Nem sabe quantos meningiomas tem na cabeça. Meningiomas, bem entendido, são tumores nas meníngeas, as membranas que envolvem o sistema nervoso central. São tantos e tão pequenos. De repente, qualquer um pode desatar a crescer. Dois crescerem ao ponto de lhe estarem a comprimir o cérebro. Há risco de João Sousa Silva deixar de andar.
Tem uma forma severa de neurofibromatose tipo 2 (NF2), uma doença genética, rara, associada a uma alteração cromossómica, que dá origem a tumores no sistema nervoso. Aos 33 anos, doutorando em Informática na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, quase não vê, pouco consegue fazer com a mão direita, desequilibra-se ao andar, já perdeu alguma audição.
Não quer gastar tempo a imaginar o que poderia ser deixar de andar. Prefere dedicá-lo à investigação científica, à mulher, Sofia, uma fisioterapeuta quatro anos mais nova, ao cão de assistência, Lupi, um labrador de pêlo preto. Caminhar é a sua terapia. Caminham lado a lado, as mãos entrelaçadas, o braço dele fletido junto ao ombro dela. “Quando o terreno é irregular, tenho de segurá-lo”, explica ela.
Quer ser observado no Centro de Medicina Genética dos Hospitais Universitários de Manchester Central, no Reino Unido. E Carla Domingues, a neurocirurgiã que o acompanha em Portugal, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, acha que isso é o ideal. Portugal não tem qualquer centro de referência nesta doença. E aquele é um centro de referência internacional. “O João não tem margem para experiências”, afirma a médica. “Esta cirurgia tem de correr bem.”
O caminho a seguir, numa situação destas, pode não ser evidente. As notícias mais recentes que João encontrou remetiam para uma diretiva europeia sobre cuidados de saúde transfronteiriços. A lei que em 2014 transpôs aquela diretiva para o quadro jurídico nacional anulara a anterior? “Se pesquisar na Net, aparece montes de tralha, mas não informação estruturada”, critica João. “Achei que deveria contactar alguém que potencialmente percebesse do assunto.”
A Linha Rara, o serviço de apoio da RARÍSSIMAS, não o elucidou. A presidente daquela associação, Paula Costa, pediu um parecer jurídico. E a advogada que lho forneceu entendeu que a nova lei revogava a segunda. De acordo com essa lei, a iniciativa de recorrer ao estrangeiro cabe ao doente, o pedido de autorização corre na Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), o Serviço Nacional de Saúde (SNS) só reembolsa parte dos custos. João telefonou à ACSS. “Disseram-me que informações daquele teor não se dão por telefone”, recorda. E a informação enviada por email à médica assistente não era esclarecedora. Pelo contrário.
Uma lei não engoliu a outra, clarifica a Direção-Geral de Saúde (DGS) em respostas por escrito (...). Mantém-se a velha via de acesso a tratamentos no estrangeiro que, por falta de condições técnicas e humanas, não possam ser prestados em Portugal: o hospital público toma a iniciativa, a DGS analisa e, havendo concordância, o diretor-geral autoriza; os encargos (viagem, alojamento, tratamentos, acompanhante) são suportados pelo SNS. E abriu-se, com a transposição da diretiva europeia, uma segunda via para quando o país não garante tratamento em tempo útil: o doente toma a iniciativa, o processo circula pela ACSS, o SNS reembolsa apenas o tratamento e só até ao limite do custo que teria em Portugal.
A médica assistente de João está agora a desencadear o processo dentro do hospital. Está convencida de que “é do melhor interesse” do seu doente “ser observado e tratado por uma equipa multidisciplinar que tenha em conta toda a complexidade do seu caso”.
Doença herdada da mãe
João ia nos três meses quando a mãe lhe notou um desvio nos olhos. O pediatra recomendou-lhe que sossegasse, mas quem com ela se cruzava nas ruas de Leiria dizia-lhe que o bebé tinha os olhos tortos. Levo-o ao oftalmologista. “Só de imaginar o meu bebé com óculos comecei a chorar”, conta. O médico não se compadeceu. “Se não tivermos de tirar o olho e pôr um de vidro, tens muita sorte”, ter-lhe-á dito.
