(...) Relativamente ao processo de escolha do cuidador, instala-se a polémica, com opiniões diversas de peritos (Pediatras, pedopsiquiatras, médicos de Medicina Geral e Familiar, psicólogos, especialistas em Pedagogia). E se assim é entre os experts, o que dizer das cartas baralhadas na mente dos pais, confusos com opiniões divergentes?
Expresso de seguida a minha opinião sobre um artigo publicado a 9/2/2015 – “Creche: Quanto mais cedo melhor? Estudo revela que crianças que frequentaram a creche com menos de três anos obtiveram melhores resultados no desenvolvimento cognitivo e linguagem do que aquelas que ficaram até mais tarde em casa, com os pais ou com a mãe”.
A única crítica que coloco ao artigo em si prende-se com a excessiva importância dada a um estudo isolado, pois com a frase do cabeçalho podem muitos leitores multitasked, habituados a leituras diagonais, registar a ideia errada. Os menos cultos, crentes num único artigo médico, ficam preocupados com o desempenho dos seus bebés.
De resto, o artigo é neutro, e congratulo-me com a preocupação da autora, em procurar a opinião de alguém com a máxima autoridade para se expressar sobre o artigo, a presidente da Sociedade de Pediatria do Neurodesenvolvimento, da Sociedade Portuguesa de Pediatria, a professora doutora Maria Júlia Guimarães.
O estudo em causa não é isento de mérito. Os autores, médicos de unidades saúde familiar de Braga, colocaram em discussão um tema muito pertinente, que pretende comparar cuidados entre creches (instituições que acolhem bebés desde os três meses e crianças até aos três anos); domicílios de um não familiar, como a ama, e os que são prestados no próprio domicílio, ou seja, em casa dos pais ou avós. E sublinham a importância do investimento em “políticas que assegurem a qualidade dos cuidados”.
Mas não pode ser credibilizado como normativo. Nem é essa a intenção, pois (e apesar de utilizarem métodos corretos de avaliação de estudos científicos), eles próprios o afirmam, os estudos são dos EUA e da Suécia, dois dos quais com apenas uma centena de crianças, enviesados por respostas dadas pelos educadores e pela qualidade excecional das creches nesses países.
O nosso país é um dos PIGS; a sustentabilidade do Estado social está por um fio... Na Suécia, a licença parental é de 12 meses; outros países europeus têm poucas creches, pois as mães têm licenças alargadas e possibilidade posterior de trabalho em part-time, com um abono elevado por cada criança.
Em Portugal, é necessário um estudo multicêntrico nacional para resultados absolutamente credíveis; durante anos, bem estruturado.
Mas ficou a dúvida no ar... As crianças que vão para as creches, bebés de colo, terão melhor desenvolvimento cognitivo mais tarde? A prof. Júlia Guimarães ressalta que os aspetos emocionais não foram abordados no estudo em questão, e a ligação afetiva é um dos principais fatores para o neurodesenvolvimento infantil.
Quem mede a felicidade de um bebé que não anda, e come colheradas de sopa em série em conjunto com mais uma dúzia? É uma variável mensurável? E antes da aquisição da linguagem, como ter a certeza da alegria? Até aos dois-três anos, as crianças dispensam socializar com os pares. Querem carinho e aconchego. Colo e mimo. Até aos 12 meses, aprendem a galinha põe o ovo e a bater palminhas, a andar. A partir daí, falar, pintar, descobrir o ambiente, em segurança.
Quando se fala de crianças de meios socioeconómicos desfavoráveis, com um estímulo abaixo do limiar aceitável, ou de crianças com atrasos de desenvolvimento, esta estimulação precoce é indubitavelmente importante, em creches. Mas estamos a abordar a temática na perspetiva de crianças normais, em que muitos pais podem ter pouco poder económico, mas têm afeto de sobra.
E a qualidade dos cuidados, quer a nível pedagógico como de salubridade? Há creches e creches… Vão-se efetuando vistorias, algumas creches vão fechando… E, como sempre, quem pode pagar seleciona a melhor possível. Há creches ótimas, com educadoras excelentes, que respeitam todas as normas, e nestas os bebés e crianças afeiçoam-se às cuidadoras. Até há mães com ciúmes…
E a maioria da população portuguesa, numa classe média-baixa, que tem de se sujeitar a vagas das creches públicas, pelos parcos recursos, mas até teria avós capazes de cuidar do bebé? Vai depositá-los horas a fio em locais que nem sempre têm as condições desejáveis, pelo sentimento de culpa dos bebés não terem o melhor desempenho? Porque o facto de terem salários baixos não implica que não se preocupem que os seus filhos também tenham uma boa educação!
Em relação a amas é necessário muito cuidado, todos sabem que há amas negligentes; tenho um colega que foi a casa a meio da manhã, a ama era só para o filho, e como não era habitual aparecer a essa hora, o filho estava só. Mas também há excelentes amas.
Em relação ao desempenho e rankings… sucesso, ser o melhor. Vamos formar uma geração futura de crianças perfecionistas? Autómatos = 0101010101?
Não espero que os meus três filhos sejam os melhores, mas que se apliquem e estejam entre os bons. O empenhamento e a persistência valem mais que o desempenho. Não desistir, e perante um resultado menos bom, motivar... "vais ser capaz de melhorar!"
E quem garante que é o melhor desempenho escolar o seguro de vida para um bom emprego? Transmissão de valores, uma família funcional, características da personalidade. Os avós são arquivos vivos de uma herança cultural. Os meus filhos trocam o meu nome pelo dos cuidadores até aos três anos, tios, avós (os meus pais ainda trabalhavam), e eu não me importo nada. O futuro está na inteligência emocional.
Como pediatra, já observei várias crianças que ainda frequentam a escola primária e já deixam de dormir antes dos testes! E com tanta pressão competitiva, elas próprias se convencem que têm de ser as melhores, derivando daí uma panóplia de doenças psicossomáticas inconscientemente autopunitivas; dores de cabeça, de barriga… E, claro, é necessário fazer exames para excluir patologia. E depois recorrer ao pedopsiquiatra ou psicólogo. Que nos hospitais têm listas de espera de pelo menos um ano… Quem pode pagar…
Como pediatra, geralmente sondo os pais ao longo das primeiras consultas, crio empatia, pergunto se têm alguém de confiança para cuidar do bebé. Quando não há outra solução viável, a resolução está tomada. E então incito ao otimismo, que tudo correrá pelo melhor, quando surgirem as viroses (inevitáveis seja qual for a qualidade da creche, embora por vezes os meninos até sejam muito resistentes), eu estarei presente para apoiar. Dou o meu telefone. Sou à moda antiga.
Mas as crianças antes do ano não vão para a creche "ganhar resistências”! Até lhe chamamos infectário em lugar de infantário... A maioria dos pais não se pode dar ao luxo do absentismo laboral. O menino toma antipirético de manhã, e vai contagiar os amigos.
Estudos? Fashionista agora é não vacinar os miúdos nos EUA. O surto de sarampo a aumentar, a taxa de vacinação mais baixa do que em África! "Doenças inofensivas?" Vi, quando interna, uma menina normal que teve sarampo, e, após uns anos, teve o azar de como sequela adoecer com panencefalite subesclerosante. Cérebro em papa. Deixou de andar, falar... inesquecível.
As creches? Se não há escolha, escolhido está. Mas se há, o amor da família é insubstituível, gerando melhores seres humanos. O desempenho escolar sobrepõe-se a isso?
Vânia Mesquita Machado
Médica pediatra, autora do livro digital Microcosmos Humano, Coolbooks-Porto Editora
Fonte: Público por indicação de Livresco
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