sábado, 31 de agosto de 2019

5.º ano: mais professores, mais disciplinas, mais livros

É um novo mundo, um novo ano. O ensino em regime de monodocência termina e começa um outro ciclo de aprendizagem com mais professores, mais disciplinas e uma nova escola. As crianças têm de ser mais autónomas e organizadas, têm mais cadernos, mais docentes, deixam de ser as mais velhas do 1.º Ciclo e passam a ser as mais novas do 2.º Ciclo. Tudo muda. Já não há apenas um professor numa sala, há várias salas, mais docentes e tarefas de estudo. 

Quando um novo ano letivo coincide com um ano de transição é preciso redobrar as atenções. O 1.º e o 2.º ciclos são diferentes em vários aspetos. Cada disciplina tem o seu horário semanal predefinido no 2.º Ciclo e há mais matéria do que no 1.º Ciclo. A monodocência passa a pluridocência. A escola normalmente é maior, há mais alunos, mais salas para percorrer, mais intervalos durante a manhã e a tarde, e há o toque da campainha a avisar das horas. 

“Todas estas diferenças apontam para a necessidade de uma autonomia crescente. As crianças vão precisar de saber consultar o seu horário e movimentar-se na escola, para se dirigirem à sala correspondente a cada disciplina, na hora exata. Vão ter de prestar atenção aos toques e respeitá-los. A seu cargo, ficará a decisão de qual ou quais os intervalos em que devem ou precisam de realizar algumas tarefas, tais como lanchar, comprar senhas para a cantina ou ir ao quarto de banho”, refere Armanda Zenhas, professora, autora de livros na área da Educação, licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, mestre em Educação, doutorada em Ciências da Educação. 

Toda a ajuda é importante porque as rotinas mudam. Gerir mais e diferentes tarefas, saber consultar o horário, selecionar os livros e o material para levar para a escola no dia seguinte, preparar a mochila, decidir o que estudar em cada dia, almoçar ou não almoçar na escola. “As fases de transição de ciclo de escolaridade e a integração numa nova realidade escolar introduzem grande complexidade no percurso escolar das crianças”, escreve Armanda Zenhas na sua tese de doutoramento “A experiência de crianças na sua integração numa nova escola e num ano de transição de ciclo”, apresentada na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Um trabalho académico em que acompanhou uma turma de 5.º ano do ensino articulado de música ao longo de um ano letivo, utilizando a metodologia etnográfica, complementada com entrevistas semiestruturadas, diários das crianças, atividades participativas, questionários aos pais, conversas com professores, diretora de turma, assistentes operacionais, entre outros processos utilizados.

O diálogo é bom conselheiro e uma estratégia que facilita a adaptação a novos métodos. Conversar de forma aberta, franca, e amigável, ajuda a resolver problemas, alguns que não se detetam facilmente. “Tal como Roma e Pavia, também a integração numa nova escola ou num novo ciclo de ensino não se faz num dia. É importante que os pais tenham bem presente que, se estiverem muito ansiosos, essa inquietude e preocupação será transmitida aos filhos. Aos primeiros dias ou semanas de ansiedade segue-se, normalmente, uma adaptação progressiva e uma vivência saudável da nova escola. Os pais precisam de dar tempo ao tempo e de deixar espaço aos filhos”, escreve Armanda Zenhas, num artigo publicado no EDUCARE.PT. “Sem descurar, com a continuação dos dias de aulas, a atenção (sem ansiedade) a sinais que possam indiciar a eventualidade de dificuldades na integração, há que criar condições para que ela corra o melhor possível, com alegria e com confiança”, acrescenta.

Medo, curiosidade, desafios 

Transição e integração são conceitos complexos, com múltiplas dimensões, processos distintos que se interligam. O estudo de Armanda Zenhas, no âmbito da sua tese de doutoramento, mostra vários elementos que se conjugam numa mudança de ciclo. “A integração das crianças foi facilitada pela mobilização dos vários tipos de capital acumulado no seio da família, repercutido na riqueza do nível de linguagem, na capacidade de lidar com conceitos abstratos e na capacidade de apropriação criativa de atividades para-curriculares”, escreve Armanda Zenhas que, por outro lado, indica a diferença de estatuto face aos alunos mais velhos, as características arquitetónicas da escola, as regras de circulação e uso dos espaços como fatores que dificultaram a integração. “As crianças concebem estratégias criativas para contornarem obstáculos à sua integração. A integração ativa das crianças pelas escolas nos anos de transição é essencial, principalmente na ausência de capital cultural, social e económico familiares”, sustenta. 

A transição e a integração escolares mexem com emoções, interpretações da realidade, ritmos diferentes. A integração da turma do 5.º ano observada por Armanda Zenhas durante um ano letivo não aconteceu ao mesmo tempo por todos os alunos. A integração curricular, pedagógica e disciplinar estava concluída no final do 1.º período do ano escolar. “As primeiras experiências apresentaram-se marcadas por sentimentos mistos de medo, curiosidade e desafio, alimentados por representações de novas disciplinas, difíceis mais interessantes”, descreve. E a linguagem rica em vocabulário e estruturas frásicas permitiu aos alunos uma rápida apropriação dos conceitos das diferentes disciplinas. 

A integração nos espaços da escola foi lenta, enquanto as atividades extracurriculares foram oportunidades de descoberta e superaram as expectativas da escola. Segundo Armanda Zenhas, “uma turma, enquanto grupo de pares infantis, por muito harmoniosa e homogénea que pareça, encerra sempre complexidade e diversidade nas relações interpessoais que comporta. É marcada por relações diferenciadas entre os seus elementos, por grupos de amigos com maior consistência ou volubilidade, alianças entre pares e interações estabelecidas com base em diferentes emoções e finalidades, existência de conflitos de gravidade e duração variáveis”. 

Mudar de ano, mudar de ciclo, mudar de hábitos, tentar corresponder às expectativas. Tudo isso implica empenho, esforço, dedicação por parte dos alunos. “As crianças perfilham o objetivo de alcançar sucesso escolar - elevado, em muitos casos - e intentam responder às solicitações da escola e da família nesse âmbito. Mostrando graus diferentes de autonomia, procuram, quando o fazem, estar envolvidas num processo de familialização ou, pelo contrário, optam pela individualização”. Todo o apoio é importante, como demonstra o estudo realizado. “As crianças encontraram na família e em elementos da escola um apoio estrutural forte que propiciou condições para o desenvolvimento da sua agência ao longo do processo de integração e de todo o ano letivo”. 

Nas recomendações, Armanda Zenhas sustenta que as transições de ciclo de escolaridade e de escola precisam de um olhar atento e de uma intervenção refletida, cuidada e intencional para facilitar uma integração harmoniosa das crianças, em todas as dimensões. Por isso, as crianças devem ser ouvidas e envolvidas, ou seja, é fundamental considerar o ponto de vista dos alunos em fase de transição, como atores centrais desse processo que não é assim tão simples quanto parece à primeira vista.

Fonte: Educare

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Alunos vão ter mais desporto este ano letivo

No passado ano letivo, a grande maioria das escolas tinha projetos de Desporto Escolar: Dos 812 agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas, apenas 14 não tinham apresentado projetos, segundo dados avançados à Lusa pelo Ministério da Educação (ME).

O aumento de horas para os alunos praticarem desporto foi publicado hoje em Diário da República e vai permitir reforçar os Centros de Formação Desportiva (CFD), “promovendo, desde logo, a abertura de centros náuticos no interior do país”, refere o ME.

O Desporto Escolar conta, atualmente, com 71 CFD repartidos por sete modalidades. Entre as modalidades náuticas, encontram-se 34 centros de formação de canoagem, 20 de vela, 16 de surf e 12 de remo. Há ainda sete centros de formação de atletismo, seis de golfe e dois de natação. 

O despacho hoje publicado vai permitir ainda criar novos grupos-equipa em modalidades mistas, como o Corfebol, um desporto que junta na mesma equipa rapazes e raparigas. 

Os novos créditos horários – que permitem às escolas contratar professores ou alargar os horários dos que já lá trabalham - podem ser aplicados no projeto-piloto “DE sobre Rodas”.

Este novo projeto pretende ensinar as crianças a andar de bicicleta para que passem a usá-las como meio de transporte e vai começar a ser experimentado nos municípios “amigos” da bicicleta que tenham, por exemplo, pistas cicláveis.

O Plano Nacional de Formação de Alunos Juízes/Árbitros Escolares, iniciado no passado ano letivo, é outro dos programas que pode beneficiar do aumento de créditos horários.

Desde o início da legislatura, houve um reforço de 800 créditos horários letivos semanais: “Isto representa um aumento constante do número de horas atribuídas ao Desporto Escolar, que no ano letivo de 2019/2020 será de 22 600 semanais”.

O Desporto Escolar fomenta a prática desportiva e a competição, promovendo estilos de vida saudáveis. 

O desporto é essencial no combate ao excesso de peso e obesidade, que ainda atinge quase um terço das crianças portuguesas (29,6%), segundo dados do Sistema de Vigilância Nutricional Infantil do Ministério da Saúde (COSI), divulgados este ano.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que os jovens façam uma hora de atividade física moderada a vigorosa por dia. 

Além da prevenção de doenças e da promoção de um estilo de vida saudável, o Programa do Desporto Escolar (PDE) permite também descobrir alunos com elevado potencial desportivo.

O PDE é composto por três tipos de projetos: complementares, de competição e de valorização. 

Num primeiro nível, que permite criar projetos complementares à disciplina de Educação Física, participaram no ano letivo 2017/18 mais de 76 mil alunos dos 2.º/3.º ciclos do básico e secundário. 

No segundo nível, de competição, os alunos têm treinos e competições regulares numa das 36 modalidades desportivas do desporto escolar: “Em 2017/18 havia sete mil grupos-equipa, num total que ultrapassava os 169 mil participantes”, segundo dados avançados à Lusa pelo ME.

O nível III é dirigido aos grupos-equipas de elevado potencial desportivo ou que estejam inscritos em federações desportivas, segundo o diploma hoje publicado em Diário da República.

