— Quem é [do] escalão A tem o pão da escola.
— Quem é escalão A não paga refeições.
— Os do escalão B pagam metade e quem não tem escalão paga tudo.
— Os do escalão A também não pagam o autocarro se formos a um teatro.
— Eu sou escalão A.
— Eu sou escalão A.
— Eu acho que também sou escalão A.
— Não és nada escalão A! Tu não és pobre!
— Sou mais ou menos pobre...
— Então, és escalão B.
O rapaz a quem “acusam” de “ser escalão B” não esconde a indignação e sussurra ao ouvido do colega:
— Achas que eu sou rico?
Aos 6, 7, 10 anos, ainda não se discutem classes sociais à hora de almoço. Escalões de ação social escolar, sim.
Para quem não sabe exatamente do que estava este grupo de crianças a falar no primeiro dia destas férias de Natal, na cantina da Básica n.º 2 de Massamá, fica uma breve explicação: os escalões de Ação Social Escolar (ASE) estão indexados aos do abono de família. Por exemplo, uma família com duas crianças em idade escolar, que dependa exclusivamente de um único ordenado de até 620 euros por mês (8620 por ano), e não tenha mais património, está no escalão A da ASE. As suas crianças têm refeições e atividades de complemento curricular gratuitas, bem como apoio para manuais e material escolar.
Se o salário for superior a 630 euros, esta mesma família (e sempre desde que não tenha outros apoios) passa a enquadrar-se no escalão B — paga metade do almoço na escola, tem metade do apoio para o resto. Se chegar aos 1260 euros de rendimento mensal, já não é abrangida pela ASE. O que está a acontecer, garantem alguns, é que “os sem escalão” precisam cada vez mais de ajuda. Mas já lá vamos.
Jardins de infância e escolas básicas abertas nas férias, como em Massamá, não é uma novidade. Em alguns concelhos acontece há 10, 20 anos.
Autarquias, associações de pais, instituições particulares de solidariedade social (IPSS) e escolas organizam-se para garantir atividades que ocupem as crianças depois das aulas, ao longo do ano e, em cada vez mais casos, também nas pausas letivas — as famílias, em geral, não têm férias sempre que as crianças têm. “E esta é uma maneira de os meninos não passarem os dias a jogar PlayStation em casa”, diz Filinto Lima, da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas.
É notório que a oferta de atividades nas férias está a aumentar — e, com elas, o número de crianças que as frequentam. E, assim, Filinto Lima diz que a ideia, que de há uns tempos a esta parte começou a passar, de que ter cantinas escolares abertas nas férias significa necessariamente que há meninos com fome em casa, que a escola tem de alimentar, “não é bem assim”. As escolas têm atividades de ocupação de tempos livres (ATL) a funcionar, para dar respostas às famílias que trabalham. “As atividades implicam almoçar e lanchar.” As cantinas tinham “sempre de abrir”.
Um levantamento feito pela Revista 2 revela, contudo, que há mais municípios a aproveitar o facto de as cantinas “terem sempre de abrir”, assegurando as refeições dos meninos que se inscrevem nas ATL ou na chamada Componente de Apoio à Família (CAF), para prestar um outro tipo de apoio. A saber: garantir uma refeição quente a quem é provável que não a tenha em casa. Pelo menos equilibrada, como se quer quando as crianças estão a crescer.
Sintra, Oeiras, Porto, Barreiro são apenas alguns dos que estão a oferecer a possibilidade de os alunos irem à escola durante estas férias de Natal, apenas para almoçar, independentemente de frequentarem ou não os ATL ou a CAF — atividades que implicam, em regra, uma comparticipação dos pais. As refeições são gratuitas para os mais pobres ou rondam os 70 cêntimos para os do escalão B.
“Aproveita-se a existência dos ATL para resolver o problema de alguns elementos e proporcionar-lhes uma refeição”, sintetiza Álvaro Santos, ex-presidente do Conselho de Escolas e atual director da Escola Dr. Joaquim Gomes Ferreira Alves, na freguesia de Valadares, concelho de Vila Nova de Gaia.
Uma "forma encapotada" de garantir almoço
Não há nenhuma entidade no país — nem a Associação Nacional de Municípios Portugueses nem o Ministério da Educação e Ciência — que saiba ao certo quantos meninos se alimentam nas escolas durante as férias. O ministério informa que “a decisão de abrir as cantinas escolares durante o período do Natal é das autarquias”. E a associação dos municípios faz saber que este tipo de levantamentos nunca é rigoroso, por isso não o faz.
