O que leva um matemático de primeira linha a nível mundial a enveredar pelos caminhos do ensino da matemática a nível básico e secundário?
A principal razão é que gosto de me envolver com as pessoas. Sentia profundamente
o sofrimento dos alunos devido ao mau ensino da matemática, e a certo ponto – por volta de 1998 – senti que era necessário arregaçar as mangas e agir. E sabia que estava numa posição para fazer algo pelo
ensino da matemática que quase mais ninguém estaria.
E hoje em dia dedica-se a questões de ensino da matemática a tempo inteiro?
É um trabalho a tempo inteiro! Mas eu não sou um “educador” no sentido clássico do termo. Dedico-me de corpo e alma a melhorar o ensino da matemática naquilo que é mais crítico: construindo melhores programas, contribuindo para melhorar os manuais escolares e, acima de tudo, na tarefa que descobri ser a essencial: melhorar os conhecimentos matemáticos dos professores.
Qual desses fatores é o mais importante?
Não tenho quaisquer dúvidas: o essencial é melhorar o conhecimento matemático dos professores. Os professores dos Estados Unidos aprendem pedagogia, psicologia, etc. O que acho escandaloso é que, nos últimos cem anos, ninguém se tenha preocupado seriamente com a forma como os professores estão a aprender a matemática que mais tarde têm de ensinar. Quando dei por isto, fiquei incrédulo. Nem queria acreditar! Os especialistas em educação gostam muito de citar a obra pedagógica de Felix Klein [matemático do século XIX]. Mas a verdade dos factos é que nada do que ele escreveu tem relevância para o que os professores têm hoje de aprender para ensinar.
E onde estão hoje os maiores obstáculos?
Os mais graves começam logo nos níveis mais elementares. Por exemplo, as frações. É um erro tremendo ensiná-las ab initio como fatias de piza. Por exemplo, imagine que a um miúdo treinado a pensar em frações como fatias de piza é colocado o seguinte problema: se um carro anda 50 quilómetros em 45 minutos, qual a distância que percorre em duas horas e meia? E agora, onde estão as pizas? No meio da autoestrada? E como é que se multiplicam ou dividem frações? Como é que se multiplicam pizas?
Isso é muito estranho.
Muito estranho mesmo. Compreendi que, se queria mudar a forma como a matemática para professores é ensinada, tinha de começar logo do início. Pela maneira como são entendidas e ensinadas as frações. É isso o que faço no meu livro [Compreender os Números na Matemática Escolar, a editar em breve em Portugal].
Ficou satisfeito com o resultado?
Foi a coisa mais importante que fiz na vida. Para chegar aos alunos, às crianças, a única forma que tenho é através dos seus professores. E sei, por experiência, que estou a chegar a estes. E, assim, a influenciar positivamente milhões de crianças e jovens. Isto é fundamental, porque se conseguir fazer isto com o objeto mais básico da matemática – números e frações –, então sei que posso fazê-lo com tópicos mais avançados, como álgebra e geometria. E é essencial modernizar a forma e o conteúdo no ensino destes tópicos. Hoje em dia começam a levantar-se obstáculos aos alunos desde o início, muitas vezes, porque se ensina mal. Eu apelido a forma estruturalmente errada como a matemática é tratada nas escolas, de uma forma vaga, fluida e opaca como “matemática dos manuais escolares”. É preciso ultrapassá-la!
Foi coordenador, entre 2001 e 2008, do National Mathematics Advisory Board [estudo nacional para melhorar o ensino da matemática escolar ordenado pelo Presidente dos EUA], e mais tarde esteve na criação dos Common Core Standards [conjunto de metas e programas a atingir em todos os estados dos EUA]. A adoção destas recomendações, programas e metas tem sido consensual?
De maneira nenhuma. Tem havido grandes resistências, e de setores inesperados. Em primeiro lugar, por estranho que possa parecer, os pais. Os pais querem ver as suas crianças aprender exatamente da mesma forma que eles aprenderam 30 anos antes. Dá ideia de que não integram a noção de que se construíram métodos melhores. De facto, já em 2010 nós tínhamos redigido um curriculum escolar completo, do jardim-escola ao 12.º ano, lógico, coerente, estruturado e integrado. Mal estaríamos se fosse igual ao de há 30 anos! O grande desafio foi elaborar
metas e programas que as crianças compreendam bem e que, simultaneamente, sejam matematicamente corretos e rigorosos – como tínhamos anteriormente feito com as frações, que deixaram de ser pedaços de piza para serem pontos numa recta. Mas os pais reagem mal a isto: as crianças chegam a casa, fazem perguntas e... muitas vezes eles não sabem as respostas. E pensam: quando tinha esta idade não era isto o que aprendia.