Fonte: Educare por indicação de Livresco

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Prestação Social para a Inclusão alargada às crianças e jovens com deficiência

O Governo aprovou, ontem, dia 22 de agosto, em Conselho de Ministros, o alargamento da Prestação Social para a Inclusão (PSI), às crianças e jovens com deficiência com um grau de incapacidade igual ou superior a 60%.

Este alargamento consiste na atribuição de um montante fixo, correspondente a 50% do valor de referência da componente base, cerca de 136 euros, independentemente dos recursos económicos de que a família disponha. Quando a criança/jovem viva num agregado familiar monoparental, o montante atribuído é majorado em 35%.

Com a introdução desta alteração, a PSI, criada em outubro de 2017 e que já beneficiou mais de 95.500 cidadãos, passará a apoiar a pessoa com deficiência, ao longo de toda a sua vida.

Para mais informações, consulte AQUI o Comunicado do Conselho de Ministros.

Fonte: INR

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

O outro lado do tal despacho

Em férias, com as ligações em serviços mínimos, acompanhei vagamente a polémica sobre o despacho que define as medidas para promover nas escolas o direito à autodeterminação da identidade e expressão de género e à proteção das características sexuais das crianças e jovens. A discussão foi-se afunilando cada vez mais no pormenor do direito à escolha da casa de banho pelos alunos transgénero, contaminada pela leviandade e superficialismo das redes sociais. No rescaldo, em prejuízo da moderação e equilíbrio, sobram as opiniões radicais fulminantes a favor ou contra o despacho.

Há pessoas abençoadas com a rara felicidade de verem tudo claro. A transexualidade é uma aberração da natureza que se deve reprimir e esconder, logo, dizem umas, o Estado não pode impingir às crianças “normais” uma falsa ideia de regularidade desses desvios. Ou então, no extremo oposto, dizem outras, ser menino, menina, menino em corpo de menina ou menina em corpo de menino, é tudo exatamente mesma coisa, logo o Estado deve formatar a sociedade e anular todos os fatores de diferenciação do sexo, nas casas de banho, nas roupas, nos brinquedos, nos nomes, em tudo. Mas as coisas não são assim tão evidentes. No conforto da bancada, todos nos podemos dar ao luxo de proclamar teorias sobre a vida dos outros, sem o custo de as viver e sem conflitos de consciência; mas nessas vidas, que são reais, há situações dramáticas de crianças e famílias em profundo sofrimento, vítimas de bullying, com elevadíssimas taxas de suicídio e insucesso escolar.

Certamente que o Estado não pode promover ou reprimir ideologias de orientação sexual ou de identidade de género, não pode dizer que é igual ser menino ou menina ou que é errado e anormal ser menino e sentir-se menina ou ser menina e sentir-se menino. Isso pertence à individualidade e intimidade de cada um e das famílias. Mas havendo, como há, um problema, que é o das escolas não estarem preparadas para lidar com a existência de crianças e jovens em dificuldades por causa da sua sexualidade e identidade de género, gozados por colegas, rejeitados e infelizes, é obrigação do Estado tomar todas as medidas adequadas para promover os valores da inclusão, da aceitação da diferença e do respeito pelos direitos fundamentais de quem pertence a grupos minoritários e está por isso mais exposto.

Quem se der ao trabalho de ler o tão falado despacho vai ver que o que lá está não tem nada a ver com a caricatura do menino atrevido poder passar a ir espreitar as miúdas à casa de banho delas. As medidas mais discutíveis apenas se aplicam a crianças e jovens que se encontrem em processo de “transição social de identidade e expressão de género”, o que pressupõe a existência de uma situação previamente detetada e já devidamente acompanhada, em articulação com os encarregados de educação e os serviços de pedopsiquiatria. Não se trata, portanto, de colocar todos os alunos numa posição em que podem interferir sem qualquer controlo nos direitos dos outros – a ideia que a partir de agora vai ser uma rebaldaria, com cada menino ou menina a poder ir à casa de banho que escolher é um disparate. Para as crianças e jovens transgénero, o que o despacho prevê é que seja permitida a mudança do nome nos documentos da escola, o uso no nome auto-atribuído em todas as atividades da comunidade escolar, a participação nas atividades e uso de vestuário correspondentes ao género com que se autoidentificam, no caso de existirem atividades ou uniformes diferenciados por sexo e – também, sim, a medida tão falada – o uso das respetivas casas de banho e balneários.

É claro que a prazo isso levará a uma mudança cultural. Os nossos filhos e netos passarão a olhar para os colegas transgénero com mais conforto, mais naturalidade, mais tolerância; deixarão de os achincalhar e diminuir. Isso é mau? Qual é a alternativa? Abandonar essas crianças e jovens à sua sorte, como se não fossem sujeitos de direito como os outros? Segregá-los em escolas separadas? Deixar que se suicidem em grande número? Não ver o sofrimento deles e das famílias? Aqui não se trata de ser conservador ou progressista, de ser de direita ou de esquerda, trata-se de saber como podemos fomentar, a partir da infância, nas escolas, o respeito pelos valores da autodeterminação, diversidade e privacidade e eliminar fatores de diferenciação que potenciam discriminações e bullying, com resultados muitas vezes trágicos.

Manuel Soares

Presidente da Direcção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses

Fonte: Público

terça-feira, 27 de agosto de 2019

A diversidade deve começar na escola? Sim. “Caso contrário, vamos continuar a reproduzir estereótipos”

“Estes acessórios são de homem ou mulher? Ou ambos?” Eduardo Couto já sabia que a resposta que ia escrever não era a “correcta”. A bolsa é para as mulheres, a gravata para os homens; uma mulher não usa boné e um homem não usa collants: esta, sim, era a resposta esperada pela professora de Inglês.Mas, ainda assim, Eduardo escreveu “both” (ambos, em português) em frente a todos os acessórios apresentados no teste. O resultado? Umas quantas cruzinhas e pontos de interrogação. Segundo aquele exercício, só um cachecol e um cinto podem ser utilizados por homens e mulheres.

Na aula de correcção do teste “toda a turma se manifestou” por achar que “aquilo não fazia qualquer tipo de sentido” — mas a indignação da turma não surtiu efeitos. Valeu antes uma ameaça de falta disciplinar e levantou uma questão: estará a escola a perpetuar estereótipos?

Quando Rianne Ruviaro chegou à redação (...) trazia uma certeza: “É preciso uma educação sem estereótipos de género.” A estudante brasileira faz parte do grupo de cinco jovens que responderam à chamada aberta do P3 para debater o que consideram ser as causas do futuro. Além dela, também Berta Valente Santos, Fernando Teixeira, João Pedro Costa e Rita Regadas defenderam que a inclusão, integração e igualdade são desafios que vão marcar os próximos tempos. Da crise dos migrantes às questões de género, passando pela deficiência ou envelhecimento, a conclusão foi consensual: “Temos de preparar a sociedade para incluir, integrar e aceitar a diferença e vê-la como um contributo positivo.”

A crise de migrantes é uma preocupação para os cinco jovens e um exemplo da “falta de empatia” da sociedade. Criticam a “despersonalização do problema” e o “afastamento total” provocado também pela “falta de notícias na televisão”. A integração de refugiados provoca “medo de perder a identidade”, apontam. Acreditam que “a sociedade só pode ser coesa se considerar todos os que a integram e para isso é preciso quebrar tabus associados a diversas minorias”. E numa era em que estamos “tão próximos virtualmente”, continuamos a “discriminar na realidade” — sem entender que, como refere Lúcia Furtado, uma das fundadoras da Femafro (“uma associação de mulheres negras, africanas e afrodescendentes"), “somos iguais, cada um com as suas especificidades”. 

Mas os estereótipos são impostos desde cedo. Passamos a vida a ouvir que “o menino não chora e que a menina tem de ser mocinha”; aprendemos que “há profissões de homem e profissões de mulher”: um dos factores que, acredita Rianne, “geram desigualdade salarial”. Actualmente, de acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho, os homens ganham em média mais 22,1% do que as mulheres — só na Estónia e no Chile o panorama é pior. Um inquérito feito pela Fundação Francisco Manuel dos Santos mostra que em46% dos casais mulher-homem, ela ganha menos do que ele. Apenas em 27% dos casos ambos ganham o mesmo e em 15% ela ganha mais.

As assimetrias entre homens e mulheres no mundo do trabalho não são apenas relativas ao salário: segundo dados do Eurostat, em 2018 a taxa de desemprego dos homens fixava-se nos 6,6% e a das mulheres 7,4%. As mulheres enfrentam também maior risco de pobreza (17,9%) do que os homens (16,6%). Em contexto de trabalho, 35% das mulheres dizem já ter sofrido de assédio moral e 16% admitem ter sido vítimas de assédio sexual — a grande maioria (56%) perpetrada por um superior hierárquico homem.
Criar uma sociedade mais inclusiva 

Mas voltemos à escola de Eduardo, em Santa Maria da Feira. A professora de Inglês não foi a única de quem o estudante de 16 anos discordou: “Já tivemos uma discussão com um professor que disse a uma colega minha que o lugar dela era na cozinha e que não tinha que fazer perguntas de informática porque esse não ia ser o futuro dela”, conta. A turma indignou-se e escreveu uma carta para a direcção a contar o sucedido. Apesar de não saberem o que aconteceu depois, esse professor “nunca mais apareceu”.

“Grande parte do corpo docente numa escola faz parte de uma faixa etária mais velha e a formação que lhes foi dada há uns anos não é inclusiva”, afirma o jovem, que também é membro do Bloco de Esquerda. “Para haver mudanças, é preciso haver vontade política — formações sobre a igualdade de género, questões de orientação sexual, diversidade étnica. A partir do momento em que não há um investimento concreto na escola pública, é normal que o corpo docente não acompanhe o progresso da sociedade.”

Lúcia Furtado corrobora: “As mudanças começam pela educação. Havendo uma reforma do sistema educativo e da forma como as coisas são apresentadas é mais fácil atingir melhorias a vários níveis.” Os manuais escolares, por exemplo, não dão espaço à diversidade quer étnica, quer de género. “A forma como os manuais orientam as questões de género são muito binárias, homem e mulher. É tudo muito padronizado, com preconceitos de há cinquenta ou cem anos: a mulher deve usar saia e desempenhar estas profissões, o homem deve usar isto e fazer aquilo.