A Revista 2 procurou saber até que ponto a realidade que estas férias se vive nos refeitórios abertos traduz um agravamento da situação social das crianças. O critério foi este: começámos por contactar as câmaras municipais dos 25 concelhos com mais população e as dos 25 com menos população. A todos se pediram números — tarefa difícil, porque nem todos os fornecem.
Para além disso, analisaram-se as notícias publicadas nos últimos meses que davam conta da preparação de programas para as pausas lectivas em alguns municípios, que não faziam parte da lista inicial de câmaras a contactar. A amostra final é de 58 concelhos. A síntese das respostas pode ser consultada no mapa que encontrará nestas páginas.
Primeira conclusão: neste Natal, só nos concelhos que responderam, mais de 33 mil crianças alimentam-se diariamente na escola.
Nos concelhos menos populosos é mais frequente que as cantinas fechem. Em Vila Velha de Ródão, por exemplo, a câmara informa que “não há nenhum caso de carência que justifique a abertura” da cantina e que, mesmo que houvesse, a situação seria “encaminhada para a Santa Casa da Misericórdia”. Em Freixo de Espada à Cinta, o refeitório também não abre. O mesmo em Marvão ou Barrancos.
Na maioria dos casos, os programas que incluem alimentação estão disponíveis para alunos do pré-escolar e do 1.º ciclo do ensino básico — os níveis de ensino que estão sob alçada das câmaras.
Para alguns concelhos, estas férias de Natal foram mesmo uma estreia, com os refeitórios escolares a abrir pela primeira vez. É o caso da Pampilhosa da Serra. Ou de Santo Tirso, que, durante dez dias, tem atividades pedagógicas e de animação para os miúdos nas escolas, suportando a câmara o custo das refeições. O presidente da autarquia, Joaquim Couto, não esconde que o programa de atividades a que chamou Mimar pretende, “de forma encapotada”, criar condições para continuar a servir uma refeição quente que, de outro modo, não chegaria “a um conjunto razoável de crianças”.
A situação é muito diversa, de concelho para concelho, como se verá. Há casos em que programas especificamente pensados para assegurar almoço a alunos carenciados não tiveram procura e foram cancelados, como em Ovar (aqui, as cantinas só abrem para os meninos que frequentam o CAF). Ou em Setúbal, onde, em 2011, as cantinas também chegaram a abrir, mas “com pouca ou nenhuma frequência”, faz saber a autarquia.
Há outros, contudo, onde as crescentes dificuldades dos alunos e das suas famílias são denunciadas por todos aqueles que lidam com eles. “O nosso agrupamento escolar vê-se confrontado, todos os dias, com situações de carência grave. Os almoços nas interrupções letivas são mesmo para suprir a falta dessa refeição em casa”, diz, por exemplo, Maria José Tavares, diretora do Agrupamento de Escolas Professor Óscar Lopes, em Matosinhos.
Ao gabinete desta professora, chegam, todos os dias, casos de crianças que vão em jejum para a escola, de famílias sem trabalho e de divórcios que desorganizam os orçamentos domésticos. “Somos muito abordados na rua. Falam-nos em problemas de alimentação, nos escalões da ASE que não estão ajustados”, afirma também Sónia Mendes, presidente da associação de pais numa das escolas do concelho.
"Há sempre a família alargada..."
A Escola Básica da Telha Nova I é a maior escola com pré-escolar e 1.º ciclo do Barreiro. Visitamo-la no 3.º dia de férias do Natal, ao meio-dia. A cantina tem várias salas. Numa, estão os pequenos do pré-escolar, que por esta altura ainda não estão de férias (o calendário escolar é diferente do calendário do ensino básico) com as suas batas de xadrez. A maioria come sem problemas. Mas há sempre um ou outro que cospe a sopa de legumes para cima da mesa. Sempre os legumes... Blargh!
Noutra sala, a mesa está posta para um pequeno grupo de alunos mais velhos. Estão de férias. A maior parte diz que, por estes dias, passa a maior parte do tempo em casa, a jogar no tablet ou no telemóvel da mãe e a ver televisão. Mesmo quem diz que tem os pais desempregados, e vem à escola só para comer, fala dos tablets e dos smartphones “com a maçã atrás” que existem lá em casa. Ou que ainda não existem, mas gostavam de ter tido neste Natal.