Nasceu com microftalmia, uma malformação pouco frequente que faz com que a criança tenha um ou os dois globos oculares pequenos e um grau variável de incapacidade visual. Fez os exames no Hospital Pediátrico de Coimbra. Aflitos, os pais levaram-no a um reputado especialista do Porto. Já mal via pelo olho esquerdo. Aos 18 meses, o direito cedeu. “Era como se a retina fosse um prego e à volta houvesse tentáculos a fazer pressão”, diz a mãe. “Ele só via entre os tentáculos.”
Naquela altura, ninguém imaginava que tinha neurofibromatose tipo 2. Ia nos 11 anos quando a doença se manifestou. “Andar de bicicleta era a minha maior alegria. Ia comprar peças quando notei que alguma coisa estava mal. Não conseguia levantar bem os pés”, recorda. Uma prima acompanhou-o na consulta. O médico pediu para falar com a mãe. Quando a viu, levantou logo a possibilidade.
A NF2 fora diagnosticada à mãe, Conceição, havia três anos. Tinha aquilo a que se poderia chamar uma vida normal. Contava 30 anos, partilhava um segundo andar na zona da Guimarota, perto do centro de Leiria, com o marido e o filho. Trabalhava como assistente de direção numa fábrica de bolachas e bolos. A certa altura, começou a ouvir mal. Eram tumores no nervo auditivo.
Primeiro, Conceição submeteu-se a uma cirurgia do neurinomas do acústico direito. “A audição já estava quase a zero.” Um mês ou dois depois, chamaram-na para a cirurgia do neurinomas do acústico esquerdo. “Resultado: perda total de audição. Paralisia facial.” Não tardou a voltar à mesa de operações. “Tive uma meningite que me deixou quinze dias em estado de coma.”
A mãe voltou a casa transfigurada. O pai saiu de casa, incapaz de lidar com tudo aquilo. E João esforçou-se para tentar perceber o novo mundo e se ajustar. Ocorrem-lhe memórias como esta: “Agora já não tenho ninguém para me vir acordar, já não me posso deixar ficar na cama. A minha mãe não ouve o despertador.”
Uma revolta que é uma força
A NF2, que afeta uma em cada 60 mil pessoas, tende a dar os primeiros sinais entre os 18 e os 24 anos. Manifestou-se mais tarde do que é habitual na mãe, mas bem mais cedo do que é o habitual no filho e de forma severa. E isso teve efeitos na forma como cada um deles lida com a doença.
Há na mãe uma infinita sensação de perda. E em João “uma revolta que acaba por ser a força motriz para conseguir levar avante os seus objetivos”, comenta a psicóloga Ana Coelho, que o conheceu na Associação de Cegos e Ambliopes de Portugal (ACAPO). “Ele aperfeiçoou de tal forma essa capacidade que hoje consegue o que procura, mesmo quando isso depende de outros.”
O relatório médico mete medo ao susto. Na adolescência, alguns tumores começaram a comprimir-lhe a medula. Sujeitou-se a cirurgias à cervical em 1996, 1998 e 1999. Também tem tumores nos nervos auditivos. Estão estáveis, por agora. Fez tratamentos de radiocirurgia em 2007 e 2012. E tem inúmeras meningiomas. São “muitos, incontáveis, pequeninos”, refere Carla Domingos.
“Tenho um jackpot”, ironiza João. “Quando tu aos nove anos descobres que a tua mãe está tramada, aos 12 deixas de fazer o que mais gostas na vida que é andar de bicicleta, viras-te para os jogos de vídeo e aos 14 ou 15 ficas com a mão direita escavacada e deixas de poder jogar, o que vais fazer?”, pergunta. “Ficar em casa deitado na cama? Isso é pior! Eu sou capaz de ficar na cama um dia, mas isso não me satisfaz. Quero ler um livro, ouvir as notícias, trabalhar. Gosto de trabalhar, de ver o trabalho a avançar. Gosto de comer qualquer coisa boa. Tenho objetivos.”