Apesar de Eduardo acreditar que ultimamente “a escola tem dado alguns passos no que toca ao combate de preconceitos”, ainda “há muito por fazer”. Nas aulas de formação cívica, por exemplo, “os professores dão as aulas partindo do princípio que os alunos que estão à sua frente são todos homens ‘cis’ [cujo género é o mesmo que o designado no nascimento] e heterossexuais”. Falta “falar sobre o preservativo feminino, sobre as relações entre dois homens ou duas mulheres, sobre as doenças sexualmente transmissíveis”. E abandonar as questões de “planeamento familiar” convencional e conservador. Só “preparando os professores, psicólogos, auxiliares de educação e todos os profissionais que estão em contacto com os alunos” é que se consegue avançar e começar a criar uma sociedade mais inclusiva, acredita Lúcia. “Caso contrário vamos continuar a reproduzir estereótipos.”

“Há alguns deputados à direita que estão com a ideia de que há algo chamado ‘ideologia de género’. Mas isso são invenções criadas pela direita conservadora para provocar atrasos no que toca à educação nas escolas inclusivas”, acredita Eduardo. A luta pela igualdade e não-discriminação deve, no entanto, passar também pelos estudantes, defende. As associações de estudantes são “uma das melhores formas de os alunos estarem bem representados dentro de uma escola, sem qualquer tipo de conservadorismo ou preconceito”. E estão a falhar: “Em vez de estarem a representar as lutas sociais — seja dos estudantes negros, comunidade LGBT [lésbicas, gays, bissexuais e transgénero] ou questões feministas —, estão apenas com uma perspectiva mercantilista de uma viagem de finalistas.” 

O “mundo perfeito” tem um Parlamento mais diverso?

O “mundo perfeito” idealizado pela Organização das Nações Unidas em 2015 é um mundo onde as mulheres não são discriminadas nem agredidas. Os Objectivos do Desenvolvimento Sustentável propunham que, até 2030, 16 metas de diferentes âmbitos fossem alcançadas e grande parte das nações mundiais comprometeram-se a atingi-las. A pouca representação das mulheres em órgãos do governo, as diferenças salariais entre homens e mulheres e a violência de género são algumas das questões que todos os países querem resolver. Mas o “Índice de Género” (o primeiro estudo que mede o progresso em relação a este conjunto de metas) mostra que nenhum país vai conseguir cumprir o prometido a tempo — pelo menos no que toca a igualdade de género. Portugal situou-se no 16.º lugar do ranking, com uma pontuação de 83,1 (em termos qualitativos corresponde a um “bom”). 

No Parlamento predominam homens brancos e heterossexuais. No início da legislatura, em 2015, anunciaram-se 151 homens e 79 mulheres — 34%. A representação feminina deverá aumentar na próxima legislatura, uma vez que a quota de paridade subiu de 33% para 40% em Março de 2018. Isto quer dizer que a indicação dos nomes nas listas terá de ser ordenada de forma alternada por género (não podem haver dois candidatos do mesmo género seguidos). Actualmente, só há um deputado negro, uma deputada com ascendência goesa, um deputado abertamente gay e uma deputada abertamente lésbica. Ainda assim, apesar de concordar com a lei da paridade, Lúcia acredita que é urgente “começar a pensar nisso também para outras comunidades, como a cigana, a migrante ou a negra. É preciso ir além da questão de género porque essa não é a única que afecta as pessoas, nem as mulheres”, atira Lúcia.

O que está a falhar? “Falta uma mobilização mais geral e uma luta no terreno.” Apesar de existir “uma elite que explora um pouco mais estas áreas”, falta “a presença activa junto das pessoas que realmente precisam das medidas de discriminação positiva”. Porque tirando “situações muito específicas”, como a primeira greve feminista nacional, que aconteceu no Dia Internacional da Mulher, a mobilização ainda é insuficiente. “A marcha teve uma presença mais massiva por causa da questão dos femicídios” — desde Janeiro já morreram 18 mulheres em contexto de violência doméstica —, mas falta perceber “quem são as mulheres que estão a sofrer esse femicídio”. São, refere Lúcia, “de classe mais baixa, trabalhadora, mulheres negras, ciganas ou migrantes, que muitas vezes têm medo de se dirigir às autoridades porque não têm a situação legalizada”.

Fonte: Público por indicação de Livresco

sábado, 24 de agosto de 2019

Professores dizem que alunos lidam melhor com a diferença do que muitos adultos

A Federação Nacional dos Professores (FENPROF) reagiu hoje à polémica lançada pelo PSD e CDS sobre o despacho que define a aplicação nas escolas do diploma sobre identidade de género, que prevê medidas como a mudança de nome em todos os documentos, detetar e intervir sobre situações de risco, dar formação e sensibilizar todos os que frequentam a escola ou a possibilidade de os jovens transexuais ou em processo de mudança de sexo jovens poderem escolher que casa de banho ou vestiário usar.

“Ao contrário de um, infelizmente, grande número de adultos, as crianças e jovens estão muito mais habilitados a lidar com a diferença, sabendo, não apenas, integrar, mas incluir”, sublinha a estrutura sindical de professores.

Entre as críticas ao diploma, o PSD considerou que o despacho revelava “pouco respeito” pelas crianças e poderia potenciar fenómenos de “bullying” e o CDS-PP classificou-o de desrespeitador e irresponsável.

“Não é verdade que a aplicação deste despacho potencie fenómenos de bullying, eles são potenciados, isso sim, quando a sociedade ou a escola ignoram a realidade, deixando mais expostas, logo, mais fragilizadas, as minorias, sejam elas quais forem”, reagiu a FENPROF.

De acordo com o secretário de estado da Educação, João Costa, o diploma pretende proteger um reduzido grupo de cerca de duas centenas de alunos em todo o país.

A FENPROF considera que o diploma “só pecou por tardio”, uma vez que foi publicado um ano desde a publicação da lei, em pleno período de férias e a pouco mais de duas semanas do reinício da atividade das escolas.

Os professores lembram ainda que não basta publicar legislação e atribuir às escolas a responsabilidade de a fazer cumprir: “É necessário criar condições para que o mesmo se cumpra”, que passam por dar tempo aos docentes para ter formação e aumentar o número de assistentes operacionais nas escolas.

O despacho pretende dar resposta a uma realidade que a FENPROF considera que “não pode ser ignorada”, lembrando que em algumas escolas os seus professores e órgãos de gestão têm procurado dar a devida atenção, “apesar, até agora, de não terem tido o necessário apoio”.

A FENPROF sublinha que apesar do esforço das escolas, ainda existe “um grande caminho a percorrer” em relação aos alunos, mas também ao pessoal docente e não docente. 

Na quinta-feira, o secretário de Estado da Educação considerou que estava a ser feita uma leitura incorreta do despacho que estava a provocar “um clima de alarmismo social” desnecessário. 

O despacho protege e salvaguarda os direitos dos jovens transexuais ou que estejam em processo de mudança de sexo, e não é um despacho “das casas de banho” nem de que “qualquer criança pode ir a qualquer casa de banho”, alertou o secretário de estado.

Fonte: Educare por indicação de Livresco

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

“O ‘franchising’ de programas não resulta”



Passaram 50 anos entre os bancos da escola de Coimbra e o estrado onde hoje leciona, na Faculdade de Motricidade Humana, e a pergunta subsiste: “A escola vai servir-me para quê?”. Quem questiona é Margarida Gaspar de Matos, Psicóloga Clínica e da Saúde, Professora catedrática na área de Disciplinar de Educação da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, em entrevista ao Educação Internacional.

Existe uma ideia errada do que é hoje a escola?
A escola não é um clube recreativo, é um local de trabalho. Mas isso não significa que se tenha apenas de penar. Porque é que não é um sítio minimamente gratificante e por que razão não há-de ser interessante aprender!? A escola tem de ser o local onde vale a pena aprender. A questão é precisamente essa.

Então, a escola que temos hoje em dia serve para quê?
Esse é um problema com muitos anos. Não é de agora. Já no meu tempo de aluna – e eu tive a experiência de ter sido a melhor aluna do liceu – subsistia a pergunta ‘isto vai servir-me para quê?’. O interessante eram as conversas com os amigos no intervalo, onde combinávamos o que íamos fazer à tarde e durante o fim de semana. Na substância, as coisas estão iguais. Mas, neste momento, a escola tem um trabalho acrescido. Na minha altura, em Coimbra, em 1968 ou 1969, quando a Escola Secundária D. Duarte abriu, as Escolas tinham uma elite no seio dos alunos, filhos da classe média e média-alta. Nas turmas havia cinco ou seis meninos com mais dificuldades económicas, que deviam ter sido identificados pelo professor do primeiro ciclo como alunos espetaculares – mas que, afinal, eram apenas mais espetaculares comparados com os colegas. Agora a escola tem de educar todos.

Quando a cultura da escola mudar era bom todos os anos haver um dia de debate em que, regularmente, a comunidade escolar refletisse sobre os problemas da Escola. Por exemplo, de manhã um grupo de professores, à tarde um grupo de alunos debatessem, criassem uma dinâmica para dizer o que é que tem de mudar, o que está a ser bom, o que está a ser mau. No ano seguinte voltava-se a reunir para ver o que foi feito desde o ano anterior. Isto criaria uma rotina de colaboração.

Analisar para participar?
Os miúdos dizem das duas, uma: ou não são ouvidos ou não há uma logística que permita que o que dizem sirva para alguma coisa. É uma questão de interpretação e eficácia do que é dito. Por exemplo, alguém visita a escola e coloca-se um menino a falar – isso não é participação. A participação dos jovens nos problemas da escola tem de ser um processo que parta da organização dos próprios jovens para se ver o que sai dali. Tem de ser uma coisa genuína e que verdadeiramente se consiga apanhar qual é a ideia dos miúdos em relação às coisas. Essas ideias depois devem ser aproveitadas, porque é importante que eles sintam que as coisas acontecem.

