Numa reportagem da semana passada, a TVI voltou a mostrar-nos como funcionam as relações do Estado com os colégios privados com contratos de associação e que se batem por uma suposta "liberdade de escolha". Desta vez não se ficou pelo grupo GPS , que permitia que alguns dissessem que se tratava apenas de um caso de polícia. Mostrou (não deixar de ver aqui ) como estamos perante um fenómeno generalizado.
O padrão é simples de resumir. Num determinado concelho há escolas públicas suficientes. Algumas em excelentes condições, com obras muito recentes e com um óptimo quadro docente. Outras, pelo contrário, há decadas à espera de investimento. Escolas que chegam e, em alguns casos, até sobram para o número de alunos na região. Mas, no mesmo raio de influência, autoriza-se a construção de escolas privadas que, à partida, sabem que contarão com apoio público - caso contrário nunca se lançariam no negócio. Esses colégios têm direito a subsídio público para receberem alunos, ao mesmo tempo que as escolas públicas veem o número de turmas reduzido muito abaixo da sua capacidade. Um apoio público de milhões permite que os ditos colégios ofereçam o que está interdito às escolas públicas: transporte para todos, por exemplo. E assim se duplicam custos e se garante o subsídio público a atividades privadas que não cumprem nenhuma função que o Estado não tivesse já condições para garantir. E se deixam as escolas do Estado a morrer por falta de alunos ou de recursos.
À frente das empresas financiadas encontramos ex-ministros, ex-responsáveis pelas mesmas entidades que autorizam as escolas e determinaram o número de turmas permitidas no público, até autarcas no ativo que presidem às mesmas câmaras que financiam os seus próprios colégios. Encontramos a mesmíssima promiscuidade entre o público e o privado que determinou quase todos os crimes económicos deste país: do BPN às PPP, dos Swap às privatizações ruinosas, da administração privada de hospitais públicos às concessões rodoviárias. Não são casos de polícia. Não são a exceção que confirma a regra. São o retrato da elite política e económica nacional. São, com raras excepções, a sua forma de fazer as coisas
Esta é a razão porque em todos os jornais se implora por um consenso alargado entre os partidos do "arco da governabilidade" em torno de algumas reformas, apresentadas como sinal de modernidade mas que mais não são do que uma transferência de recursos públicos para o privado. Como as condições económicas são novas, tudo tem de mudar para que tudo possa ficar na mesma. Uma das coisas que tem de mudar é a natureza da Escola Pública. Através das propostas de Nuno Crato e, mais recentemente, de Paulo Portas: o cheque-ensino ou modalidades que a ele conduzam. Ou seja, a criação de um Estado paralelo, dirigido por empresas que o Estado financia para nos prestarem os mesmos serviços que ele hoje garante. Não é menos Estado. É mais Estado para as clientelas e menos Estado para os cidadãos.
Garantirá esta solução mais qualidade de ensino? Apenas aquela que a seleção social garante e que os colégios praticam. Garantirá mais equidade e justiça social? Pelo contrário, cria um ensino a duas velocidades. Reduzirá os custos? Se cumprirem as mesmas obrigações do Estado, não. Mas disso tudo já falei aqui . Do que falta falar é do que esta lógica, no ensino, na saúde e em todas as funções do Estado, tem feito à nossa economia. O mesmo, aliás, que as imensas privatizações que se fizeram nos últimos anos: direcionaram o investimento privado para bens não transacionáveis, protegidos da concorrência e garantidos, no lucro que oferecem, pelo erário público. Adiando a modernização da nossa economia, que estivesse apostada na produção de bens transacionáveis, dirigidos, pela valor acrescentado (e não pela mão de obra barata), para a exportação.
Os subsídios aos mais pobres e aos desempregados nunca impediram, ao contrário do que esta gente nos vende, que os portugueses quisessem trabalhar. Mas este Rendimento Máximo Garantido adiou a idade adulta dos nossos maiores grupos económicos que, quase sem exceção, sempre orbitaram à volta do poder político (isto quando não são as mesmas pessoas) e da mesada que ele lhes garante.
Os supostos neoliberais (e isto não acontece apenas em Portugal), não se limitam a querer que o Estado abandone as suas funções sociais para que, sem qualquer proteção garantida pelo conjunto da comunidade, esse mercado fique livre para o negócio. Isso foi o que durante anos defenderam para a saúde, para a educação e, talvez mais importante do que tudo, para o sistema de pensões. Agora querem mais. Querem que o Estado mantenha essas funções como mero pagador. Querem um mercado supostamente livre, mas que usa os impostos dos cidadãos para se financiar.
Na realidade, é disto mesmo que a elite económica portuguesa vive desde quase sempre. Primeiro do ouro do Brasil e do comércio colonial. Depois do condicionalismo industrial. Por fim, dos fundos europeus e da privatização de monopólios protegidos e com o fundamental do investimento já feito. E agora, quer viver do financiamento público para desempenhar as funções hoje garantidas pelo Estado. A única coisa que não querem é um Estado Social forte, que qualifique e dê direitos a trabalhadores indisponíveis para viverem com salários de terceiro mundo, para, neste grau de exigência, competirem onde o mercado e a concorrência realmente existem. As boas agendas recheadas de contactos de ministros e os conselhos de administração recheados de ex-ministros continuam a ser um investimento mais proveitoso e seguro.
É para manter esta forma de fazer negócios no país, passando para uma nova fase da rapina, e não para modernizar a economia e os serviços públicos, que se pede um consenso nacional em torno duma suposta reforma do Estado. Na realidade, a novidade que nos oferecem é antiga de séculos: continuar a proteger e a financiar uma das mais medíocres e protegidas elites económicas da Europa - que é constituída, há mais de cem anos, por mais ou menos as mesmas famílias. A reforma que querem é apenas uma nova fase do negócio do costume. Por isso Cavaco Silva insiste tanto no tema. Se há quem saiba da velha arte de gerir interesses políticos e empresariais é o mais antigo político português no ativo. Não tivesse sido a década "cavaquista" um dos pontos mais altos desta traficância e o BPN a sua caricatura mais grotesca.
Daniel OliveiraIn: Expresso
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