Por que acha que houve esta reação?
Quando mudaram os programas e metas, teria sido necessário esclarecer pais e famílias sobre as mudanças que iam acontecer e, acima de tudo, por que razão eram necessárias. Era preciso explicar que não se estava a mudar só porque sim, mas porque as crianças vão aprender matemática melhor. Os processos de pensamento, sendo mais corretos, são mais transparentes, mais simples de aprender. As crianças vão conseguir ultrapassar a fobia da matemática. O problema, para retomar o exemplo das frações, em pensar em frações como fatias de piza é que, quando passamos a um outro contexto, as crianças deixam de reconhecer que se trata de um problema sobre números. Tudo fica opaco, e muitas vezes só é ultrapassável por memorização bruta, decorando técnicas para resolver problemas de contextos diferentes – pizas, distâncias percorridas por carros, temperaturas... – como se fossem problemas diferentes, quando o objetivo é precisamente o oposto: trata-se, com roupagens diferentes, do mesmo tipo de problemas, e os métodos de resolução são os mesmos. Trata-se apenas de números e frações. A forma opaca como a “matemática dos manuais escolares” trata as frações faz com que se perca esta mensagem simplificadora.
De que setor encontrou maior resistência às reformas?
De longe, da parte dos professores. E aqui o problema é bastante mais grave; creio mesmo que é este o ponto crucial. Para ser muito direto, o facto é que a maioria dos
professores só conhece, infelizmente, matemática incorreta. E portanto, do ponto de vista de um professor, todas estas reformas parecem muito... assustadoras. Trata-se de uma reação muito humana e compreensível. Se sinto que alguma coisa me ameaça, resisto. Não quero abandonar a minha zona de conforto. E assim muitos professores começaram a atacar os programas utilizando argumentos sem qualquer sentido, quando no fundo o problema era apenas a sua própria resistência à mudança.
Mas houve também uma questão política: seria necessário realizar um investimento gigantesco na formação e reeducação dos professores para estas mudanças; e esse investimento não foi feito. Isto era absolutamente essencial, porque os professores nem tinham noção da razão pela qual era necessário reformar a forma de ensinar. Nunca tinham visto a forma correta de fazer as coisas.
Portanto, não houve apoio político à formação de professores?
Exatamente. Alertei veementemente para esta necessidade, mas os decisores não me deram ouvidos. Foi um tremendo erro. Passei eu a trabalhar diretamente com os professores. Ou melhor, continuei com redobrada intensidade, pois já faço formação de professores de matemática desde o ano 2000.
E qual é a sua experiência nesse particular?
Comecei por criar, em Berkeley, Escolas de Verão para Professores. Os professores eram divididos em três grupos: elementar (jardim-escola ao 5.º ano), intermédio (final do Básico) e secundário. Cada grupo tinha cursos intensivos de três semanas, onde era explicada em detalhe e com rigor a matemática que os professores precisam de ensinar. A experiência foi fantástica: a grande maioria saía desses cursos inspirados, com a sensação de pela primeira vez terem compreendido a fundo aquilo de que estavam a falar nas aulas.
Está a dizer que os professores não compreendem verdadeiramente aquilo do que falam?
Nos EUA, muitos não compreendem. O problema é este: as universidades não ensinam a matemática de que os professores vão falar. Ensinam matemática avançada – grupos, anéis ou funções holomorfas – na esperança, totalmente infundada, de que ao aprendê-la os futuros professores fiquem intelectualmente equipados para ensinar matemática elementar. Mas não ficam. E quando chegar a altura de ensinarem frações, para onde se vão virar? Vão pensar, “como é que me ensinaram estas coisas há 15 anos?”, e repete-se o ciclo. Repetem exatamente o que aprenderam na escola porque nunca viram outra forma de o fazer. É este círculo vicioso a origem da “matemática dos manuais escolares”.
E como se pode quebrá-lo?
Vou dizer-lhe a minha experiência pessoal. Tendo-me apercebido de que era necessária uma solução mais sistemática, acabei por criar, na Universidade de Berkeley, uma sequência de três semestres de disciplinas de Matemática para Professores. Este curso está a funcionar continuamente desde 2006. Escrevi livros de texto específicos para estas disciplinas, pois não existia em lado algum nada de semelhante. O objetivo foi, como disse no início da entrevista, colmatar a muito deficiente preparação científica dos professores nos fundamentos das matérias que vão ensinar.