Sugere que se dê mais voz aos alunos?
Imagine-se as escolas que têm problemas de bullying, problemas de obesidade ou violência, poderiam ter um comité de alunos com representantes de todos os anos, que reúna e proponha coisas que venham a ser discutidas com o diretor da escola. Há escolas que conseguem fazer isto. E se há quem o faça, é porque é possível. E se há uma escola que siga este modelo, porque é que o Ministério da Educação não pega na ideia e a generaliza?

Há modelos de referência dentro dessa dinâmica de dar espaço ao aluno para comunicar?
As coisas funcionam muito bem na Finlândia, Canadá e Austrália. Estive na Austrália bastante tempo e tenho a noção de que a cultura desses países é diferente da portuguesa. Por vezes, o grande problema é que os programas não têm os mesmos resultados quando são replicados em Portugal ou noutros países, porque as realidades são distintas. Em suma, os programas das escolas não podem fugir à realidade do país.

O franchising de programas não resulta?
Devemos criar este tipo de programas ao nosso estilo. Sabemos fazer isso e temos muitas pessoas com vontade de o fazer, em Portugal, e com capacidade e boa relação com os miúdos. Mas estas coisas têm de ter princípio, meio e fim, e depois têm de ser sustentáveis. Temos 12 anos de ensino obrigatório, mas temos de o tornar num ensino de qualidade.

Como podemos tornar a Escola melhor?
Podemos analisar a Escola em função de vários componentes críticos. Começamos logo pelo que é uma escola: um espaço físico que tem os ‘senhores alunos’, os ‘senhores professores’ e a ‘senhora matéria’. E depois a escola insere-se numa comunidade – como diz o professor Carlos Caldeira, cada aluno traz atrás de si toda a sua família e comunidade.

Não podemos mudar o destino social das pessoas, mas podemos tentar ver até que ponto podemos tirar o máximo daquilo que temos. O que podemos fazer é pensar numa metodologia de abordagem e tentar que seja seguida pelas escolas, cada uma à sua maneira. E depois que se partilhem estudos de casos do que foi feito em cada uma delas. Mas qualquer que seja o cenário, o espaço físico da escola é uma coisa que deve ser preservada. Deve ser incutido aos alunos o cuidar da sua escola, o que por vezes não acontece, seja numa escola urbana, seja numa escola de província.

Há uma cultura de ensino em Portugal?
Há muitas, porque cada escola é uma cultura. Uma coisa é a cultura das pessoas: os nórdicos são diferentes… Cada escola reflete a cultura da zona e isso não é mau. Há uma estrutura para trabalhar, há que ver qual é a sua identidade. Os nossos miúdos muitas vezes são pouco responsabilizados pelas coisas e essa cultura de desresponsabilização não é boa para ninguém.

Acha que se deve responsabilizar os alunos?
Sim, mas uma responsabilização ligada à autonomia. Protegemos muito os mais novos e depois não os responsabilizamos. Temos que dar autonomia, mas depois devemos exigir responsabilidades.

Mas há escolas com uma boa cultura e resultados…
Sim, e isso acontece quando há um diretor que quer construir algo e que conta com o apoio de alguns professores que galvanizam os alunos. E estes acabam por crescer à volta deles. No entanto, esses professores têm de começar a ser reconhecidos e valorizados, caso contrário irão desistir. Porquê? Os professores estão cansados de não serem reconhecidos.

Fonte: Jornal Económico por indicação de Livresco

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Como proceder ao desenvolvimento curricular dos alunos com a extinta medida CEI

Publico alguns esclarecimentos sobre a operacionalização do Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, retirados da página do Projeto de Autonomia e Flexibilidade Curricular.

- A avaliação sumativa para os alunos do ensino básico, incluindo os que têm a medida adicional adaptações curriculares significativas e consequentemente com PEI e/ou PIT, expressa-se nos termos do definido na Portaria n.º 223-A/2018, de 3 de agosto, e no Despacho Normativo n.º1-F/2016, de 5 de abril (cf. Artigo 50.º da Portaria n.º 223-A/2018) e no ensino secundário de acordo com o definido na Portaria n.º 226-A/2018, de 7 de agosto.

- A medida adicional “adaptações curriculares significativas” não implica a criação de disciplinas, mas antes a introdução de aprendizagens substitutivas que devem ter como quadro de referência o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatóriae as Aprendizagens Essenciais.

- Quanto às pautas de avaliação sumativa a serem afixadas, sempre que os alunos desenvolverem competências na área das disciplinas da turma (ex.: Português), na pauta aparecerá a respetiva classificação, tendo os pais conhecimento que essa classificação não é idêntica à do nível de conhecimentos de outros alunos. Quanto às disciplinas cujo conteúdo o aluno não consegue de todo acompanhar, poderá constar na pauta “Não frequenta” ou “Não inscrito”.

- Importa ainda esclarecer que a progressão dos alunos abrangidos por medidas adicionais de suporte à aprendizagem e à inclusão realiza-se nos termos definidos no RTP e no PEI (cf. Artigos 21º e 24º do DL 54/2018, de 6 de julho).

- As áreas curriculares especificas, servem o propósito de permitir que um aluno possa aceder ao currículo e aplicam-se aos alunos que delas necessitem, independentemente do nível de medidas mobilizadas. A Identificação da necessidade de frequência de áreas curriculares especificas, serve o propósito de permitir que um aluno possa aceder ao currículo. Neste sentido, é nosso entendimento que as áreas curriculares especificas não pretendem substituir outras disciplinas do currículo, dado que não são disciplinas e, desta forma, não são objeto de avaliação sumativa.

- Conforme consta no Art.º 30.º do DL 54/2018, de 6 de julho, no final do seu percurso escolar, todos os alunos têm direito à emissão de certificado e diploma de conclusão da escolaridade obrigatória e sempre que aplicável com a identificação do nível de qualificação de acordo com o Quadro Nacional de Qualificações e do nível que lhe corresponde no Quadro Europeu de Qualificações. No caso dos alunos que seguiram o percurso escolar com adaptações curriculares significativas, do certificado deve constar o ciclo ou nível de ensino concluído e a informação curricular relevante do programa educativo individual, bem como as áreas e as experiências desenvolvidas ao longo da implementação do plano individual de transição.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Gémeas retiradas aos pais não sabem ler nem escrever. Foram sinalizadas três vezes

As gémeas que moravam até à passada semana numa garagem sem as mínimas condições de habitabilidade no concelho da Amadora com os pais não sabem ler nem escrever. Chegaram aos dez anos sem nunca ter ido à escola.

Estavam sinalizadas desde 2013 pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), e a sua situação era conhecida do Ministério Público desde 2016. Porém, foi preciso esperar até este mês de agosto para as autoridades intervirem após uma nova denúncia, retirando temporariamente as gémeas aos pais, que foram detidos por maus tratos, mas aguardam julgamento em liberdade. A Câmara Municipal da Amadora diz não existirem quaisquer registos de tentativa de inscrição das duas crianças na rede escolar pública, nem tão pouco nenhum pedido de habitação municipal por parte do casal. “Do ponto de vista social nunca existiu qualquer pedido de apoio por parte da família junto da autarquia”, refere ainda a Câmara da Amadora. Informações que tanto o pai das crianças, João Moura, um transmontano de 50 anos, como a mãe, Mariana Santos, uma brasileira de 34 anos, contestam.

Segundo o casal, as crianças chegaram a frequentar o infantário. Mas quando tentaram inscrevê-las na escola faltava-lhes documentação para o fazer, alegam, e por isso nunca o conseguiram. “Primeiro disseram que só podiam entrar aos sete anos. No ano seguinte faltava documentação”, diz a progenitora, assegurando que as filhas têm as vacinas em dia e são devidamente acompanhadas pela médica de família. Uma delas chegou a contrair escarlatina, e mais recentemente tiveram as duas varicela, descreve.

Com a demolição da casa clandestina onde moravam, a meio caminho entre a Reboleira e a Damaia, em 2016, a situação de precariedade da família agravou-se. Acabaram por se mudar para o outro lado da rua, para uma exígua garagem convertida em lar. As gémeas passaram a viver em condições que a PSP qualifica agora como “deploráveis e sem salubridade”. O casal não esconde as condições em que subsistem. Dormem num sofá logo à entrada, atrás do qual existe uma copa sem fogão sequer. Parte das refeições são feitas num snack-bar no centro da Damaia, ou então num grelhador ao ar livre. No acanhado espaço cabe ainda um compartimento minúsculo com sanita e alguidar para os banhos – a água é aquecida no micro-ondas – e, por fim, um quarto atafulhado de brinquedos e outros pertences, onde as gémeas têm um beliche. Dois cães e quatro gatos, três dos quais ainda crias, completam o cenário.

Além de andarem mal vestidas, as crianças “presenciavam agressões físicas e psicológicas entre os pais”, apontam as autoridades. Os primeiros episódios de violência registados remontam à altura em que ainda moravam na casa entretanto demolida. Mariana Santos, cuja magreza extrema diz dever-se talvez a uma anorexia nervosa, garante que o companheiro nunca lhe bateu durante as discussões. Mas em 2013, após a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens ter decretado que se afastasse de João Moura com as filhas, acedeu a ficar num centro de acolhimento. “Regressámos a casa 15 dias depois, quando percebi que estava grávida”, conta. A gravidez acabou por correr mal e perdeu o bebé.

Três anos mais tarde, a mesma comissão é novamente avisada de que a mulher e as filhas continuam expostas a violência doméstica. “Após várias diligências, os processos de promoção e protecção foram remetidos aos serviços do Ministério Público, por não ter sido possível obter o consentimento dos pais para a intervenção da comissão, por desconhecimento do seu paradeiro”, descreve esta comissão. É então há três anos que o caso das duas crianças chega ao Ministério Público.

O (...) tentou saber junto da Procuradoria-Geral da República (PGR) que sequência foi dada a estes processos, mas sem sucesso. “O processo criminal encontra-se em investigação e está em segredo de justiça. Foi também instaurado pelo Ministério Público um processo de promoção e proteção. No âmbito deste processo proceder-se-á ao completo diagnóstico da situação atual e do quadro familiar e social que à mesma conduziu”, limitou-se a responder a PGR, acrescentando que as meninas contam neste momento com acompanhamento psicológico.

