sábado, 2 de novembro de 2013

Política educativa madeirense sobre currículos específicos individuais de alunos em processo de transição para a vida pós-escolar

As regiões autónomas fazem parte integrante do todo nacional mas têm determinadas particularidades constitucionalmente reconhecidas, com poderes específicos em determinadas matérias, incluindo nestas a educação. Acontece com frequência que muita da legislação do governo da República é transposta, adotada e ou adaptada às especificidades das regiões autónomas.
Este introdução serve para enquadrar uma situação particular relativa aos alunos com necessidades educativas especiais com a medida de currículo específico individual da região autónoma madeirense. 
A Portaria n.º 1-B/2013, publicada no Jornal Oficial em 13 de janeiro de 2013, da responsabilidade da Secretaria Regional da Educação e dos Recursos Humanos, regula o ensino de alunos com currículo específico individual, em processo de transição para a vida pós-escolar, transpondo quase na integra a Portaria n.º 275-A/2012, do Ministério da Educação e Ciência, que, por sua vez, também regula o ensino de alunos com currículo específico individual em processo de transição para a vida pós-escolar.
Apesar das similaridades entre os documentos, verificam-se algumas omissões e ou incongruências no normativo regional na medida em que, por esclarecimento posterior, a Secretaria Regional da Educação e Recursos Humanos determina que o seu conteúdo se aplica a todos os alunos dos ensinos básico e secundário com a medida de currículo específico individual.
Este assunto carece de uma análise e interpretação técnico-jurídica, embora não seja jurista, e educativa.
A análise técnico-jurídica impõe-se pela natureza da não objetividade textual do normativo. A conflitualidade interpretativa emerge da aparente dificuldade em determinar exatamente o âmbito de aplicação. O normativo aplica-se "aos alunos com necessidades educativas especiais que frequentaram o ensino com currículo específico individual". O uso da forma verbal no pretérito perfeito do indicativo (frequentaram) remete, neste caso, para um passado concluído, ao qual se inicia ou prossegue outra fase posterior. Uma leitura à letra remete leva a concluir que o documento se aplica aos alunos que frequentaram o ensino com a medida de currículo específico individual mas, decorrente do tempo verbal, já não frequentam.
Por outro lado, uma análise comparativa dos documentos emitidos pelo Ministério da Educação e Ciência e pela Secretaria Regional de Educação e Recursos Humanos deteta uma omissão no texto deste último do vocábulo "básico". Com este vocábulo, o texto ficaria "frequentaram o ensino básico com currículo específico individual". Deste modo, a  objetividade de interpretação estaria salvaguardada.
Apesar das possíveis dúvidas, o normativo acrescenta que "A presente portaria regula o ensino de alunos com currículo específico individual (CEI), em processo de transição para a vida pós-escolar" (cf. art.º 1.º). Ora, o processo de transição para a vida pós-escolar inicia-se três anos antes do aluno atingir o limite da escolaridade obrigatória, isto é, aos 15 anos de idade ou no décimo ano de escolaridade.
Acrescenta, ainda, que os alunos identificados acima "frequentam o ensino secundário nos termos da alínea e) do n.º 2 do artigo 28.º do Decreto Legislativo Regional n.º 33/2009/M, de 31 de dezembro, aplicando-se ao incumprimento dos deveres de matrícula e de frequência as disposições legais em vigor", ou seja, remete para os alunos com currículo específico individual no ensino secundário.
Quando a letra da lei não é suficientemente esclarecedora, procuram-se outros elementos interpretativos. Um dos elementos fundamentais é o preâmbulo dos normativos, pois é nele que se contextualiza e se identifica o espírito da legislação, servindo de apoio à leitura e facilitando a sua interpretação. Ora, o preâmbulo do normativo regional refere que é responsabilidade das escolas "assegurar o processo de transição dos alunos com CEI para a vida pós-escolar, complementando esta medida com a implementação do Plano Individual de Transição (PIT), o qual deve iniciar-se três anos antes da idade limite de escolaridade obrigatória". Acrescenta, ainda, que "De sorte, no sentido de orientar os estabelecimentos com ensino secundário da Região Autónoma da Madeira para a conceção, construção e aplicação dos CEI e dos PIT, pelo presente diploma procede-se à definição de uma matriz curricular de referência". O normativo remete sistematicamente para os alunos com currículo específico individual no ensino secundário e em processo de transição para a vida pós-escolar.
Em conclusão, à semelhança do enquadramento educativo continental, o normativo regional destina-se aos alunos com currículo específico individual em processo de transição para a vida pós-escolar (cf. art.º 1.º) que se inicia três anos antes do limite da escolaridade obrigatória.
Na perspetiva educativa, a aplicação do normativo, tal como é sugerido pela Secretaria Regional da Educação e Recursos Humanos, levaria a situações caricatas e levantaria problemas graves de inadequabilidade de conteúdos e de procedimentos e, eventualmente, de direito do trabalho.
Prevê o normativo que se desenvolvam as componentes de desenvolvimento pessoal, social e laboral e de organização do mundo laboral. Laboral?! Em crianças do primeiro ciclo do ensino básico?! Ou mesmo do segundo ciclo do ensino básico?! 
A componente de desenvolvimento pessoal, social e laboral contempla "experiências laborais". Como assim?! Como podem crianças do primeiro ciclo do ensino básico ter experiências laborais?! Com que enquadramento?!
De igual modo, estarão as temáticas de "higiene e segurança no trabalho", "conhecimento do mundo laboral" e "competências socioprofissionais" adaptadas ou adequadas aos alunos do ensino básico?!
Há algo que não bate certo. Como diz a sabedoria popular, neste caso "não bate a bota com a perdigota". Penso que houve um lapso inicial de transcrição e transposição do texto da Portaria n.º 275-A/2013 para o normativo regional, seguido de uma interpretação errada e sem fundamentação coerente. 
Errar é humano. Persistir no erro é... teimosia!

Nota: Nos documentos disponíveis foram omitidos quaisquer referências a pessoas.

1 comentário:

HJTP disse...

Belo texto bem fundamentado. Parabéns!
Horácio