Esses livros já existem?
Os livros já existem, são utilizados nos cursos e irão ser publicados autonomamente dentro de um ano e meio. Note que não foram uma imposição minha! Pelo contrário: estes materiais evoluíram de acordo com o feedback dos professores, que foi incrivelmente valioso. Eles próprios me iam dizendo aquilo com que valia a pena gastar mais tempo – e aquilo com que não valia. A colaboração dos professores foi essencial para a construção e o sucesso deste curso. A abertura de espírito é essencial em todo este processo. Se eu posso transmitir aos professores aquilo que eles não sabem, também eles sabem muito melhor do que eu aquilo que não sabem! Num certo sentido, foram os professores que me disseram o que ensinar. Curiosamente, o facto de este curso não ter financiamento federal acabou por ser uma vantagem: não tinha nenhuma comissão a dizer-me o que fazer. Tivemos toda a liberdade para construir as nossas próprias soluções. E o resultado foi excelente.
Quais são as variáveis fundamentais para quebrar o círculo vicioso de que falava há pouco?
Em primeiro lugar, como já disse, o fundamental é colmatar a deficiente formação dos professores nas matérias que vão ensinar. Neste ponto as universidades têm uma grande responsabilidade. Em segundo lugar, os manuais escolares. Estes têm uma importância muito maior do que poderia parecer. É que não são usados apenas pelos alunos: são usados pelos professores. Muitos professores não têm tempo, não têm informação, não têm recursos para pensar profundamente na forma como vão ensinar. E portanto limitam-se a seguir o que está no manual. Hoje em dia os manuais são o que são: maus. Ora nos EUA o Governo federal não pode intervir na educação. E portanto o que acontece é ditado apenas pelo mercado. Os editores não têm incentivo para fazer manuais melhores, porque vão vender menos. Portanto sobrevivem os piores, numa espécie de seleção natural invertida. É insano!
Isso funciona mesmo assim?
Deixe-me contar-lhe uma história verídica. Fui consultado por uma grande editora de manuais, que me perguntou quais as alterações que deveriam fazer para estarem de acordo com os novos programas. Fiz um relatório detalhado. Dali a umas semanas fui contactado pelo representante da editora, que me disse que não iam fazer nada do que eu recomendara. “Mas porquê?”, perguntei. Ao que ele me respondeu que se o fizessem iam vender muito menos, e “não podiam correr o risco de terem manuais com os quais os professores não se sentissem confortáveis”.
Espantoso.
É por isso que todo este equilíbrio perverso só pode ser quebrado pelo lado dos professores. Temos de formar melhor os professores, temos de ter melhores professores, para que sejam eles a dizer aos editores “como se atrevem a produzir este lixo?”, e a não adotar maus manuais. São os professores a chave do problema. É quase irónico: os políticos acham que os problemas da educação se podem resolver atirando mais dinheiro para os problemas, fazendo mais obras, pondo mais computadores nas escolas. Mas a chave dos problemas é humana: são os professores.
Tudo isto é muito interessante para Portugal. Entre nós, houve recentemente um redesenhar das metas e programas do básico e secundário num sentido muito semelhante ao que o professor Wu descreve para o caso americano. E, também como no caso americano, as grandes reações vieram precisamente de certas franjas de professores e de associações de professores, que os descrevem como contendo “matemática a mais e educação a menos”. Pode comentar?
Não conheço de perto o caso português, pelo que posso apenas fazer comentários genéricos. Por várias razões, sobretudo pelas que já apontei, uma tal reação é, num certo sentido, de esperar. Para o sucesso das reformas, é crítico apostar muito forte na formação de professores. Por outro lado, é absolutamente necessário ter muito cuidado com a qualidade dos manuais escolares. Se houver manuais de excelência que concretizem programas e metas, eles irão sem dúvida ajudar a conquistar os professores.
Um argumento que se ouve por vezes é que programas e metas teriam uma abordagem demasiado “formal”, entendendo-se por isso que se deixou de praticar uma abordagem quase exclusivamente intuitiva e informal, em que os conceitos fundamentais se deixam vagos e imprecisos.