João Moura vive dos biscates na área da electricidade automóvel. Já a mulher deixou de trabalhar há anos. “As meninas não estavam presas na garagem, como foi noticiado”, assegura. “Não eram maltratadas, nem passavam fome. Só tenho pena de não terem ido à escola.”

“Ensinei-lhes uns números e umas letras”, conta a mulher. “Mas também não sabia ensinar-lhes mais, não sou professora.” Na última semana tem falado com elas ao telefone: “Dizem-me que estão fartas das férias, que querem voltar a casa.”

Fonte: Público

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Gostava que houvesse mais professores mais velhos

Não é justo – até porque não é verdade – que se assuma que se cresce cada vez mais cedo e mais depressa. Todos precisamos de (muito!) tempo para crescer. E todos precisamos de errar muitas vezes para crescer. Aliás, quando alimentamos a convicção de estarmos a errar cada vez menos, talvez isso não queira dizer que nos tornámos mais sábios. Mas, antes, que estaremos a desperdiçar, por arrogância ou por medo, oportunidades indispensáveis para crescer.

Todavia, não foi pelo tempo que precisou de ter nem pelos erros que acumulou que o mundo deixou de “pular” e não avançou. É claro que vivemos tão enfeitiçados pelos deslumbramentos da técnica que, hoje, todos parecemos ser convertidos, muito rapidamente, à condição de produtos descartáveis. E acanhamo-nos tanto diante das coisas “descontinuadas” e do furor das novas tecnologias que a sabedoria dos mais velhos ganha, implicitamente, um estatuto próximo do de um museu, susceptível (quando muito) de ser admirada, mas cuja utilidade, considerando aquilo que se supõe que é indispensável aprender, hoje, para crescer, acaba por não ser motivo da maior consideração.

É por isso que quando se fala que a idade média dos professores portugueses não pára de aumentar eu fico preocupado. Não tanto pelos mesmos motivos de que se falou dela. Mas porque, mesmo que não seja claro e explícito, fica, muitas vezes, no ar a ideia de que os professores mais velhos estão “cansados”. Serão menos aptos. Estarão saturados de ser professores. Serão mais rezingões. Como se, no final, representassem uma espécie de prejuízo para a aprendizagem dos nossos filhos. Ou como se precisassem, de certa forma, de ser descontinuados.

E é por isso que, olhando para a idade dos professores portugueses, e atendendo a que há cada vez menos alunos e que as turmas são grandes demais, não me alarmo tanto assim que eles, hoje, sejam cada vez mais velhos. Aliás, acho que esta pode ser, até, uma conjuntura de privilégio – única, mesmo – que nos pode beneficiar a todos. É claro que me assusta que não haja, entre os mais jovens, quem escolha ser professor. É claro que me inquieta que os professores sejam, cada vez mais, desconsiderados. E é claro que me assusta que haja quem os queira a ser, sobretudo, tecnocratas da educação ou burocratas do ensino. Em vez de serem, simplesmente, professores. Seja como for, acho único que mais de 80% dos professores do ensino básico, por exemplo, tenham querido, em primeiro lugar, ser professores.

E acho extraordinário para todos nós que estas pessoas — mais velhas! — continuem a ser os professores dos nossos filhos. Até porque:
  • Um professor mais velho — num sistema educativo que imagina que as crianças crescem mais cedo e mais depressa, mas que lida com elas como se aprendessem todas “do zero”, à mesma velocidade e da mesma maneira, como quando se estava no século XIX — porque já viu tantas reformas em que se muda alguma coisa para que quase tudo fique na mesma, é a garantia de uma ponte entre o deslumbramento (de quem não percebe os alunos mesmo que planeie a educação) e o bom senso de quem as ensina;
  • Um professor mais velho — que apanha crianças, muitas vezes, sem regras e com uma ideia quase anárquica da autoridade — funciona como os avós quando, não se substituindo aos pais, não desistem de ligar educar com aprender;
  • Um professor mais velho arrebata os nossos filhos muito antes de eles o conquistarem a si. E estende-lhes, facilmente, a mão para que eles transponham obstáculos. E acompanha-os nas suas dificuldades, (que ele toma — muitas vezes — como sendo, também, suas). E escuta-os nas suas confidências;
  • Um professor mais velho é aquele que sabe que não se aprende nem quieto nem calado. E, por isso, estimula a vivacidade e a participação. E educa para o entusiasmo;
  • Um professor mais velho é aquele que vibra e se comove com os alunos. E não passa sem o carinho e a admiração deles. Todos os dias;
  • Um professor mais velho é um repositório de histórias. É aquele que aprendeu tantas “fórmulas” para tornar um conhecimento apetecível que ensina truques para o desmascarar. E é aquele que não precisa de gritar para se impor. E que, desde há muito, aprendeu que os alunos só são distraídos quando os professores ainda não aprenderam a ser atentos para as suas dificuldades;
  • Um professor mais velho é uma memória de futuro.
É claro que eu gostava que até os professores mais novos fossem mais velhos. Mas os professores tornam-se mais velhos não só porque tenham mais idade mas porque acumularam, ao longo de muito tempo, a gratidão pelas inúmeras dificuldades que todas as crianças lhes foram colocando. À custa das quais se foram tornando mais sábios e, por isso, mais humildes. Mesmo quando a forma como elas os foram respeitando começou por colocá-los em dúvida. Que é assim um modo em que alguém que procura gostar de nós nos põe “em espera” e nos desafia a descobri-lo.

É por tudo isto que me incomoda que se fale dos professores mais velhos como se, só porque são mais velhos, a escola se renove pior. Todos precisamos de (muito!) tempo para crescer. Mas um professor talvez precise de mais, ainda. É por isso que uma escola onde abundam professores mais velhos poderá tornar-se uma escola melhor. Mas quando não cria as condições para que os professores mais novos aprendam com os mais velhos, é uma escola que desbarata o seu património e o hipoteca, por várias gerações. Até porque, muito depressa, chegará a altura em que muitos professores mais velhos a irão abandonar, de um dia para o outro. Se quando um professor mais velho se afasta da escola “é uma biblioteca que arde”, quando muitos a deixam é a alma da escola que desaparece.

Vendo bem, gostava que houvesse mais professores mais velhos. Porque terão mais oportunidades para serem sábios. E só mesmo os sábios são capazes de ser jovens.

Eduardo Sá

Fonte: Observador

domingo, 18 de agosto de 2019

A intervenção dos psicólogos em casa das famílias

Neste artigo, faço referência a um modelo de intervenção que utilizo de forma genérica na minha prática diária profissional, nomeadamente para casos de apoio aos pais na qualificação da educação dos seus filhos. Na base deste modelo, está o princípio de que, para realizar uma intervenção que seja válida, é fundamental conhecer a realidade das famílias, observando e conhecendo as interações familiares entre pais e filhos, nos seus contextos reais de vida, em casa, fora de casa, e noutras rotinas diárias do seu dia-a-dia, permitindo uma compreensão objetiva das circunstâncias, das necessidades da família e das suas dinâmicas, como um todo.

A realidade social das famílias não é passível de ser observada apenas em entrevistas, no espaço de consultório, nem apenas através escalas de atitudes parentais ou entrevistas. Os comportamentos e as atitudes dos pais e dos seus filhos não acontecem num vazio contextual, pelo que a sua compreensão deve obrigar a uma observação participante nos seus contextos de vida.

Em psicologia, uma conversa em casa, a partir das atividades que aí se desenvolvem, ajuda a identificar as necessidades particulares de cada criança ou adolescente, ou de cada família, e deve acontecer sempre que alguém, pessoa ou instituição, com responsabilidades educativas realiza um pedido de auxílio. Nessas circunstâncias, a função do psicólogo não é só inferir os problemas reais a partir dos problemas relatados, mas fundamentar-se em evidências da observação que realiza das circunstâncias em que estes ocorrem. Nem sempre quem pede ajuda consegue verbalizar adequadamente aqueles problemas, dependendo esta verbalização da tomada de consciência das circunstâncias que os motivam, bem como das expectativas e da disponibilidade para os alterar. 

A intervenção com pais deve responder com eficácia às necessidades reais das famílias, para poder fazer um adequado aconselhamento parental, em todos os contextos da vida quotidiana dos filhos (casa, escola e outros contextos significativos) e para melhor conhecer e adequar as estratégias ao local, às situações, que minimizem as consequências negativas para as crianças. Para esse efeito, é preciso que o psicólogo se desloque aos contextos e faça, in loco, uma observação naturalista dos comportamentos, cognições e contextos da vida real, dos familiares e dos interlocutores do quotidiano dos filhos (professores, familiares, treinadores…), criando depois, em conjunto com estes, estratégias integradas de intervenção.

Por outro a lado, a intervenção deve ser realizada num espaço seguro, tranquilo e salutar, que aconselhamos ser a casa dos pais, de forma a permitir construir uma relação consistente, ao longo do tempo, para a adaptação e desenvolvimento harmonioso de vínculos afectivos estáveis e duradoiros entre pais e filhos

No exemplo simples que a seguir apresentamos procuramos ilustrar a necessidade de intervenção nos contextos familiares para a criação de estratégias bem sucedidas na superação dos problemas apresentados — o caso do “João com medo”.

Um certo dia, uns pais vieram ao meu consultório procupados porque o seu filho João, 5 anos, fazia “xixi na cama”. Depois de todos os despistes de ordem física, percebemos que era uma situação que poderia ser resolvida com o apoio psicológico. A primeira sugestão, foi a de colocarem uma pequena luz de presença no quarto, durante a noite, para facilitar a sua ida autónoma à casa de banho, se necessário. Esta foi uma estratégia que não teve sucesso. A segunda estratégia, foi a de acrescentar à luz de presença, uma luz acesa na casa de banho. Mais uma vez, esta estratégia não teve o sucesso esperado. Fui sugerindo outras estratégias, todas sem sucesso. O João continuava a fazer “xixi na cama”. Até que, a certa altura, pedi aos pais se podia ir a casa deles e estar presente no horário de deitar o João. Os pais aceitaram. E rapidamente através da observação do contexto familiar percebi qual era o problema. É que entre o quarto do João e a casa de banho existia um enorme corredor, e que uma luz de presença no quarto e a luz da casa de banho acesa não eram suficientes para iluminar um caminho entre os dois espaços e para garantir a segurança e a supressão do sentimento de medo do João.