Perto do meio-dia, saem de casa e põem-se a caminho da escola para comer, uns levados pelos pais, outros sozinhos.
A Luísa, 8 anos, uma menina de cabelos claros e casaco cor-de-rosa, trouxe-a o pai:
— É melhor comer na escola do que em casa porque em casa há pouco dinheiro para comprar comida. Na escola, há fruta e outras coisas. Foi por isso que o meu pai e a minha mãe me puseram [a comer] aqui.
Não tem tablet para jogar. Mas ocupa o tempo com várias outras coisas. Esta manhã, por exemplo, antes de vir para a escola, esteve a ajudar a mãe “a tirar cobre de dentro de televisões estragadas”. São televisões que o pai encontra no lixo ou que “as pessoas lhe dão”. Em casa, continua Luísa, abrem-nas, metem o cobre dentro de uma caixa “para ver quanto aquilo pesa”, depois vão ao ferro-velho e vendem “para ganhar algum dinheiro”.
O pai e a mãe de Luísa estão desempregados. A mãe do Henrique, de 9 anos, que está sentado mesmo ao lado, também. As professoras elogiam-no — é muito autónomo, todos os dias faz o pequeno-almoço sozinho, prepara-se e vai para a escola, também sozinho. Ele confirma, sentado à mesa, muito direito, a comer como um crescido.
Esta manhã acordou, fez o pequeno-almoço — “tostas e leite com café” —, vestiu-se e foi ver televisão. Depois foi jogar à bola com a irmã, que tem 1 ano. Até que chegou a hora do almoço. Diz que não gosta muito desta ideia de ter de sair de casa de propósito para ir comer à sua escola. “A minha mãe está desempregada e é um bocado mau porque assim não ganha dinheiro para comprar comida e roupa.”
Susana Santos, da Rumo, a cooperativa que trata das refeições das escolas do concelho, conta que tem conhecimento de pais que não inscrevem os filhos para as refeições, durante as férias, “para não os expor”. Nesta escola, não há que enganar: o ATL não está a funcionar durante a pausa letiva (custava 35 euros e não houve inscrições) e quem vai à escola e já não tem idade para andar no pré-escolar, é mesmo porque precisa de lá ir comer.
A diretora do agrupamento a que pertence a Telha Nova I, Arlete Cruz, não acredita que as crianças carenciadas que não vão à cantina nas férias passem mal. “Podem é não ter uma refeição completa, tão equilibrada”, explica. “E, depois, há sempre a família alargada — as pessoas organizam-se, os meninos comem nos tios, nos avós...”
Está convencida de que a situação é pior nas escolas secundárias do concelho, onde tem encontrado mais famílias com problemas mais graves. Aí, um programa deste género faria ainda mais falta, mas acredita que os jovens não iam aderir. “Nessas idades têm mais vergonha.”
É o que diz Álvaro Santos. Na sua escola, em Valadares, a cantina não abre. “Não é porque não haja necessidade. É porque nestas idades já há alguma vergonha. Às vezes, os pais querem e os miúdos não querem. Mas as famílias vão-se organizando para encontrar outras soluções. Nesta zona, ainda há laços muito fortes dentro das famílias.” Para além disso, acrescenta, têm surgido um conjunto de outras respostas sociais na freguesia. Acredita que não há quem fique sem rede.
"Repetem muito, muito mesmo"
Matosinhos é dos poucos casos em que as refeições dos alunos dos 2.º e 3.º ciclos e ensino secundário também são comparticipadas pela autarquia. “É uma especificidade de Matosinhos: nós acolhemos todos os alunos”, sublinha Correia Pinto, vereador da Educação. Confirma, contudo, que os do secundário se sentem mais inibidos por “recorrer a uma solução desta natureza e normalmente almoçam depois dos outros”. Ainda assim, há três anos, eram menos de 10, hoje são 20.
Visitámos a cantina da EB1 da Cruz de Pau — uma das 19 que funcionam nestas férias no concelho — na primeira semana de férias. A cozinheira Ana vai enchendo os pratos. Filetes de pescada, dois para os mais crescidos, um para os mais pequenos, arroz de cenoura, brócolos — muitos brócolos vão ficar no prato. Há legumes especialmente mal-amados, que custam a engolir.
Há também cenoura ralada. E, para a sobremesa, gelatina de morango.
