O guião para uma alegada reforma do Estado foi uma novela política ao pior estilo de qualquer drama televisivo e com muito menor qualidade no enredo do que os antigos folhetins de pé de página dos jornais de início do século XX.
Começou por ser um desígnio central do Governo, passou a ser um pretexto para todo o tipo de cortes feitos na administração pública e culmina agora com uma espécie de one-man-show. Ao longo deste processo conheceram-se arranques, recuos, hesitações, contributos, tudo envolto em muita inabilidade política, incompetência técnica, em falácias argumentativas e dados truncados. Com cem, dez ou mil páginas a suportá-lo, o presente guião aparece porque era preciso aparecer qualquer coisa. A sua credibilidade é nula, pois o assunto é demasiado sério para ser tratado por uma terceira ou quarta escolha para guionista e apresentado para cumprir calendário.
A apresentação feita por Paulo Portas foi hesitante, vaga, medrosa, cheio de lugares-comuns, com contradições nos argumentos e entre a fundamentação (ferramenta para a recuperação da soberania) e a cronologia proposta (tarefa para depois da presença da troika em Portugal) e a tentativa para esconder propostas que estão no documento. Portas afirmou que reformar é diferente de cortar e que equivale a melhorar e a qualificar a administração pública. O problema é que não faz ideia de como isso se faz para além de fórmulas ideológicas e da necessidade de satisfazer clientelas. O caso da Educação é sintomático da mistura explosiva entre ideologia impermeável às evidências empíricas e interesses económicos particulares.
Na área da Educação o objectivo é privatizar ao máximo a gestão das escolas, sem que estejam provados os seus efeitos positivos na qualidade do serviço público. As medidas propostas passam pela municipalização das escolas para além do 1.º ciclo, pelo aumento dos contratos de autonomia, por escolas independentes criadas por professores num modelo cooperativo, pelo reforço dos contratos de associação com o argumento dos resultados nos rankings(quando estes são dominados pelas escolas privadas sem contrato), por uma implementação prudente do cheque-ensino e pelo alargamento do ensino profissionalizante a 50% dos alunos no ensino secundário.
Como em muitas outras matérias, trata-se de querer implementar opções ideológicas. Sem que estejam demonstradas as suas vantagens para o país.
A medida considerada mais inovadora neste contexto é a da existência de escolas ditas “independentes”, alegadamente a ser geridas por grupos de professores que contratualizariam o uso das instalações de uma escola pública para um projecto educativo específico e diferenciado. A hipocrisia discursiva afirma que “essa oportunidade significa uma verdadeira devolução da escola aos seus professores e garante à sociedade poder escolher projectos de escola mais nítidos e diferenciados” (p. 73 do guião).
Ora… devolver a escola aos professores não é isto. A menos que os nossos governantes liberais se tenham subitamente tornado colectivistas defensores de cooperativas ou da recuperação do modelo colegial da gestão democrática das escolas. Mas para isso bastaria flexibilizarem a legislação sobre administração escolar. Estas escolas “independentes” são um híbrido mal explicado entre uma escola pública com contrato de autonomia e uma escola privada com contrato de associação. É um equipamento público gerido de forma privada, alegando-se que isso é feito por “um grupo de professores”, mas não se percebendo se são da própria escola, de outra, se devem ter necessariamente vínculo ao Estado ou não.
O que isto significa, na realidade, é a porta de entrada para a alienação dos estabelecimentos públicos de ensino e a entrada de grupos económicos privados na gestão directa da rede pública, usando um “grupo de professores” como testas de ferro, pois dificilmente os professores têm actualmente meios e a possibilidade real de estabelecer um contrato com o Estado sem a cobertura de uma cooperativa ou empresa, ou seja, aquilo que já existe no terreno, pois os grupos que gerem a maioria dos colégios privados são exactamente organizados desse modo.
Deixemo-nos de véus… esta foi a fórmula encontrada para disfarçar a privatização directa da gestão das escolas públicas.
Por outro lado temos ainda a proposta de municipalização da gestão das escolas até ao ensino secundário, no que é mais uma estratégia para o Ministério da Educação e Ciência (MEC) alienar a gestão directa da rede pública de ensino, desorçamentar essa parcela e, ao mesmo tempo, fragmentar o recrutamento dos docentes, deslocando-o para as autarquias. Aliás, subjacente a todo este leque de medidas está o objectivo de retirar ao MEC a responsabilidade e os encargos financeiros pela gestão dos recursos humanos das escolas (pessoal docente e não docente), que assim passaria para as direcções das escolas com contrato de autonomia, os grupos privados que gerem as escolas com contratos de associação, os “grupos de professores” e as autarquias.
Neste contexto fica-se sem perceber medidas como a realização de uma prova de ingresso na carreira docente. Essa prova servirá apenas para o acesso às escolas sob tutela do MEC ou para todas? Até que ponto vai a autonomia, a independência, a liberdade de escola dos docentes pelas novos órgãos de gestão? Que regras serão seguidas para as matrículas dos alunos? Até que ponto a liberdade de escolha pode funcionar neste contexto? E como é possível – quando se afirma estar a demografia em recessão e ser necessário racionalizar a rede pública – aumentar todas as alternativas apresentadas?
Este guião poderia ser, em matéria de Educação, sem espanto, o manifesto de uma qualquer tertúlia de apoio a um grupo empresarial com interesse em alargar a sua quota de mercado. Como programa para uma governação responsável, caso venha a ser implementado, é o caminho para um desastre a médio prazo, do qual nunca alguém assumirá a responsabilidade. Já os prejuízos… atingirão principalmente os mais desfavorecidos e levarão muitos anos a ser minorados.
Paulo Guinote
In: Público
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