O longo e escuro corredor não havia sido valorizado pelos pais, porque fazia parte do seu dia a dia, durante toda a sua vida, e na sua qualidade de adultos não os importunava, não sendo por isso uma informação importante de me comunicar, e como tal, nunca foi tema de conversa nas consultas. A solução então encontrada e que teve muito êxito, foi a de colocar as luzinhas de árvore de natal, ao longo do corredor, entre o quarto do João até à casa de banho para ele deixar de ter medo de aí se deslocar sempre que necessário.

Eva Delgado-Martins

Psicóloga e terapeuta familiar

Fonte: Público

sábado, 17 de agosto de 2019

Governo e médicos vão avaliar subsídios por deficiência a crianças

A atribuição de bonificação por deficiência a crianças ou jovens que utilizem óculos ou tenham asma está a ser averiguada pelo em conjunto pelo Ministério da Segurança Social e a Ordem dos Médicos. De acordo com o Público, o ministro Vieira da Silva reuniu-se no passado dia 7 de agosto com o bastonário, Miguel Guimarães, os presidentes dos colégios da especialidade de Oftalmologia e de Pediatria da Ordem e outros representantes do Governo.

Desta reunião, o ministério avança ao jornal que saiu o compromisso de ambas as partes para que "a atribuição da prestação social seja clarificada". A lei, com mais de duas décadas, expressa que os subsídios por deficiência acrescem ao abono de família e inclui os 4.º e 5.º escalões. A esta, "apenas" têm acesso os agregados "cujo valor total do património mobiliário [depósitos bancários, ações, certificados de aforro ou outros ativos financeiros]" seja inferior a 104.502 euros.

O mesmo jornal adiantou que, nos últimos tempos, oftalmologistas foram inundados de pedidos de preenchimento do requerimento para o referido acréscimo de abono, levando mesmo a Sociedade Portuguesa de Oftalmologia a reagir. Os médicos devem "recusar atestar deficiência, quando tal não se verifique", avisou a SPO.

Mas a própria classe médica ainda está dividida quanto à passagem de atestado de deficiência neste e noutros casos, como problemas respiratórios. Ao Público, o presidente do colégio da especialidade de Oftalmologia da Ordem dos Médicos, Augusto Magalhães, afirmou que "no atual estado da lei", os profissionais devem preenchê-lo sempre que lhes for solicitado.

"Os médicos não são responsáveis pela lei; mas poderão ser responsabilizados pelo seu incumprimento; para além disso, não devem permitir que os responsabilizem pelo cumprimento de uma lei sustentada em princípios ideológicos, mas tecnicamente desajustada", escreveu em artigo de opinião no jornal.

Fonte: Sábado

Naturalmente, cego.

A cegueira ainda é vista na nossa sociedade como a “pior” deficiência que alguém pode ter. Quem não lida com esta limitação no seu dia-a-dia acha que a mesma é de tal forma incapacitante que condiciona o ato de ser feliz, daqueles que vivem esta situação na primeira pessoa ou na sua família próxima. Se perguntarmos a alguém qual é, de todas as incapacidades, aquela que não quereria mesmo ter, a resposta será certamente: ser cego. Mas o que será isto de ser cego para uma pessoa que nasce cega, ou perde a visão nos primeiros anos de vida? 

Será que aqueles que podem utilizar o sentido da visão conseguirão avaliar de forma sensata o que é “não ver com os olhos?”. 

Será que a visão é assim tão imprescindível para quem nunca a pode utilizar? Será que este mundo que as pessoas normovisuais conhecem é o mesmo mundo que as pessoas cegas percecionam? 

Há alguns anos atrás a minha própria conceção sobre a cegueira era diferente da atual e talvez me inserisse no grupo de pessoas que achava que era a “pior” das deficiências. Contudo, há quatro anos a vida resolveu desafiar-me a ser mãe de um menino que, com apenas seis meses, ficou cego. 

Perante tamanha fatalidade confesso que inicialmente o “meu mundo” desabou pois, na minha cabeça, era inconcebível que o “meu menino” não pudesse ver o mundo. Tanto que eu tinha para lhe mostrar… contudo, depressa percebi que o mundo do meu filho é muito mais do que o meu mundo e que afinal é ele que me ensina todos os dias a ver o que antes era para mim invisível. Foi também com o meu filho que percebi claramente que o ser humano tem uma capacidade inata de se adaptar a todas as situações e que as perceções de cada um são, simplesmente isso, perceções. 

Há dois anos atrás, por esta altura, juntava-me a outras mães e pais de crianças cegas para iniciarmos o projeto de fundação de uma associação de pais, amigos e familiares de crianças, jovens e adultos cegos e com baixa visão. Essa associação nasceu em outubro de 2017 e chama-se Bengala Mágica. O trabalho desenvolvido é ainda “uma gota no oceano” de tudo aquilo que queremos fazer nesta área onde a “desinformação” é ainda uma realidade muito presente. Enquanto pais temos a missão de apoiar outros pais e familiares mas também profissionais que trabalham com pessoas com esta especificidade. Temos também a missão de ajudar a “naturalizar” a cegueira perante a sociedade e mostrar que as nossas crianças e jovens são “tão capazes” como quaisquer outros. A limitação não está nelas mas sim na sociedade em que vivem. De facto, não vivemos num mundo preparado para quem não vê (com os olhos) e isso obriga a um esforço permanente de adaptação por parte de quem é cego ou tem baixa visão. Um esforço de tal forma exigente que, para quem está de for, chega a ser “visto” como uma capacidade sobrenatural. Várias vezes me dizem, relativamente aos comportamentos do meu filho: “Ahh…. Ele é sobredotado!” ou… “ele ainda deve ver alguma coisa!” Na verdade, aquilo que impressiona as pessoas não é mais do que a capacidade inata que uma pessoa cega tem de viver com a condição que é a sua e de se adaptar ao mundo “imperfeito” em que vive. O que sinto é que seria muito mais fácil viver neste mundo imperfeito se ele não fosse construído, por todos nós, com base na perfeição ou, naquilo que se julga ser, a perfeição. 

A Associação Bengala Mágica tem-me possibilitado conhecer adultos cegos e com baixa visão que não vivem “presos” à sua incapacidade e para quem a deficiência não é mais do que uma característica (pessoal) que, inevitavelmente os obriga a ser “todos os dias” eficientes na sua forma de viver mas que não os impossibilita de ter uma vida autónoma, independente e feliz. Do mesmo modo na minha vida, tenho contactado com pessoas que, não tendo qualquer deficiência (física, intelectual ou sensorial) têm outras características (pessoais) que não as deixam ser eficientes na forma de viver e, por essa razão, têm vidas que não desejam e onde se sentem infelizes. 

A forma como cada um de nós está no mundo é sem dúvida a “chave” para VER o mundo e para VIVER nele. E aqui, a importância da atitude dos pais nos primeiros anos de vida das crianças com deficiência visual é fundamental para tudo o que vem a seguir. Como já referi, quando me deparei com a realidade da cegueira do meu filho o “meu mundo” desabou… porém, depois do tão necessário período de “luto” interior, veio o período de “aceitação” e de “transformação”. Transformar-me para poder ajudar o meu filho a crescer e a tornar-se uma pessoa “inteira” e de bem com a vida. Para tal tive, e tenho ainda, que agir com o meu filho com a maior naturalidade possível, estando também eu, de bem com a vida. Como canta Rui Veloso, “Nem Deus tem o dom de escolher quem vai ser feliz…”. 

No meu dia a dia não me foco na deficiência do meu filho mas sim na pessoa que ele é e na forma como eu tenho que ser para o ajudar a encontrar o seu lugar no mundo. Tal como fazem todas as crianças desta idade o meu filho frequenta um jardim de infância, vai ao parque, vai ao supermercado, vai ao café, vai ao restaurante, vai ao mercado, vai à praia, vai à piscina, vai a casa dos avós, dos tios, dos amigos… enfim, vai onde tem que ir e fá-lo de forma completamente “normal”. A pouco e pouco as pessoas que convivem com ele foramse adaptando à sua forma de ver o mundo e aquilo que inicialmente era “assustador” é agora muito natural. Se pensarmos bem as crianças cegas apenas não têm um dos sentidos, contudo na falta deste podem rentabilizar ainda melhor todos os outros. Aqui está a forma como podemos dar a volta a esta situação que pode parecer altamente incapacitante. Se soubermos canalizar a informação, que normalmente as crianças recebem, de forma espontânea, pelo sentido da visão para os outros sentidos, estamos a ajudar a criança cega a construir a sua perceção do mundo que a rodeia. Quando escrevo “mundo” estou a referir-me a tudo, desde as pessoas, aos animais, aos objetos, aos ambientes, aos conceitos mais e menos abstratos… O importante é ir dando oportunidades de exploração à criança, não nos limitarmos apenas a descrever sem deixar que as crianças experimentem, sintam, vejam… Daqui advém a necessidade de dar a estas crianças muitas e diversificadas experiências pois é com base nestes momentos que constroem as suas imagens mentais e conceptuais. Nestes momentos de experimentação e exploração é importante deixar as crianças serem crianças e agirem como crianças. Sem medo, há que estar por perto mas não superproteger. Tal como qualquer criança, a criança com deficiência visual tem que cair para aprender a levantar-se, tem que dar cabeçadas para aprender a desviar-se, tem que sujar-se para aprender a limpar-se… gerir a ansiedade é algo que nós pais temos que aprender e para que seja mais fácil, mais uma vez, o importante é não nos centrarmos na limitação dos nossos filhos mas sim nas suas capacidades. Se nós conseguirmos deixá-los ser crianças felizes, eles vão conseguir ser jovens e adultos felizes. 