É claro que o excesso de formalismo é pernicioso; basta recordar a malfadada experiência da Matemática Moderna nos anos 60. No entanto, se é nesse sentido que é utilizado o termo “formal”, essa crítica não faz sentido. É absolutamente impossível percorrer a matemática do básico e secundário apenas com ideias vagas e sem rigor. Quando se introduz um conceito, é necessário fazê-lo de forma clara, não ambígua e com rigor – até mesmo a propósito das frações, no ensino básico. Além disso, a matemática do jardim-escola ao 12.º ano não é um fim em si. É uma escadaria que tem de ser percorrida, também, tendo como objetivo o atingir a matemática superior. É claro que não se pode ensinar a matemática do básico e secundário da mesma forma que se ensina a matemática superior; mas não se pode nunca perder de vista que um dos objetivos é preparar os alunos para aprender a matemática superior. E não podemos estar a vender gato por lebre. É forçoso, a pouco e pouco, conduzir os alunos no sentido da abstração, porque a matemática sem abstração não é matemática. E isso deve fazer-se a todos os níveis. A abstração não é um fim em si; faz-se porque se revela muito útil. As frações não são pedaços de piza, são pontos numa reta numérica. Quando pensamos neles desta forma, conseguimos fazer coisas que não conseguimos com pizas. A abstração é útil!
Pode elaborar?
A questão da abstracção é a mais importante na minha luta com os “especialistas em educação”. Estes insistem em que a abstração é má porque sim. No entanto, eu trabalho diretamente com professores e vejo o que se passa na realidade, no terreno. Por exemplo, nós temos um programa em que damos formação intensiva a professores cinco vezes por ano, uma semana de cada vez. Temos portanto feedback mensal desses professores, e eu vejo que temos todos os anos mais professores, que estão cada vez mais ligados à nossa abordagem… Para retomar o exemplo das frações, nós trabalhamo-las desde o início da forma correta, esquecendo as pizas. Depois, quando chega a parte de somar frações, as coisas tornam-se muito mais claras e simples. Cada professor vai para a sua escola e ensina de acordo com os nossos métodos. Em geral, têm uma adesão total por parte dos alunos, cujas reações são do tipo: “Ah! Afinal era assim tão fácil? Isto consigo eu fazer!” É, além do mais, muito gratificante.
Os seus livros sobre ensino da matemática elementar vão ser publicados em Portugal no final deste ano, numa edição apoiada pela Sociedade Portuguesa de Matemática. Como foi o seu impacto nos EUA? Têm marcado a diferença?
Sim e não. Os meus livros inicialmente passaram despercebidos porque, na comunidade da educação, foram boicotados. Durante mais de um ano, não houve uma única recensão, nem positiva nem negativa. Ergueu-se um muro de absoluto silêncio. E o silêncio é a melhor forma de matar ideias... Há cerca de um ano, Deborah Ball, professora de matemática da Universidade do Michigan em Ann Arbor e diretora do Departamento de Educação, fez-me exatamente essa pergunta. Eu dei-lhe esta resposta. Ela achou “um escândalo”, e ofereceu-se imediatamente para fazer uma recensão aos livros. Então sim, saíram da obscuridade a que os educadores os queriam remeter e agora estão bastante difundidos entre os professores. Veremos se podem fazer a diferença. No próximo ano e meio publicarei mais dois para a matemática do 3.º ciclo e secundário.
Há alguma mensagem que queira deixar especificamente para Portugal no que se refere ao ensino da matemática?
Portugal tem muito maiores possibilidades de sucesso nestas reformas do que os EUA. É um país tão pequeno! Pense nisto: só o meu Estado, a Califórnia, tem quatro vezes a população de Portugal. Para lá de lidarem bem com os três problemas essenciais – preparação científica dos professores, programas e manuais escolares –, é fundamental que existam administradores esclarecidos e com conhecimento profundo dos problemas que saibam estabelecer o diálogo e uma ligação profícua com os professores. Uma decisão tomada no topo, que não tenha a colaboração dos professores, não vai funcionar. É por isso que estou sempre a mudar os meus cursos de formação para professores: não tenho a pretensão de saber tudo. Quando não concordo com uma ideia, digo “então explique-me lá porque pensa assim”. Talvez seja essa a origem das minhas lutas com os autoproclamados “especialistas em educação”: estão convencidos de que estão na posse de toda a verdade, são impermeáveis a argumentos e muitas vezes nem estão sequer abertos ao diálogo. Mas nas questões de educação é essencial manter o espírito aberto. Ninguém sabe tudo.