A cantina recebe as 43 crianças que frequentam o pré-escolar e, à hora de almoço, o número de alunos duplica — chegam mais 42, todos carenciados, de acordo com a câmara, que, durante estas férias, só vão à escola, entre as 12h30 e as 13h30, para almoçar. Chega João, 13 anos, com a irmã, de nove — ele já foi aluno desta escola, agora está noutra, a frequentar o 6.º ano. Chega José, de 8, com a irmã, Francisca, de 5. Francisca não gosta da sopa (“É sempre a mesma”, queixa-se, “não é sempre a mesma”, garante o irmão) e tem de ser a funcionária Célia Silva a ajudá-la a comer.
João conta que vai à escola almoçar “para não ficar sempre em casa”. E que um dia quer ser cozinheiro — em casa já ajuda a mãe.
— Ponho a massa, faço aletria, ajudo a fazer arroz.
Apesar de hoje o almoço ser peixe, esperam-se alguns pedidos para repetir a dose. É sempre assim nesta sala envidraçada, não há muitas esquisitices à mesa. “Repetem muito, muito, muito, mesmo muito”, garante Célia, que também trata dos registos das refeições num caderno de linhas e capa preta onde escreve o nome dos alunos. De ano para ano, nas interrupções letivas, há cada vez mais cadeiras do refeitório ocupadas e mais pratos retirados dos armários. A cozinheira Ana diz que sabe o que isso significa. “Fico um bocado triste, mexe sempre connosco.”
No concelho de Matosinhos, há três anos que os refeitórios escolares estão abertos nas férias de Natal e da Páscoa e desde que as aulas terminam, depois de mais um ano de escola, até ao fim do mês de Julho. Nestas férias de Natal, 19 refeitórios estão a funcionar. Além dos 262 alunos referenciados como carenciados (em 2010 eram apenas 36), recebem mais 314 crianças do ATL, a maioria não carenciada. O serviço é gratuito para quem não pode pagar.
O aumento de miúdos de famílias com poucos rendimentos é, para o vereador, um sinal de que “as dificuldades das famílias estão a crescer”. E, atualmente, a câmara já suporta uma fatura de cerca de 5000 euros por nove dias de almoços. “É uma quantia que não tem grande significado no orçamento da câmara. São trocos para os benefícios que a medida representa para tantas crianças e jovens”, afirma Correia Pinto.
Raros são os dias em que o vereador não recebe pedidos de famílias para acionar o apoio da ação social escolar ou para mudanças de escalão porque os rendimentos emagreceram. Processos que podem demorar três meses. “E a criança tem de comer.” Por isso, as escolas receberam indicação para que nenhuma criança deixe de almoçar. Mesmo se o processo demora.
As famílias escondem-se
Em Massamá, Mário e os amigos estão imparáveis. Estiveram a manhã toda com atividades — que tanto podem passar por estudar Matemática como por jogar à bola. Mas estão longe de parecer cansados.
Para a maioria, vir para a escola em tempo de férias, mesmo significando isso acordar à hora de sempre, não é problema. Gostam. Mas, com o refeitório ainda em rebuliço, é de comida que se volta a falar. Sabem perfeitamente o que é saudável e o que não é — na escola, há a preocupação de passar a mensagem. “Os legumes fazem bem.” “A sopa faz falta.” Mas é do que é suposto ser menos saudável que falam.
— A minha avó faz lasanha e aqui na escola não [há]. E pizza...
— E McDonalds...
— Não gosto da comida da escola porque não há pizza.
— Na minha casa, como lasanha muitas vezes. A minha mãe e o meu irmão gostam muito de lasanha.
— Eu às vezes só como flocos ao jantar. Eu e o meu irmão não é nada raro comermos flocos.
Há dez anos que os refeitórios escolares funcionam em Sintra no Natal, para as crianças dos ATL. No ano passado, os alunos carenciados (os dos escalões A e B da ASE de que falavam Mário e os amigos) passaram a poder almoçar no refeitório escolar nas férias, mesmo sem estarem nos ATL. Este ano, o novo executivo, liderado por Basílio Horta, foi mais longe: os familiares directos dos alunos que quiserem aparecer — pais, irmãos, avós — também podem inscrever-se para almoçar na cantina, durante a quadra natalícia. Cerca de 18 mil folhetos com esta informação foram enviados para as casas dos alunos.
