Entre nós, o surgimento tardio do Estado social, fruto da prevalência de um regime totalitário, com uma forte componente pauperista, durante grande parte do século passado e da crónica escassez de recursos públicos, deixou um défice nos direitos de cidadania dos portugueses, quando comparados com os restantes países europeus.
Falar de políticas sociais é falar da relação do Estado com os cidadãos, e do papel que cabe a cada um na produção de bem-estar. Em Portugal, tal como na Europa do Sul, a intervenção do Estado no apoio às pessoas portadoras de deficiência foi um processo dominado, durante muito tempo, pelas teses familistas e comunitárias, que atribuíam à família, enquanto núcleo essencial da sociedade, o papel fundamental, muitas vezes o único papel, no apoio a esses indivíduos.
Quem viveu no mundo rural português ou na cidade ruralizada dos anos 70 e 80, terá bem presente a forma como eram tratados, umas vezes entre portas, outras vezes com recurso às relações intercomunitárias, os filhos-família “tolinhos”, receita, de resto, aplicada também aos problemas suscitados pelo alcoolismo ou pela violência doméstica.
Esta visão familista tinha um sentido utilitário muito importante, porque desonerou o Estado de investir seriamente nestes domínios. Não por acaso, alguns países do Norte da Europa, dotados de respostas sociais mais robustas, recuperaram – um tanto cinicamente – o discurso da “família”, quando concluíram que a amplitude do welfare state ameaçava o equilíbrio dos respetivos orçamentos públicos.
A dignidade da pessoa humana como regra-base
Em contraciclo com essa tendência, o advento da democracia e a adesão à União Europeia trouxe-nos o crescimento sistemático da despesa pública nesta área sem que, contudo, tenhamos conseguido preencher satisfatoriamente o défice de proteção social estatal.
O sistema constitucional português, filho de algum voluntarismo revolucionário e profundamente marcado pelo conjunto de tratados internacionais a que nos vinculamos enquanto estado-nação, tem uma perspetiva expansionista e muito generosa sobre o campo de intervenção estatal no apoio social, o que é natural numa constituição que, corretamente, estatui o primado do princípio da dignidade da pessoa humana, logo no seu artigo 1.º.
Consequente com esse princípio, o legislador constituinte estabeleceu, no artigo 71.º, a equiparação ao estatuto de cidadania dos cidadãos portadores de deficiência física ou mental (excecionando as ressalvas necessárias à salvaguarda dos direitos e deveres dos incapazes) e definiu o conteúdo “programático” da intervenção estatal neste domínio, o qual, na área da educação, é concretizado pelo disposto no artigo 74.º, n.º 2, alinea g) da Constituição. Esta norma incumbe o Estado de “promover e apoiar o acesso dos cidadãos portadores de deficiência ao ensino e apoiar o ensino especial, quando necessário”.
Trata-se, como nota a corrente doutrinária de Coimbra, de uma dupla garantia: a garantia do direito ao acesso ao ensino desses cidadãos e uma expressão da garantia do direito à igualdade de oportunidades, que impõe medidas compensatórias adequadas para a superação da desigualdade inicial dos cidadãos portadores de deficiência (Gomes Canotilho e Vital Moreira: 2007).
Ambição e realidade: o “eterno” problema na concretização da Lei
Esta ambição do legislador constituinte esbarra com a dura realidade dos factos, constatável na recente Recomendação sobre Políticas Públicas de Educação Especial, emanado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). A leitura desta Recomendação (aliás, sintética e exemplarmente formulada) traz consigo uma sensação de desconforto face à habitual dificuldade de materialização dos objetivos das leis que se vão publicando.
É pacífico que a adoção da Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (conhecida pelo acrónimo CIF) como instrumento de classificação e de organização da informação relativamente às necessidades educativas especiais, através do Decreto-Lei n.º 3/2008, trouxe consigo um salto qualitativo importante, porque, não obstante algumas objeções quanto ao carácter redutor da CIF, estabeleceu uma linguagem universal entre todos os intervenientes no apoio aos alunos com necessidades educativas especiais (docentes, especialistas em saúde e assistentes sociais).
No entanto, o CNE aponta desde logo uma fragilidade preocupante na forma como a adoção da CIF cria “disfunções” no “critério de elegibilidade de alunos(as) para medidas que respondam a necessidades educativas especiais”. Vale a pena transcrever o texto: “considera-se que a atual legislação deixa desamparado um conjunto considerável de alunos e alunas que manifestam necessidades educativas especiais e para os/as quais não é possível construir respostas educativas ajustadas, pela limitação imposta pelo quadro legal” (sublinhado nosso). Sem ir mais longe, a simples conclusão de que é a própria legislação que exclui alunos dos apoios de que eles, comprovadamente, necessitam é angustiante.
Evitando entrar pelo caminho da discussão, tão em voga, acerca dos recursos que o Estado pode disponibilizar, não se pode perder de vista o essencial: estamos perante um problema grave porque os direitos destes alunos não se compaginam com esta situação. De resto, a própria Recomendação evidencia que estamos numa área em que existem desperdícios de recursos, sendo dado o exemplo, muito significativo, de escolas de referência para alunos cegos e de baixa visão que apenas têm acesso aos manuais de Braille no final do ano letivo.
Retirar apoios aos alunos sem necessidades permanentes é a solução?
Por esta razão, é difícil compreender o caminho definido pelo Governo para a revisão do quadro legal vigente. Ninguém nega que o atual regime jurídico tem fragilidades e que estas devem ser superadas. No entanto, a anunciada intenção de retirar dos apoios da educação especial todos os alunos que não apresentam dificuldades permanentes, transferindo-os para modalidades de apoio às dificuldades de aprendizagem poderá fazer com que, tal como nota o CNE, a falta de resposta, em tempo útil e através de intervenção especializada, às dificuldades pontuais destes alunos tenha como consequência a conversão dessas necessidades transitórias em necessidades permanentes, subvertendo, na prática, a intenção do legislador-gestor de recursos públicos. Ou seja, ao reduzir o âmbito das necessidades educativas especiais, tal como se anuncia, corre-se o risco de aumentar o número de alunos excluídos, colocando-os numa situação de especial fragilidade, porque o sistema educativo, tal como funciona e com os recursos de que dispõe (designadamente humanos), não consegue proteger sempre, de uma forma eficiente, os alunos que necessitam de atenção diferenciada, especialmente quando as escolas são compelidas a apresentar “resultados” mensuráveis através de rankings e, por esse motivo, tendem a concentrar a sua ação educativa nesse objetivo.
Melhor seria, porventura, encarar de frente as questões relativas à gestão dos recursos afetos à educação especial, simplificando procedimentos e legislação, confiando mais na autonomia das escolas para gerirem a intervenção especializada e diminuindo a burocracia.
Hoje, uma criança ou um jovem com necessidades educativas especiais, correspondem a extensos e detalhados “processos”, fragmentados entre serviços do Ministério da Saúde, da Segurança Social, da Educação e da Autarquia (se necessitar, por exemplo, de transporte público adaptado e subsidiado), sujeitando as famílias, as escolas e a administração pública a enormes dispêndios de tempo e de meios que acrescentam desigualdade à desigualdade.
Quão longe estamos da garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar consagrados no artigo 74.º da Constituição.
Tiago Saleiro