Compreende-se melhor o que queremos dizer quando falamos de diferenciação pedagógica, se nos concentramos no trabalho do professor e no esforço que faz para romper com o tratamento igualitário do ensino simultâneo tradicional e passar a proceder a uma diferenciação do ensino nas suas aulas.
É útil, por isso, contrastar esta designação tão em moda da diferenciação pedagógica com a gramática tradicional da escola oitocentista e com diversificação curricular que seguem finalidades semelhantes na velha convicção elitista de selecionar precocemente os alunos quer pela exclusão quer pela discriminação das vias de ensino para que os empurram.
O que frequentemente se designa por gramática da escola refere-se à estrutura e organização tradicionais de formalização da escolaridade e do trabalho na sala de aula, centrado no professor e dirigido aos alunos, fundamentalmente de modo simultâneo.
A outra designação que igualmente se opõe à diferenciação pedagógica é a da diversificação curricular que não trata senão das variantes e alternativas compensatórias, mas sempre socialmente desvalorizadas em relação ao currículo regular oficial.
Regras comuns do ensino simultâneo tradicional
Debrucemo-nos sobre um conjunto de procedimentos seculares que hoje vivemos como coisas naturais da vida da escola e que são afinal a cultura que herdámos desde alunos enquanto regras quase imutáveis dessa tal gramática tradicional da escola, que, tendo nascido em finais do século XVII com La Salle, vem a concluir a sua construção em meados do século XIX.
Ainda hoje a maioria das turmas são constituídas, seguindo geralmente o mito pré-racional dos agrupamentos homogéneos, orientados pela hierarquia dos resultados escolares ou de outras distinções de regime antigo ou assumidamente discriminatórias.
1. O professor ocupa, neste regime, 2/3 a 3/4 da aula, em lições em tudo semelhantes àquilo que já consta no manual obrigatório, que por sua vez será estudado fora da escola (em trabalho para casa) e, quando possível, há de passar por um padrão de verificação das matérias em repetição, isto é, em Interpelação (do professor) - Resposta (em que os alunos põem o dedo no ar e respondem por indicação seletiva do professor) e Avaliação (normalmente pela designação de “certo” ou “errado”, pelo professor).
E tudo isto, quando sabemos hoje que as aprendizagens intelectuais requererão passar pela fala interativa entre professores e alunos, e alunos entre si, bem como pela escrita (a famosa escrita que se não ensina nem trabalha na escola ou acontece apenas num insignificante exercício de correção).
Essa interlocução pela fala e com a escrita é indispensável para assegurar a apropriação dos saberes e a capacitação curricular, porque propicia a consciência de como se chega a eles pela dimensão metacognitiva de uma ativa comunicação no trabalho intelectual.
2. O ensino expositivo, as correções em sessão coletiva e as tarefas de aplicação individual seguem em tudo o modo simultâneo, realizando todos as mesmas atividades ao mesmo tempo, tratando-os como se fossem um só.
3. O estudo, o treino e a consolidação dos saberes não têm lugar, normalmente, nas salas de aula ou na escola. São “coisas da escola”, mas têm lugar em casa, como campo de extensão da escola. Continua, porém, a não estar assegurado que este esforçado trabalho dos alunos regresse à sala de aula para nela ter continuidade e aprofundamento.
4. O professor raramente trabalha com o aluno que dele precisava em seu apoio. Não tem em conta, normalmente, no seu ensino, tal necessidade de individualização, para ajuda à aprendizagem durante o seu tempo de aula.
A diferenciação do ensino numa mesma turma
A diferenciação pedagógica é, no decurso das últimas décadas, a tentativa mais constante para derrubar a irracionalidade que atingiu o trabalho nas escolas.
A maior brutalidade da escola, como fábrica de exclusão desapiedada, a sua maior violência como sublinhou Bourdieu é «a indiferença à diferença».
Cabe ao professor, neste contexto de diferenciação, variar as formas de organização do trabalho de aprender e de ensinar o mesmo currículo regular oficial, para que respeitando toda a diversidade própria de uma turma, cada aluno possa beneficiar de o máximo de oportunidades no uso da variedade de recursos e da diversidade dos modos de organização e dos tempos das atividades proporcionadas pelo professor e pelos pares, a partir de muito trabalho autónomo contratualizado, de trabalho partilhado entre pares, bem como de trabalho apoiado pelo professor em interação dialogada e individualizada. Tudo para que possam, em colaboração solidária, e ativamente participada, atingir os objetivos determinados, com os critérios de execução partilhados, cruzando-se, assim, percursos diversos em ritmos diferenciados e apoiados em fortes estruturas de cooperação, onde cada um se proponha atingir os seus objetivos curriculares só quando cada um dos outros os possa atingir também, em interajuda que reforça a aprendizagem de todos.
Sérgio Niza
Texto publicado na secção “Inquietações pedagógicas”, sobre Repetência, exclusão e abandono escolar, no suplemento “Educação”, do JL, de 4 a 17 de fevereiro de 2015.
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