A refeição é constituída por sopa, prato de carne ou peixe, salada, doce ou fruta. É gratuita para alunos carenciados inseridos no escalão A, custa 73 cêntimos aos do escalão B e 1,46 euros aos não carenciados. Para os “familiares” que acompanhem os alunos nestas férias, o preço é de 1,46 euros para crianças e 3,80 euros para adultos.
No dia 18, uma quarta-feira cinzenta, 1.º dia de férias do Natal, o recém-eleito presidente vai à escola de Massamá falar publicamente do iniciativa, enquanto os miúdos se divertem com o aparato das câmaras dos jornalistas. “Há muitas carências alimentares no concelho, isto é apenas o pico do icebergue. As pessoas às vezes olham para Sintra e veem a serra, a vila histórica, os palácios e as quintas, mas também há Massamá, Queluz, Monte Abraão, a tapada das Mercês. Muitas pessoas que aqui vivem procuraram esta zona porque as rendas eram mais baratas do que em Lisboa e queriam viver melhor. Mas o empobrecimento do país sente-se imenso”, explica Basílio Horta. “Devemos ter mais de 30 mil desempregados. E temos o maior número de jovens, 66 mil, e o maior número de jovens em risco, seis mil”, prossegue.
A câmara diz que recebeu 100 inscrições de familiares de alunos para a nova modalidade de apoio — comer em alguma das escolas do concelho. Na Básica n.º 2 de Massamá, que Basílio Horta visita, apenas três apareceram no primeiro dia de férias. Não por necessidade, garantem: uma mãe diz que esta é uma maneira de poder conhecer melhor a escola, as funcionárias e a cantina onde todos os dias come a filha. E trouxe o outro filho mais velho, que também já andou na n.º 2 e quis matar saudades.
Outro pai, Paulo Bernardo, 49 anos, conta que achou “piada” à ideia de comer na cantina com a filha — e inscreveu-se para ir dois dias. Não mais. “Acho que as famílias que tiverem mesmo dificuldades não virão. Escondem-se. Vão às 11 da noite buscar comida à paróquia de Massamá. Às 11, para não serem vistas”, diz, enquanto a filha Diana o puxa pela mão para ir para a mesa.
Rui José da Costa Pereira, vice-presidente da Câmara de Sintra, sublinha que não se pretendeu desenvolver um programa estigmatizante. “É também um programa de melhoria da alimentação — redução do sal, reintrodução do hábito de comer sopa, que muitos crianças já não têm, de comer vegetais, saladas. A vinda cá dos pais é útil também para percepcionarem essas estratégias, para que as possam reforçar em casa.”
Os números fornecidos pela autarquia são reveladores do aumento dos miúdos que nas férias vão à escola comer — nomeadamente dos que são considerados carenciados: no ano passado, serviram-se nas cantinas de Sintra, durante as férias do Natal, 47 mil refeições. Este ano deverão ser 60 mil.
No total, estima-se que cerca de 3850 crianças se alimentarão nas escolas do concelho, ao longo desta quadra, umas integradas nos ATL e Centros de Estudo, outras não. Destas, quase 60% são consideradas carenciadas, porque estão no escalão A ou B da ASE — é um aumento de 27%, em apenas um ano. “E se calhar para o ano ainda vai ser mais”, diz Basílio Horta.
Muitos só vão porque os pais estão a trabalhar
Quando terminam os últimos acordes da canção natalícia, as crianças da Escola de S. Tomé de Negrelos, em Santo Tirso, atiram-se para o chão. É quase hora de almoço e a música é um pequeno ritual antes da refeição, assinalando o final das atividades da manhã.
Em cima das oito mesas rodeadas de cadeiras verdes estão os desenhos feitos durante a manhã pelos alunos — personagens de desenhos animados, casas e, sobretudo, árvores de Natal. No fim da cantiga correm em direção à cantina e param à porta, abruptamente. Ninguém diz uma palavra, mas os alunos do 1.º ciclo parecem lembrar-se de repente das regras da hora de almoço: fazem uma fila junto à entrada ou aproveitam um banco corrido para descansar do último sprint de brincadeira e esperam pela sua vez.
São 12h15 e os primeiros pratos de sopa estão a ser servidos. A ementa de hoje começa a ser anunciada: à sopa, seguir-se-á peixe estufado, acompanhado por arroz e salada de tomate. Diana torce o nariz. “Gosto mais de carne.”
