terça-feira, 4 de março de 2014

Fábrica de bons alunos

Daniela Marcelino saía de casa todas as manhãs, mas quando chegava ao portão da Escola Sebastião da Gama, em Setúbal, mudava para o outro lado do passeio. "Chumbei quatro vezes por faltas. Faltava porque não me apetecia ir. Sentia-me desmotivada, não me apetecia entrar. Então, bazava: ia para o café, para a casa do namorado, queria estar em todo o lado menos na escola." Carolina Caetano deixava-se dormir todas as manhãs e "queimava" as aulas até à hora de almoço. Lisandro Gomes ficava "toda a noite" a falar no Face(book) e deixava o despertador a falar sozinho todas as manhãs. Gonçalo Pinto achava tudo "uma grande seca".

E, quando decidiam ir às aulas, era - na maioria das vezes - para "desfilar e avacalhar" - confessam quando o gravador está desligado e não há ‘perigo' de saber quem disse. Rute Camisola já tinha chumbado três vezes e quando começou a namorar reprovou mais uma. "Não vinha às aulas, e quando chegava o dia dos testes eu não fazia ideia, porque não tinha estado a assistir. Não era um bom caminho, mas era o meu, foi o caminho que naquela altura escolhi." O passado é usado com propriedade por todos eles. São 22. Têm entre 16 e 18 anos e um percurso escolar marcado por uma sucessão de reprovações, faltas às aulas, testes negativos, um ciclo que se alimentava a si próprio e sem fim à vista.

Até que a Escola Sebastião da Gama - confrontada com a reprovação de 45 alunos no 9º ano - efetuou uma candidatura ao Ministério de Educação para a abertura de um curso vocacional do ensino básico, um modelo que no ano anterior tivera noutros pontos do País as suas primeiras experiências-piloto.

O curso, que dá equivalência ao nono ano, não nasceu sozinho. Contou com a parceria do Projeto Epis (Empresários para a Inclusão Social) e da empresa setubalense Sapec Agro, através do programa de voluntariado Vocações de Futuro. Uma vez por mês, os alunos do curso vocacional rumam à fábrica de adubos, que nasceu em 1926 para explorar as minas de pirite no Alentejo pela mão de uma família belga, que já vai na terceira geração. A empresa tem um longo historial de ajuda à região (na construção do Estádio do Bonfim - do Vitória de Setúbal - e de uma ala no Hospital de São Bernardo), embora prefira evitar os holofotes.

VIDAS DIFICEIS 

Daniela Carreira está concentrada a despejar uma solução química para um tubo de ensaio. A ‘madrinha', a engenheira biológica Sónia Silva, olha embevecida para aquela "filha emprestada" a quem explica os procedimentos da profissão que escolheu. Na fábrica foram atribuídos a estes alunos padrinhos e madrinhas, que têm por missão ‘devolvê-los' à escola e abrir-lhes janelas de futuro. As notas positivas da turma têm animado os envolvidos.

"Tocou-me desde o primeiro dia, sei as dificuldades que teve no ano anterior, mas este ano está muito mais motivada, encara a escola de uma maneira mais positiva e já não acha uma seca passar 90 minutos dentro de uma sala." Dificuldades é um eufemismo para aquilo que Daniela enfrentou. A adolescente carregou a casa às costas depois de a mãe partir duas vértebras e ficar impossibilitada de fazer qualquer esforço. "Tenho oito pessoas em casa: a minha mãe, o meu padrasto, os filhos do meu padrasto e os meus irmãos. Nessa altura era eu que tomava conta deles todos, tinha de controlar aquilo tudo: lavava a roupa, limpava a casa, fazia o almoço e o jantar, levava os mais pequenos à escola." Daniela Carreira tem apenas 16 anos, é uma menina que aprendeu a ser mulher enquanto a maioria se debruçava sobre os livros da escola e as tropelias adolescentes. "Quando a minha mãe começou a melhorar fiquei eu com uma depressão, comecei a sentir-me cansada, tinha ataques de ansiedade, enervava-me; não consegui dar nada à escola." Antes disso já tinha reprovado três vezes - todas elas depois de sair do Alentejo rural, "onde tinha sossego e silêncio", na altura da separação dos pais.

"Os padrinhos não foram escolhidos ao acaso: são pessoas que têm uma vida quase oposta à dos jovens que ajudam, para que haja um equilíbrio e ao mesmo tempo uma partilha", explica Nuno Palma, professor destacado pelo Ministério há seis anos para o Projeto Epis. É ele o coordenador desta turma, "24 horas por dia, para o que eles precisarem". Num prato da balança está por isso Daniela e a sua casa de oito pessoas, no outro Sónia Silva, 38 anos, que divide as quatro paredes apenas com o marido. "É muito reconfortante para mim perceber que consigo motivá-la, que conseguiria fazer isso com qualquer criança ou adolescente. No fundo, ela também me ajuda a mim."

"É O NOSSO AMOOOR"

"Estes miúdos não conhecem hierarquias, os pais têm muitas vezes medo deles. São seres fantásticos, mas falhou a exigência em casa, têm percursos de vida atribulados, são poucos os que vivem com o pai e com a mãe - estas coisas marcam", considera Olga Guerreiro, a diretora de turma deste curso vocacional e 39 anos de dedicação ao ensino público. No autocarro, entre a escola e a fábrica, os alunos desafinam, em jeito de provocação: ‘E a professora Olga é o nosso grande amoooooor'. Ela ri-se. "Desde que não sejam mal educados, têm tudo de mim. Quando têm fome levo-os a comer, sabem que o meu cartão está sempre disponível com dinheiro quando eles não têm." Já chegou a fazer de despertador de alguns alunos mais ‘adormecidos' e cujos pais estavam fora de casa a trabalhar.

Rute Camisola tem 18 anos e perdeu há muito o contacto com a mãe. Há uma mágoa controlada nos dedos entrelaçados. "Nem eu nem ela fazemos um esforço. Acho que não vale a pena." Vive por isso com o pai, um agente imobiliário que depois do desemprego abriu uma livraria online. Na Sapec, Rute ficou a ‘cargo' de Eugénia Pires, uma mãe-galinha de quatro filhos, o oposto da sua experiência pessoal. A ligação entre ambas já saltou os muros da fábrica de adubos. "Tinha vontade de conviver com ela fora do ambiente de trabalho e por isso já a levei para minha casa para passarmos um dia em família. Aproveitei que a minha filha de 27 anos que vive em Madrid estava cá para as apresentar." A funcionária da secção de embalamentos da Sapec Agro, de 50 anos, aproveitou também para acrescentar mais uns conselhos aos que já lhe tinha dado.

Rute responde divertida a cada ‘puxão de orelhas' de Eugénia: ‘encaixei, madrinha, encaixei'. "É muito madura para a idade. Ela é a mulher da casa, teve de crescer muito cedo, mas ainda assim acha que na vida são tudo facilidades." É por isso que Eugénia trá-la para o mundo real a cada devaneio e orgulha-se das positivas que a ‘afilhada' tem tirado este ano, tão diferentes das notas do passado. Rute sonha ser chef de cozinha "num hotel como o Hilton, talvez na Austrália". Sonhar é atirar para cima, nunca para baixo. E ela até pode ter tropeçado no caminho, mas não perdeu a capacidade de sonhar.

In: CM

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