A nossa postura enquanto pais é imprescindível para a formação dos nossos filhos mas também para a postura das outras pessoas em relação aos nossos filhos. Por vezes deparo-me com pessoas que não conheço e que se apercebem que o meu filho é cego. Na presença da dúvida ou perante um olhar curioso, costumo imediatamente dizer que ele não vê. Normalmente seguem-se comentários que demostram pena, compaixão, espanto ou até mesmo infortúnio, acompanhados de olhares de piedade e solidariedade. Imediatamente, procuro desmistificar este tipo de abordagem dizendo que ele é muito feliz e que a cegueira é apenas uma característica dele, infelizmente não a mais preocupante (a cegueira é decorrente de um tumor no sistema nervoso central). Outras vezes perguntam-me se é invisual ou ceguinho, quase a medo… ao que respondo de forma muito natural, não é ceguinho nem invisual, é apenas cego. Não vê com os olhos mas vê com todos os outros sentidos. Quem conhece o meu filho acaba por não se lembrar permanentemente que ele é cego, tal como não se lembra que tem cabelo castanho aos caracóis, que tem olhos castanhos, que tem quatro anos… 

Para o meu filho ser cego é ainda algo que desconhece. Estou á espera do dia em que ele me pergunte o que é isso. Não sei se saberei responder mas já ando a ensaiar uma resposta. O mundo dele é assim, não conhece outro e, nessa forma de ver o mundo, sei-o feliz, inteiro, criança e pessoa. E sei também que o sentido da visão não lhe faz falta nenhuma.

Dídia Lourenço 

Mãe de criança cega 
Vice-Presidente da Direção da Associação Bengala Mágica associacao.bengalamagica@gmail.com 


Fonte: Revista Plural&Singular, 22ª EDIÇÃO, julho 30, 2019

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Apenas 1% dos educadores de infância são homens. "A nossa sexualidade é posta em causa"

O destino estava escrito no nome, diz Diogo, palavra derivada do latim didacus, que significa "professor". Mas foi apenas quando a professora Albertina, do 12.º ano, lhe lançou a questão que decidiu que queria seguir Educação. Mais especificamente, ser educador de infância, uma profissão maioritariamente feminina. Os números não deixam mentir: de acordo com o relatório "Educação em números 2019", da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, a taxa de feminidade na educação pré-escolar em Portugal é de 99%. Diogo Guerreiro, 40 anos, integra estes restantes 1%. Ao todo, são apenas 157, num universo de 16 065 educadores portugueses. Já em Beja é o único, garante.

"Diogo" é repetido vezes sem conta nas vozes miúdas das crianças que estão sob a alçada deste educador na Associação Escola Aberta, em Beja, uma instituição particular de solidariedade social. Encontramo-lo sentado no parque infantil exterior da escola, com os mais pequenos a trepar pela sua camisa ao xadrez e a brincar com a guitarra que carrega na mão. "Diogo, Diogo", repetem. Homem e educador. E nada nesta conjugação parece ambíguo ou digno de discussão para as crianças. Aos olhos delas, ele é o professor e não uma ínfima parte das estatísticas nacionais.

Aqueles com quem é mais difícil de lidar são os adultos, explica. "Tive algumas touradas com mães principalmente, embora a maioria confie porque me conhece há vários anos." Já lá vão quase 16 de carreira. "Várias vezes disseram-me: 'O Diogo não sabe o que faz.' Porque sou homem é que isso acontece", garante.

Um caminho solitário

Sabia exatamente ao que ia quando decidiu ingressar na profissão, embora só muito tarde tenha decidido o que queria fazer profissionalmente. Passou a adolescência "perdido", até ao dia em que a professora Albertina, do 12.º ano, o "encostou à parede" e lhe disse que tinha de se orientar, escolher um futuro. "Propôs Educação porque achava que eu tinha jeito para as crianças, já que tomava conta dos filhos dela", conta. E a ideia não lhe pareceu estranha. Por isso, viajou do Estoril, onde nasceu e cresceu, em direção a Beja, para se tornar estudante universitário. Era o único homem a frequentar a licenciatura de Educação de Infância, no Instituto Politécnico de Beja, distrito onde permaneceu até hoje.

"Só a partir dos anos 1970, quando começou a aparecer formação (pública) que tinha sido extinta, é que a possibilidade foi aberta aos homens", lembra presidente da Associação de Profissionais de Educação de Infância (APEI). Luís Ribeiro é também ele formado em Educação de Infância, embora já não esteja a exercer diretamente junto das crianças. Nem uma década após o início desta reforma, acabou o curso em Évora como "um dos três primeiros homens a saírem formados da área".

Não tem dificuldades em enumerar as razões que estão na origem deste número tão residual. São poucos na profissão não só "pelo preconceito em torno de uma figura masculina cuidadora", mas também porque "a mobilidade na rede educativa é escassa", fazendo que entrem menos educadores, e ainda menos os que são homens. "Os que conseguem acabam por ingressar na rede privada ou solidária."

É um caminho de desencantos fáceis, acrescenta o educador Diogo Guerreiro. Como formador num curso profissional de Educação de Infância, conta que dos poucos rapazes que chegaram às suas turmas, a maioria acabou mesmo por desistir devido à "pressão". "A nossa sexualidade é posta em causa", lamenta.

E nem os vários anos de experiência podem descansar os pais de primeira viagem. "O que se vai ouvindo fora destas paredes, das nossas cidades e às vezes até do país assusta-os." Diogo sentiu-o, imediatamente no início da sua carreira, em 2003, que coincidiu com o auge do processo Casa Pia. "Embora os pais das crianças não o dissessem em voz alta, senti que havia ali alguma cautela", lembra.

O dirigente da APEI, Luís Ribeiro, acrescenta que, no seu tempo, "as mães perguntavam a orientação sexual do educador para compreenderem que tipo de relação teria com as crianças".

Profissão interdita a homens

As estatísticas mostram que a presença masculina numa profissão que se diz feminina tem oscilado ao longo dos anos. Entre 2004 e 2010, por exemplo, a taxa de feminidade variou entre os 96% e os 98%. E já lá vai o tempo em que os homens eram realmente um tabu entre os números - contavam-se zero, antes do 25 de Abril.

"Deus, pátria, família", ditavam as lições de Salazar, onde à mulher cabia a figura de cuidadora e educadora dos menores. Os homens, pelo contrário, eram vistos meramente como trabalhadores, o ganha-pão da casa, com um peso inferior na educação dos próprios filhos. Nos anos em que vigorou o Estado Novo, foi assim mesmo que se determinaram os papéis. E é possível ir ainda mais longe na cronologia. Basta retroceder até à Pré-História, no tempo em que os humanos habitavam as cavernas. Também aqui o sexo feminino era visto como o cuidador, enquanto o homem ia caçar.

A história foi ditando os papéis, sempre estereotipados, e assim o futuro da educação em Portugal. Tornou-se estranho, até exótico, pensar numa figura masculina como educador. Por isso, antes da Revolução de Abril, era proibido um homem exercer esta profissão. Mesmo com a queda deste regime político, estas ideologias foram sobrevivendo aos anos seguintes, deixando partículas desse tempo nas páginas mais contemporâneas da história.

Depois de licenciado, enquanto entregava currículos, José Gonçalves, 30 anos, foi recusado numa instituição infantil como educador devido ao seu sexo. "Disseram-me logo que não aceitavam homens para o cargo", conta o educador de Vila Nova de Gaia. Foi a única vez que tal aconteceu, mas "mostra como a sociedade ainda pensa que o sexo masculino não pode ser o cuidador". Ele próprio ponderou: "Será que vou ser aceite no meio? Como é que a sociedade vai ver o meu papel como homem educador? Ainda por cima estarei a concorrer numa altura tão difícil para a educação", recorda. Decidiu arriscar e descobrir sozinho a resposta.

José lamenta o perfil estereotipado que tem resistido ao passar do tempo, mas é mais otimista: "A sociedade está a mudar." Em grande parte, explica, devido às novas dinâmicas familiares. "Hoje, um pai está mais ou tão presente na educação de um filho comparativamente com a mãe. E isso faz que os casais e as crianças não considerem tão estranho um cenário em que o professor que os espera na escola é homem."

As mentalidades são outras, é certo. Mas "é preciso não nos esquecermos de que continuamos a ser poucos", acrescenta Diogo Guerreiro. Na perspetiva do educador, o trabalho deve ser feito em conjunto com as mães e as mulheres deste país, que "muitas vezes ainda escolhem não dar espaço aos homens para que a revolução aconteça".

Fonte: DN por indicação de Livresco

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

“Mudar tudo, substituir tudo, aniquilar tudo”

O Grupo de Trabalho de Matemática propõe a substituição de todos os programas e das metas curriculares, atualmente em vigor, em toda a escolaridade obrigatória num relatório com 24 recomendações distribuídas por quatro áreas. O documento está em consulta pública até 12 de outubro e não é visto da mesma forma. Há quem concorde e quem discorde. Há quem defenda e quem critique as sugestões feitas que, no fundo, alteram quase tudo no ensino e na aprendizagem de uma disciplina estruturante. 

Queremos que os alunos saibam mais ou queremos que saibam menos? Para Nuno Crato, ex-ministro da Educação, matemático e professor, ex-presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática, é essencialmento isso que está em discussão. “Coloco-me do primeiro lado da alternativa: acho que os programas devem ser progressivamente mais bem estruturados, mais exigentes e mais ambiciosos. E que devemos tentar que os estudantes sejam mais e melhor ensinados. Tanto em Matemática como nas outras áreas”, refere (...).

“O grupo de trabalho defende o contrário, apesar de os resultados terem melhorado continuamente até 2015. Melhoraram tanto nas avaliações internacionais PISA e TIMSS como na redução do abandono escolar, como na redução das retenções, como nas avaliações internas e externas. Quer dizer, professores e alunos responderam a uma maior exigência e o ensino melhorou”, sublinha. “O que o grupo de trabalho recomenda é essencialmente mudar tudo, substituir tudo, aniquilar tudo; e propor que se mude para um currículo mínimo e quase vazio”, acrescenta. 

Em seu entender, há um aspeto mais grave. “Neste momento o que se propõe é ainda pior que o que existia antes dos novos programas. O que se propõe essencialmente é que não haja verdadeiro currículo, mas apenas orientações gerais. Ou seja, que quem o quer possa praticar um ensino pouco ambicioso e pouco exigente”, comenta. “É simples, há quem acha que se deve aprender menos. Lamento, eu penso que se deve aprender mais”. 

