo assim? Já agora, qual a cientificidade da opção, por exemplo, de “seis erros de sintaxe” ou de “dez erros de ortografia” para considerar uma pontuação nula de uma pergunta de construção?
Esta prova parece configurar um teste psicométrico sobre as funções psicológicas e competências funcionais enunciadas. Ora, como a psicometria nos diz, a validade e a fiabilidade de um teste exige no mínimo um processo de aferição à população a que se destina e nunca se pode tomar a nota obtida como a medida absoluta. Ela deve ser sempre relacionada com os resultados obtidos na população a que se destina.
Mascarar um teste que pretende avaliar conhecimentos e capacidades considerados essenciais para a docência nos diferentes níveis de ensino com um teste psicométrico é no mínimo enganador. Mas mais importante ainda, o que se fica a saber sobre a qualidade do desempenho da função docente de um candidato que obtenha a pontuação máxima nesta prova? Se uma das características essenciais da docência hoje é também ser capaz de antecipar situações de sala de aula e agir no momento face ao inesperado, o que uma prova deste tipo nos revela sobre isso?
Leonor Santos
Professora Associada do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa
In: Público
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