O dia 5 de Outubro assinala, para além da implantação da República, o Dia do Professor.
É, por isso, uma data que se presta a discursos em que se mistura a defesa da ética republicana, o apelo ao exercício de uma cidadania plena e, por acréscimo, o elogio do papel da Educação na formação de cidadãos conscientes, críticos e capazes de fazer viver o regime democrático para além das suas limitações circunstanciais. Pululam as referências à defesa da Escola Pública, as declarações de boas intenções e os elogios desmedidos que escasseiam no resto do ano.
Neste 5 de Outubro, o primeiro em mais de um século que não é considerado feriado, o discurso do Presidente da República tocou em todos estes pontos, acrescentando-lhes uma passagem sobre “o papel insubstituível dos professores” e mais alguns elementos sobre a necessidade de promover a “ética republicana” e ter em atenção a História e a Memória Colectiva.
É algo que fica bem, até porque há poucos dias um novo estudo comparativo a nível internacional (Global Teacher Status Index) revelou mais uma vez que a confiança dos portugueses nos seus professores está muito acima da que atribuem a outras profissões ou actores sociais e ao próprio sistema de ensino no seu todo. Ao contrário do que alguma opinião publicada se vai esmerando há anos a tentar provar, a população comum, a que conhece os professores no seu trabalho diário e vai para além de tertúlias muito esclarecidas, tem bastante confiança no seu desempenho e está longe de ter, como em tempos desejou uma ministra do sector, sido convencida pela retórica de governantes ocasionais nas suas sucessivas guerras com a classe docente.
O problema é que a defesa da cidadania e o apelo ao seu exercício pelas gerações futuras não pode fazer-se ao mesmo tempo que se prolonga um constante ataque directo e indirecto às condições materiais e simbólicas do exercício da docência. Quando se apela ao contributo que todos devem dar para suplantar a situação de crise e à necessidade de equidade na participação de todos no processo, é bom que se reconheça que há quem já contribua há muito e de diversas formas, enquanto outros não o fazem e se refugiam em direitos contratuais adquiridos que não admitem como válidos para outros. Mais grave, quando há quem procure encontrar na Educação apenas o lucro, a hipótese de negócio, a mercantilização de uma função nobre, faltando-lhes o sentido ético e o apego à transparência de processos e argumentos.
Atravessamos um período conturbado no qual o relativismo dos conceitos impera e as palavras são usadas de modo instrumental, arremessadas como armas ocasionais e não como algo com um significado próprio. Liberdade, democracia, cidadania, são conceitos que vão sendo manchados a cada vez que são mal usados, truncando ou distorcendo o seu real significado. Os professores têm como parte da sua missão ensinar e exemplificar o que eles significam, nem que seja do ponto de vista da História. Mas, infelizmente, o tempo presente tinge de incredulidade os olhos dos alunos que, pelos exemplos quotidianos que lhes são dados a cada noticiário, desacreditam da eficácia do exercício da cidadania e da vida democrática. O que é dramático.
É função, explícita ou implícita, dos professores não deixar erodir em definitivo a crença das futuras gerações na bondade da democracia, na possibilidade de uma liberdade vivida com justiça e no imperativo de comportamentos éticos, praticados para além de credos ou interesses particulares. O ofício de professor e o papel da escola são nucleares para a preservação da coesão social e para formar uma segunda barreira (a primeira deveria existir em torno das tão evocadas “famílias”) contra a exclusão social, seja por via do acesso ao conhecimento, seja por via da socialização das crianças e dos jovens, e contra a descrença na vida democrática.
Infelizmente, o seu trabalho é dificultado a cada dia, quase a cada noticiário, pelo exemplo degradante de quem tem do exercício de funções públicas uma noção estreita, facciosa e com uma perturbadora relação com a verdade, o rigor e a transparência, como se a manipulação, truncagem ou falsidade dos factos deixasse de ser mentira para se tornar mero detalhe de inadequação factual.
Mas há que continuar a fazer esse trabalho fundamental de promoção da cidadania, apesar de todos os constrangimentos, ameaças e pressões. Só assim a verdadeira liberdade será possível e será encarada como um valor a preservar logo que nos libertemos deste claustrofóbico presente.
Paulo Guinote
Professor do ensino básico e autor do blogue A educação do meu umbigo.
In: Público
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