sábado, 6 de julho de 2013

Austeridade: o programa segue dentro de momentos?

Martin Wolf, um analista do Financial Times, acaba de publicar um interessante artigo sobre um tema que começa a ser recorrente: o não funcionamento da austeridade. Desta vez o exemplo vem do Reino Unido mas a receita é internacional. Na verdade, em Portugal, fomos aconselhados (obrigados?) a seguir uma receita de cortes nas “gorduras” da nossa despesa (é muito sugestiva esta imagem dietética e higiénica das “gorduras”…).

O que vamos constatando é que afinal os cortes nas gorduras eram insuficientes e daí que os cortes principais acabaram por incidir sobre a febra. Quer dizer, a receita foi cortar nas partes mais nobres do nosso sistema de organização coletiva: a saúde, o serviço público, a cultura, a educação, o apoio aos aposentados, etc. As gorduras eram, afinal, febra e a tal austeridade acrescentou problemas adicionais aos problemas que já tínhamos. Não só nos confrontamos com a doença (o deficit) mas ainda temos que sofrer os efeitos de um medicamento manifestamente errado e com o prazo de validade vencido. A austeridade, a receita que nos deram para a nossa “doença”, para além dos malefícios conjunturais que provoca, apresenta uma incompatibilidade essencial com o sistema económico e financeiro no qual vivemos. Por três razões:

1. Antes de mais por causa da desigualdade. Um dos maiores problemas que impede a prosperidade e o desenvolvimento - e que tem sido, aliás, identificado pelas organizações transnacionais como a ONU ou a OCDE -, é a desigualdade. Quer dizer que as nossas sociedades “de mercado” ou capitalistas estão minadas de desigualdade, criam desigualdade. E quanto menos desenvolvida é a sociedade maior é a desigualdade. Por isso Portugal é das sociedades mais desiguais da Europa. Ora quando se trata de cortar, são os gastos que se destinavam a diminuir e a atenuar o impacto da desigualdade que são os primeiros da lista. Os gastos “bons” são com o mercado, os gastos “maus” são com a solidariedade. Logo, a austeridade tem como consequência o aumento da desigualdade e consequentemente da conflitualidade social.

2. A austeridade é contra a natureza expansionista dos nossos sistemas de mercado e de capital. Os sistemas económicos de mercado têm inerente a lógica do crescimento permanente. Um sistema “saudável” tem de crescer e quanto mais cresce melhor. Se a produção de vinho aumenta, isso é normal mas, se num ano, a geada afetou a produção das uvas, isso é uma catástrofe. Crescer e crescer sempre, e continuadamente. Se esta lógica de insuflação for quebrada, o sistema colapsa. Não é válida a opção de manter o crescimento no ponto em que se está, ou mesmo de diminuir um pouco. Se não cresce, morre.

3. A austeridade não funciona, porque não é uma opção, é uma desgraça. Se fosse uma opção podíamos pensar que se tratava de uma oportunidade de transferência de investimentos. Por exemplo, é difícil pensar como é que a austeridade não tem qualquer influência na inversão de curso do desastre ecológico para que o crescimento desenfreado vai conduzir os nossos filhos e netos. Se a austeridade fosse uma opção poderíamos pensar onde e como deveríamos colocar a nossa energia e os nossos recursos para criar sociedades mais solidárias, com maior enfase na educação, como melhores e mais equitativos cuidados de saúde e com uma atenção ecológica mais determinada. Mas o que a austeridade nos diz é que tudo está certo, que o rumo de crescer é este mesmo… a única coisa que falta é dinheiro. “O programa segue dentro de momentos”.

Não é, pois, de estranhar que tanto se fale no falhanço da austeridade. A austeridade é incompatível com o nosso sistema económico. Ela afeta as medidas que tentam atenuar a desigualdade, conduz o sistema económico à recessão e não permite repensar das opções de desenvolvimento.

Por isso, todas as entidades e vozes que a glorificaram como solução, fazem agora o seu ato de contrição. A austeridade deixou de ser uma opção para a troika, para o Governo, para os partidos que apoiam o Governo e para os comentadores. Ficam agora duas questões para serem respondidas: a) a de saber quanto tempo e energia nos custará para construir aquilo que foi derrubado e b) se teremos líderes capazes de curar esta ferida e sobretudo aproveitar esta austera desventura para corrigir erros que temos cometido nas nossas opções de desenvolvimento.

David Rodrigues 
Professor universitário e Presidente da Pró – Inclusão – Associação Nacional de Docentes de Educação Especial.

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