Tem os seus momentos de desânimo, mas mantém a capacidade de se rir de si próprio. “Tenho sempre presente a sensação de finitude”, diz. “Um gajo vai perdendo as faculdades ao ponto de já não andar confortável na rua.” Primeiro, foi a visão e, depois, o equilíbrio. A perda de visão acentuou-se a partir dos 21 anos, e, de novo, a partir dos 28. “Apesar da dificuldade, levantava-me e ia à casa de banho, ia à rua tomar um café, apanhar um táxi ou um autocarro.”
Apoia-se em Sofia – que conheceu em 2012, no picadeiro, na Quinta do Pinheiro Manso, na periferia de Leiria. E em Lupi, que a Ânimas – Associação Portuguesa para a Intervenção com Animais de Ajuda Social, lhe entregou em maio deste ano. E na sua personalidade. Não se rende. Continua a ser “um tipo todo torto que insiste em ter uma vida normal”. Como quando, pouco tempo depois de se casar, perdeu direito à pensão social de invalidez e deu uma entrevista (...).
Sempre a abrir caminho
No Instituto Politécnico de Leiria, fez a licenciatura em Engenharia Informática com média de 16 e o mestrado em Engenharia Informática e Computação Móvel com média de 18. Hoje, o Politécnico de Leiria é frequentado por cinco alunos cegos e ambliopes. Naquela altura, era todo um mundo novo que se abria.
O professor Luís Marcelino recorda-se desses tempos: “O João veio abrir algumas portas para os alunos seguintes. Ele precisava de mudar todos os fundos para escuro, de fazer ajustes no ecrã, e nós sentávamo-nos com ele a fazer isso.” Pediram-se horas extra para os docentes o acompanharem de forma mais personalizada. E isso tornou-se regra para alunos com necessidades especiais.
Quer continuar a fazer investigação. “É o que eu posso fazer”, resume. Conjuga as limitações físicas com o gosto pela informática e a vontade de desenvolver as acessibilidades digitais. Uma junta médica atribuiu-lhe um grau de incapacidade de 98%, mas está a fazer doutoramento em informática sobre acessibilidades em Tecnologias de Informação e Comunicação. “Os 2 % de capacidade foram declarados quando já tinha 18 anos. Agora é o rapar do tacho”, brinca.
Uma luta para arranjar bolsa da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Concorreu pela primeira vez em 2013 a bolsa individual de doutoramento. A candidatura foi recusada. Recorreu. Não obteve resposta. Insistiu, mesmo quando já estavam ultrapassadas as datas relativas a todas as fases do concurso.
Em 2015, pediu bolsa por um ano, em vez de pedir por quatro, como é mais usual. “Foi uma tentativa desesperada”, admite. “Já tinha tentado, com muito esforço, e nunca tinha dado em nada. Era um fator de stress gigante, que é uma coisa que os meus tumores adoram”, torna a brincar.
Recebeu bolsa para o ano letivo 2015/2016. Lançou-se ao trabalho. A bolsa foi renovada em 2016/2017. Neste ano que agora termina é um entre oito bolseiros da FCT com necessidades especiais. “Espero que seja possível renovar este ano e no próximo para ter a certeza de que consigo concluir o doutoramento. Espero não ter nenhum sobressalto de saúde. Se tiver, posso suspender a bolsa até ficar operacional.”
Quando se lhe pede que fale no que planeou para a vida, diz: “Estou a tentar renovar a bolsa. Quero arranjar um sítio para mim e para a Sofia. Quero criar condições para ter um filho – podem fazer testes a vários embriões e escolher saudáveis para implantar no útero. Quero continuar a trabalhar na investigação. E quero estar num sítio onde a minha saúde possa ser tratada de uma forma mais adequada.”