É aluna do 4.º ano, mas habitualmente frequenta a escola de uma freguesia vizinha. Por isso, o programa Mimar, lançado pela Câmara de Santo Tirso neste Natal, é uma descoberta para ela. Diz que gosta da experiência de, durante uns dias, poder ir para uma escola diferente e fazer coisas diferentes do habitual. Há oficinas de pintura, pastelaria, dança ou karaté, bem como um programa de visitas a instituições e monumentos do concelho, que incluem uma escola agrícola, uma IPSS, um jornal local e até o Desportivo das Aves, que milita na 2.º liga do futebol nacional. A cantina da escola de Negrelos é outra novidade: “É muito grande, na nossa escola só somos 32 alunos.” Aqui, são mais de 100.
Ao seu lado, Helena, aluna do 2.º ano, ouve-a com atenção. Também não está entusiasmada com o prato do dia. Tinha preferido a carne do dia anterior, mas gosta da comida da escola “mais do que da de casa”, confessa. Diana e Helena não se conheciam até à véspera. São de escolas diferentes. Estão juntas aqui por causa do Mimar.
O facto de poderem conviver, nas férias, na mesma escola, alunos de várias zonas do concelho, é descrito pela professora Paula Torres como uma das coisas “bonitas” do programa. Estão inscritos 750 alunos, pouco mais de um terço do total da população do 1.º ciclo no concelho, que a autarquia decidiu juntar em oito centros escolares, para criar alguma economia de meios. “Pensamos em organizar um programa que permitisse que as crianças viessem à escola e pudessem ter a mesma qualidade de atividades que têm durante o período escolar”, explica o presidente da câmara, Joaquim Couto. Ao mesmo tempo, garantem-se as refeições a quem eventualmente não as teria. O investimento é de 50 mil euros.
A câmara contratou também duas nutricionistas para fazer o acompanhamento das dietas das escolas, de modo a compensar algum desequilíbrio que possa haver em casa. Em Santo Tirso, metade dos alunos do 1.º ciclo do concelho estão dentro dos dois escalões de apoios sociais definidos pelo Estado. E, entre os inscritos no Mimar, um quarto tem escalão A. O que não se estranha se tivermos em conta que o concelho está no vale do Ave, uma das zonas do país mais afetadas pela crise. O desemprego ronda os 20%.
André Sousa, presidente da associação de pais da EB1 da Aldeia Nova, numa freguesia vizinha, conhece muitos desses “casos problemáticos”. “Se não fosse este período, havia crianças cuja alimentação não seria a ideal”, sublinha. Nota contudo que nem todos os alunos que estão inscritos o fazem por motivos económicos. “Uns vêm porque têm os pais a trabalhar, outros porque querem fazer mais do que ver TV e jogar consola. Há aqui uma aprendizagem importante para eles.”
Vera Barroso, mãe de um aluno do 1.º ano, está desempregada e diz que podia ter o filho consigo durante as férias, mas nem pensou “duas vezes” quando lhe explicaram o que estaria disponível: “Nem todos os miúdos têm acesso a atividades destas” se a escola não as proporcionar, sublinha esta mãe.
"A fome é das situações mais complexas que temos"
Foi em 2005 que o Ministério da Educação definiu as regras de financiamento aos municípios para que as refeições escolares se generalizassem a todo o 1.º ciclo. Mas, nota a Câmara do Seixal, as comparticipações do ministério não contemplam as pausas letivas.
Mas no Seixal, como noutros locais, é o município que assume a despesa nessas alturas. Neste Natal, espera fornecer 520 refeições por dia.
Várias câmaras têm, aliás, alargado o seu raio de ação. Em Vila Nova de Gaia, calculava-se, na semana passada, que cerca 1800 crianças iriam frequentar o “projeto de interrupção letiva”, que inclui alunos do pré-escolar, 1.º ciclo e também do 2.º ciclo. A inscrição nas atividades custa entre 2,5 euros e 10 euros. Cerca de 40% dos alunos são do escalão A ou B da ASE (ou seja, não pagam almoço ou pagam metade). É um aumento de quase 30% em relação ao ano passado.
Em Arronches, o município entendeu igualmente fornecer nesta quadra refeições a alunos do 1.º e 2.º ciclos que frequentem o Centro Lúdico Municipal, e não apenas às do pré-escolar, como era habitual. E, no Porto, há um programa para refeições que abrange irmãos, até aos 10 anos, dos alunos das escolas. Mesmo que não estejam inscritos na rede pública de ensino.
— Posso repetir a dose?
