“Doente cliente ou doente utente: eis a questão”.
O autor considera que “cliente” é acto de “opção livre”, com direito a escolher, um acto de lucidez, porque o cliente orienta-se pelo “conhecimento e rigor”, “informado, decide” é o título de um artigo do Expresso, (20-07-2013).
Para o autor, o “utente” do Serviço Nacional de Saúde é um “submetido que utiliza o que lhe mandam utilizar”, “passivo”, porque “vai na corrente para esperar profissionais incógnitos”.
O artigo não é nada meigo em relação aos utentes do SNS.
Não fosse seu autor o “médico presidente da Associação da Hospitalização Privada” até podia levar ao engano.
Duas palavras com implicações tão distanciadas a interferir nas nossas vidas.
Fazer do “utente” um submisso” ou “ignorante” e do “cliente” o “informado” deixa ver que na concepção do autor há uma clara opção por um sistema saúde. Há “utentes” esclarecidos, exigentes de bons serviços, e bem informados dos seus direitos.
E se é a palavra “cliente” que dá estatuto, então é de concluir que os “clientes” da Galp, EDP, PT… são pessoas esclarecidas pelo bom serviço que lhes é prestado, por “livre opção”!
Será que os “clientes” dos centros comerciais, que por lá andam carregados de sacos com rótulos de marcas famosas são “lúcidos” e “conscientes”? Ou não andam levados na onda do consumismo? E os que se fornecem no comércio tradicional, são “ignorantes”, “passivos”?
E no campo da saúde, sabe-se que os privados recomendam o público quando os casos são mais complicados. Nestas situações ser “utente” já é preferível a ser “cliente”. O mesmo artigo reconhece que “cliente” carrega a ”marca negativa do negócio”.
O autor é “presidente da Associação da Hospitalização Privada”, tudo dito. Estamos em tempos de procurar palavras novas para embaralhar conceitos simples, fáceis de compreender.
Nessa onda modernista, também o “trabalhador” passou a “colaborador”, uma palavra mais doce a querer significar “companheiro de trabalho”. E o administrador do banco, em conferência de imprensa quando apresenta os resultados da sua administração, ao dizer que vai dispensar umas centenas de “colaboradores”, que trabalhavam em colaboração, significa que vai despedir ou mandar para o desemprego uns tantos “trabalhadores”, descartáveis para assim garantir mais lucros ao banco. E os que colaboraram nos chorudos lucros do banco lá se vão e o administrador colaborador leva prémios de milhões somados os elevados ordenados!
Nesta saga de palavras novas andam por aí discursos com “maturidades”, palavra a estabelecer confusão sobre assunto tão fácil compreender se fossem utilizadas palavras do dicionário ao alcance de todos, sem a petulância de criar neblinas na compreensão.
Se no discurso dos iluminados das fianças públicas, que puxaram o país à miséria, em vez de “maturidades” dissessem “prazos da dívida” todos nós compreenderíamos que os nossos políticos fizeram o país “caloteiro” e as “maturidades” não são mais que os prazos dos “calotes” a pagar. Também há “paridades” e “imparidades”, que é assim alguma coisa como “ganhos” ou “perdas”, palavras tão fáceis de compreender.
E se em vez de “sawps” e “derivados” na boca dos políticos nos dessem a informação que são contratos especulativos, roubos e gatunagem, todos nós entendíamos.
Também nas instituições de solidariedade anda a esperteza de embaralhar as coisas com palavras novas. Os idosos de lar residencial e os jovens de centro ocupacional passaram a “clientes”, à boa moda comercial. E os “pais” deixaram de ser pais para passarem a ser “significativos”, sob pretexto que são pessoas com significado para o “cliente”.
São modas. As modas são passageiras!
É certo que estamos em tempos de tudo medir pela linguagem do comércio.
São os “mercados” que mandam!
Eis a questão: utente é o utilizador dos serviços públicos que não paga, ou que não deveria pagar, porque já paga como contribuinte. E o serviço público é um direito prestado em igualdade, sem diferenciar por motivos de raça, de religião, de cultura, de cor política, de estatuto social, de poder de compra.
Sim, de poder de compra!
“Utente” é aquele que é tratado em igualdade de circunstâncias e de meios.
“Cliente” é aquele que é levado pela publicidade. O “cliente” também paga a publicidade, a embalagem do produto, o rótulo, a marca. Também as gentilezas do vendedor.
Manuel Miranda
Recebido por correio eletrónico
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