A esperança de Manchester
Por causa da perda auditiva, em 2014 a geneticista assistente, Ana Beleza, encaminhou-o para o Centro de Medicina Genética dos Hospitais Universitários de Manchester Central. Houve um movimento de solidariedade para tornar a ida a Manchester possível. E em 2015 João, com o apoio do SNS, foi observado por uma equipa multidisciplinar, que discutiu a possibilidade de o submeter a um tratamento de preservação da função auditiva com bevacizumab, um fármaco que não está disponível em Portugal. Quer agora que observem os tumores que estão a crescer de forma acelerada no crânio.
“Eles disseram que só se deve mexer quando há sintomas”, recorda Sofia. É que retirar tumores também tem as suas consequências. A confiança de ambos naquela equipa é absoluta. “Vi um homem, com uns 70 anos, velhinho, muito fofo, com NF2, a andar, com o seu andarilho”, diz Sofia. “Para já, o que eu quero é ser observado”, esclarece João. “Se eles acharem que é mais proveitosos operar lá, tendo em conta a experiência que eles têm com NF2, quero ser operado lá.”
Carla Domingues já o operou duas vezes. Tirou-lhe dois tumores fronto-basais – um em 2014 e outro em 2015. O segundo invadira o osso, perfurara-o, crescera sob a pele. “Abri a base do crânio até à sobrancelha. A incisão foi de orelha a orelha. Tive de rebater toda a pele até vir quase até às sobrancelhas”, descreve. Impossível aproveitar o osso. Teve de reconstruir a estrutura craniana com uma malha de titânio.
Desta vez é diferente. São menigiomas para-falciais da alta convexidade frontal. Estão lá atrás, perto da área que controla a motricidade, a crescer para dentro. A curto-médio prazo terão de ser retirados. E isso levanta vários problemas. “Temos de saber se o vaso sanguíneo está ou não patente. Temos de abrir osso com tumor a invadir”, descreve. Será preciso ligar malha de titânio a malha de titânio. E pensar na reconstrução. “O fechar da pele pode colocar problemas porque ele já foi operado várias vezes.” Não é tudo. “Se a pele não está integra, não temos osso por baixo, temos uma malha de titânio, uma dura-máter que vai ser reconstruída com material sintético, há risco de infecção. E uma infecção no sistema nervoso central é muito difícil de tratar. O primeiro passo é retirar todo o material estranho.” O doente fica nos cuidados intensivos.”
Para que tudo corra bem, é preciso fazer uma angioressonância, um exame para visualizar as artérias do corpo. Garantir monitorização electrofisiológica intraoperatória, isto é, meio de saber se se está ou não a tocar na área motora. E um profissional de cirurgia plástica que, no mesmo acto, possa resolver algum problema de défice de pele. E uma vaga nos cuidados intensivos e não num mero recobro anestésico, do qual se parte para uma enfermaria com bactérias resistentes a múltiplos antibióticos.
“O João tem uma doença rara e complexa e apresenta circunstâncias especiais”, resume a neurocirurgiã. “Não são todos os tumores que invadem o osso. Nem são todos os doentes que têm uma recidiva do tumor atrás do local já operado.” Não ficará por aqui. “Existindo dura-máter, existe possibilidade de ter meningiomas. Ele tem incontáveis e qualquer um deles pode ter um crescimento exponencial.”
Já tentaram mudar-se para o Reino Unido, o país que mais tem atraído portugueses nos últimos anos. Quando um cidadão vai viver para outro país da União Europeia, pode receber tratamento médico nesse país nas mesmas condições que os cidadão nacionais. A Universidade de Manchester abriu a possibilidade de João integrar um projeto de doutoramento, mas ele tinha de ter uma nota elevada num teste de inglês muito pouco amigo de cegos. “Ainda existe uma remota hipótese de isso vir a acontecer”, diz. “Não sou de deixar nada a meio. Vou até esgotar todas as hipóteses que tenho. Não posso desistir. A hipótese é definhar.”
Fonte: Público