José, 13 anos, come de forma tão rápida como fala. O almoço — massa com frango — servido na cantina da antiga Escola Primária de Olhão desaparece num ápice. A salada (alface e tomate) que acompanha a refeição fica de lado.
— Não gosto de salada.
É, já sabíamos, uma frase recorrente.
José integra o projeto designado por Craques da Rua, uma experiência lançada há cinco anos pela autarquia, com o objetivo de ocupar os tempos livres das crianças oriundas dos bairros sociais dando-lhes condições para a prática desportiva, de forma gratuita. O rapaz, que os colegas dizem ser mesmo um craque, mas que quer ser empresário, e não futebolista, é um dos que frequentam as sete cantinas abertas no concelho durante estas férias. Estão inscritos 67 alunos. Mais 20% do que no ano passado. “São todos oriundos de famílias de fracos recursos económicos”, diz o presidente da câmara, António Pina.
Constatando que, “no atual momento, em que o país passa por um período de dificuldades económicas e sociais, se verifica um aumento de carências alimentares em crianças e jovens que frequentam as escolas, situação que exige intervenção com medidas concretas com o objetivo de resolver esses casos”, o Governo lançou no ano letivo passado o Programa Escolar de Reforço Alimentar (PERA).
O objetivo primeiro do PERA é sinalizar (com “discrição”, como se lê nas orientações do programa) alunos com carências alimentares, que vão para a escola sem pequeno-almoço, e garantir-lhes a primeira refeição do dia, todos os dias de escola. Em julho, foram apresentados os resultados do primeiro ano da medida. E são impressionantes: 50% dos 10.186 abrangidos viram o seu aproveitamento escolar melhorar.
Mas o que se passa nas férias letivas, com os alunos abrangidos pelo PERA? Quem garante que o fecho da escola não representa uma deterioração da alimentação das crianças?
Segundo o Instituto de Segurança Social (ISS), nas últimas férias do Natal, nas da Páscoa e nas do Carnaval, 835 alunos do PERA foram apoiados “no âmbito das cantinas sociais” — uma outra resposta que o actual Governo criou no âmbito do Programa de Emergência Social que consiste na assinatura de protocolos com IPSS que têm cantinas nos seus lares de idosos, centros de dia, creches e afins, pagando-lhes para fornecerem também refeições take away a famílias pobres.
Nas férias de Verão, os agrupamentos escolares sinalizaram 2726 alunos ao ISS como podendo precisar de ser acompanhados. Estudados os casos, concluiu-se que 1523 já beneficiavam através dos respetivos agregados familiares de outros programas ou apoio. Ou seja, estavam integrados em famílias que se alimentavam com refeições fornecidas por cantinas sociais ou que recebiam alimentos através do Programa Comunitário de Ajuda Alimentar a Carenciados. Alunos integrados em famílias com Rendimento Social de Inserção (RSI) também eram contabilizados como já estando enquadrados por alguma medida.
Havia, contudo, 1114 crianças e jovens que precisando de pequeno-almoço em tempo de aulas, se arriscava a ficar à margem de qualquer apoio em tempo de férias. Sendo o segundo objetivo do PERA encaminhar as famílias dos alunos com carências para as respostas sociais mais adequadas, quando elas não foram ainda acionadas, foi o que aconteceu com cerca de 400 destes alunos — as famílias passaram a receber RSI, ou a frequentar cantinas sociais, por exemplo.
Mas uma grande parte — 700 alunos — recusou ajuda, informa o ISS. É impossível avaliar que soluções encontraram. “Isto não é o Biafra”, sublinha várias vezes uma assessora de uma das câmaras contactadas por estes dias. Quer assim enfatizar a ideia de que abrir os refeitórios escolares nas férias não é um sinal de fome generalizada — até porque há muitas outras medidas públicas a funcionar em tempo de crise.
Não sendo, evidentemente, o Biafra, Correia Pinto, o vereador que tem a pasta da Educação em Matosinhos, não tem dúvidas: “A fome é das situações mais complexas que temos e os miúdos, como sabemos, não têm capacidade de lutar pela resolução do problema.”
Nota: Na generalidade dos casos, os nomes dos alunos citados nesta reportagem são fictícios.
Por Andreia Sanches, Idálio Revez, Samuel Silva e Sara Dias Oliveira com António José Rodrigues, Carlos Dias, Graça Barbosa Ribeiro, Idálio Revez, Inês Boaventura, Jorge Talixa, Marisa Soares, Ricardo Vilhena