Nuno Crato vai ao passado para destacar as melhorias a Matemática. No TIMSS, antigamente, em Matemática do 4.º ano, Portugal estava na base da tabela, apenas com a Islândia e o Irão atrás. No PISA, a Matemática e outras áreas, o país estava muito abaixo da média da OCDE e, lembra, “não havia problemas com os programas da altura”. “Agora, que no TIMSS passámos à frente de muitos países, incluindo a Finlândia, este grupo descobre que é preciso mudar os novos programas e as novas metas que nos ajudaram a progredir imensamente até 2015”, repara.

No PISA, os alunos portugueses ultrapassaram a média da OCDE, conseguiram os melhores resultados de sempre e as desigualdades foram reduzidas. “A OCDE afirma, no relatório de 2015, que Portugal foi um dos poucos países que simultaneamente conseguiram aumentar os alunos em melhor situação e reduzir o número de alunos com mais deficiências, tanto em Leitura, como em Ciência e em Matemática. Portugal foi também um dos dois únicos países europeus (o outro foi a Suécia) a progredir entre 2011 e 2015 nas metas 2020 para reduzir o número de alunos com deficiências básicas em Leitura, Ciência e Matemática”. 

“Quer dizer, quando os programas estavam mal estruturados e eram pouco exigentes, nós obtínhamos resultados péssimos. Agora, que os programas foram mudados para programas mais rigorosos, mais bem estruturados e mais exigentes e quando tudo melhorou, é preciso voltar atrás! Não faz qualquer sentido”, afirma o ex-ministro da Educação.

Adequação, articulação, coerência 

A Associação de Professores de Matemática (APM), numa primeira reação, concorda com a pertinência do relatório do grupo de trabalho. Há muito tempo que a APM vinha a pedir uma avaliação da situação do ensino da Matemática no nosso país. “As recomendações, no seu conjunto, também, numa primeira leitura, parecem cobrir os domínios fundamentais de intervenção: o currículo de Matemática (adequação, articulação, coerência, flexibilidade, alinhamento com as orientações da investigação internacional e nacional), as dinâmicas de desenvolvimento curricular, a avaliação das aprendizagens e a formação de professores”, adianta Lurdes Figueiral, presidente da APM (...).

Globalmente, numa primeira reação resultante da leitura de pouco mais do que as recomendações, a APM concorda com as sugestões, embora, segundo Lurdes Figueiral, “haja certamente a necessidade de perceber mais a fundo as razões pelas quais são apresentadas, havendo também aspetos que nos suscitam dúvidas e aspetos que, nesta primeira aproximação, não vemos espelhados nestas recomendações”. 

A direção da APM está a estudar e a analisar o relatório e a preparar iniciativas para dinamizar um debate interno alargado. Além disso, vai enviar um questionário sobre o assunto a todos os associados, promover debates presenciais locais e outras consultas, e ainda organizar um conselho nacional da associação aberto à participação dos associados. Com esta dinâmica, a APM quer participar na consulta pública “com um parecer sustentado por uma ampla participação dos associados”.

“Recomendamos também, independentemente de haver ou não relação com a APM, que, sobretudo os professores, mas também outros agentes educativos participem neste debate público a larga escala. Consideramos de especial importância que as instituições de Ensino Superior que fazem formação inicial de professores dos diversos graus de ensino contribuam com o seu parecer especializado”, sugere Lurdes Figueiral.

“Visão insípida e inestética” 

A Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) criticou, desde a primeira hora, a constituição do grupo de trabalho, sobretudo pelo caráter pouco representativo da comunidade científico-pedagógica dos seus membros e pelo facto de ser coordenado pelo autor do Programa de Matemática de Secundário de 1997, reformulado em 2001, e revogado aquando da implementação dos Programas e Metas Curriculares - Matemática A em 2015. “Dificilmente uma equipa com estas características conseguiria fazer um estudo técnico objetivo, o que se veio infelizmente a confirmar”, refere Filipe Oliveira, presidente da SPM (...). 

“Parece absurdo recomendar-se a obliteração de todos os documentos curriculares em vigor, com a agravante de nem se propor nada de concreto em troca, apenas princípios muito gerais, em grande parte discutíveis. Há uma lição que parece não ter sido aprendida: é por sucessivos melhoramentos que se conseguiu, entre os finais dos anos 90 e 2015, inverter dramaticamente um quadro nacional em tudo deplorável, transformando-o num sistema de ensino de sucesso e de referência a nível internacional”, sublinha.

O responsável destaca vários pontos do relatório que, em sua perspetiva, é “uma análise tendenciosa que omite elementos fundamentais”. Quanto ao programa da autoria do professor Jaime Carvalho e Silva, o presidente da SPM adianta que “nunca houve em Portugal um programa do Secundário mais criticado pelas suas insuficiências científicas e pedagógicas do que o Programa do Secundário de 1997, reformulado logo de seguida em 2001, sem melhorias significativas”. “Contudo, todos os documentos oficiais que dão conta destes factos e que são fundamentais para se compreender a evolução do ensino da Matemática em Portugal nos últimos anos (tarefa que este grupo de trabalho supostamente se propõe executar) estão sistematicamente ausentes do estudo”. 

Filipe Oliveira destaca, a título de exemplo do que afirma, vários elementos como os critérios de elaboração de programas de Matemática do 7.º ao 12.º ano, do Instituto de Inovação Educacional, em setembro de 1998. A análise dos programas existentes em Portugal e no estrangeiro tem algumas observações: “Temos muitas dúvidas sobre a profundidade de tratamento dos temas”, “enormes deslizes, ambiguidades”, “um texto de má qualidade, desequilibrado”.

Outro exemplo. A análise dos programas do Ensino Secundário da Universidade Técnica de Lisboa, em 2000, assinado por todos os presidentes dos departamentos de Matemática dessa universidade. Sobre o ajustamento de 2000 escrevem que há “graves lacunas: incapacidade de abstração, ausência do conhecimento do método próprio da Matemática, profundo desconhecimento de conceitos básicos de Análise Matemática e Geometria”. 

Mais um exemplo. Os novos programas de Matemática para o Ensino Secundário, de Luís Sanchez, em 1997, subscrito pelo Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. E os seguintes comentários. “Os programas espelham uma visão da Matemática insípida, inestética e em alguns pontos obscurantista. Com este estilo de abordagem, o assunto que se vai pretender ensinar será cada vez mais transformado numa caricatura de Matemática”.

Desestruturar e empobrecer o ensino 

O relatório recentemente divulgado é, para Filipe Oliveira, “uma análise tendenciosa que desvaloriza sistematicamente as conquistas dos programas atualmente em vigor”. “Em contraponto, o documento desvaloriza os dados objetivos que mostram a importância que teve para o país um currículo cientificamente bem construído, organizado e corretamente estruturado”. Dados oficiais da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) dão conta, refere, e de forma sistemática, “de uma subida estatisticamente significativa das médias internas dos alunos aquando da introdução das metas e a quebra nas taxas de retenção. O estudo cita estes dados mas não os relaciona com os novos programas”. Há ainda, acrescenta, a “relação evidente entre os progressos dos alunos no TIMSS, e a introdução de metas curriculares no 1.º Ciclo, parecendo conceder o relatório que de facto houve progressos mas que podia ter havido mais”.

“Além disso, o documento apresenta uma análise grosseira, parcial e com erros factuais do programa e metas curriculares em vigor”, repara. Para o presidente da SPM, o grupo de trabalho fez um documento político e não um estudo técnico. “É visível por que razão foi escolhida uma equipa que há anos critica o programa em vigor, antes de qualquer estudo ter sido publicado, e que profetizou um desastre no ensino da Matemática com os novos programas”. 

Filipe Oliveira recua alguns anos, à conferência “Evitar o Desastre no Ensino da Matemática” sobre a proposta de um “novo” programa de Matemática A de Jaime Carvalho e Silva, em 2014. “Esta conferência profetiza um desastre. Hoje sabemos que os testes internacionais de 2015 foram o maior sucesso de sempre dos alunos portugueses, que as classificações internas dos alunos não param de subir desde 2013/14 e que as taxas de retenção também têm baixado consistentemente desde esse ano”. 

Em sua opinião, a bibliografia do relatório é inadequada. “A bibliografia é datada e corresponde às opiniões de uma fação das Ciências da Educação que não é de todo representativa dos grandes movimentos internacionais. Deixa de fora literatura oriunda da Psicologia Cognitiva e das Neuro-Ciências, que são de facto essenciais para uma abordagem científica e moderna do problema da aprendizagem”, comenta. 

Na visão da SPM, o relatório desestrutura e empobrece o ensino. “Substituir o programa em vigor e apoiar politicamente o Programa de Flexibilidade e Autonomia Curricular do sr. secretário de Estado João Costa” são, para Filipe Oliveira, os objetivos do documento. “Veja-se a este propósito a Recomendação 2: recomenda-se um currículo nacional de Matemática com nível de decisão local, na senda da Flexibilidade e Autonomia Curricular”.

“Dar liberdade curricular praticamente total aos professores e às escolas cria uma situação de profunda desigualdade. As dificuldades dos alunos com os temas fundamentais e estruturantes podem ser rapidamente varridos para debaixo do tapete ao abrigo da flexibilidade e substituídos esses temas por atividades e projetos sem qualquer pertinência formativa”. A SPM opõe-se fortemente a esta ideia que diz ser “muito perigosa” e explica porquê. “Quebra em particular a igualdade das oportunidades de aprendizagem que eram garantidas aos alunos por metas de desempenho cognitivo traduzidas em conhecimentos que todos deviam adquirir e em capacidades que todos deviam desenvolver”. 

“É curioso constatar que em nome de uma suposta igualdade, estas ideias adensam a desigualdade, ampliam desigualdades regionais e socioeconómicas, comprometendo em particular o papel da escola enquanto elevador social. Na verdade, precisamos de currículos inclusivos que ofereçam a todos os alunos as mesmas oportunidades”, defende o presidente da SPM.

Fonte: Educare por indicação de Livresco