Ao longo da última década, com especial destaque nos anos de maior conflito entre a classe docente e a tutela, criaram-se ou recuperaram-se imagens distorcidas daquela classe para, através do estereótipo ou da caricatura a amesquinhar e aos seus membros.
A primeira dessas imagens, a que poderemos chamar mitos úteis, foi a da classe docente como tenebrosa corporação, corporizada por sindicatos maléficos que teriam conseguido colocar representantes nos corredores do poder, nomeadamente no Ministério da Educação, para conseguir privilégios laborais e salariais imensos, em troca de uma carreira sem qualquer responsabilidade e em que qualquer medíocre poderia ter sucesso e atingir o topo.
A par desta imagem floresceu outra, a do professor enquanto não-profissional, acomodado, despreocupado do desempenho dos seus alunos, professor apenas por nada saber fazer para além de ensinar (mal). Foi esta a mensagem que em especial o Governo do engenheiro Sócrates multiplicou para a opinião pública com algum sucesso inicial, em especial quando a contestação aumentou em relação a um estatuto que dividia a carreira em dois patamares quase estanques, com a progressão dependente de um modelo de avaliação injusto e impraticável. E foi-se repetindo e repetindo um discurso – partilhado por comentadores preconceituosos – que acusava os professores de serem uma corporação conservadora, resistente apenas por inércia ou omissão, tentacular mas facilmente derrotável num confronto político por ser, como uma figura transitoriamente relevante na altura afirmou, como o esparguete.
A realidade dos factos veio demonstrar que muito estava errado, pois os professores foram a primeira classe profissional qualificada a mobilizar-se de forma inovadora e para além dos enquadramentos institucionais tradicionais, forçando mesmo as estruturas sindicais a andar uns tempos sem saber o que fazer, enquanto o poder político fazia tudo por estabelecer entendimentos nos bastidores para evitar ser desautorizado pela “rua”.
Mas há algo mais importante que o tempo demonstrou ser falso, pelo menos no seu aspecto essencial, e que é o alegado aspecto corporativo dos professores, que funcionariam como um eficaz e activo grupo de pressão junto do poder político, uma espécie de corpo cerrado em torno de princípios comuns de acção e com agentes seus altamente colocados e em condições para condicionar os decisores políticos e a produção legislativa.
Se há coisa que sabemos é que um professor quando passa a exercer funções sindicais se sente acima de tudo sindicalista e quando passa a técnico de qualquer serviço de um qualquer ministério se torna um tecnocrata de corpo inteiro e tanto um como outro se esquecem quase imediatamente da sua profissão original e passam a defender os interesses da nova organização a que sentem pertencer desde sempre. O mesmo com os deputados que, apesar de docentes de profissão há décadas, subitamente se esquecem disso e se tornam os mais fervorosos defensores da pureza das suas funções, ao contrário de qualquer, digamos assim, advogado ou médico que no Parlamento nunca se esquece de onde veio e para onde quer voltar.
O corporativismo docente é apenas uma invenção destinada a prevenir a sua própria existência, por parte daqueles que utilizam o termo como se fosse algo pejorativo, associando-o a práticas inconfessáveis, quiçá herdeiras do Estado Novo, mesmo quando os acusadores são membros, eles sim, de corporações criadas e mantidas pelo regime salazarista.
Não quero com isto dizer que os professores devem funcionar como um grupo impermeável, uma facção incapaz de assumir outras funções sem ser ao serviço de interesses particulares, mas confesso que gostaria de ver os professores terem orgulho de o ser mesmo quando, de forma passageira, ocupam qualquer outro cargo. E perspectivarem com naturalidade o seu regresso à docência em vez de planearem com afinco a sua perpetuação no novo estatuto. E gostaria de não ouvir e ler alegados representantes sindicais também a acusar de “corporativismo” quem defende a especificidade das causas de uma classe profissional que, pela dimensão, perfil de qualificações e função, não deve ter receio de assumir a sua singularidade.
Os professores nunca foram uma verdadeira corporação porque são a única classe qualificada vulnerável ao discurso do anti-corporativismo feito exactamente por muitos daqueles que mais corporativos são. E porque os seus representantes parecem sempre mais seduzidos por estarem a caminho de algo mais e prontos a esquecer o que foram.
É falso que só é professor quem não consegue fazer outra coisa. Mas é verdade que há quem logo que consiga ser algo diverso se esqueça que foi professor. E se torne um dos seus principais inimigos. Quantas vezes de forma bem explícita e provocatória. E é nesses momentos que me apetece defender, sem embaraço, a necessidade de um assumido e eficaz corporativismo docente.
Paulo Guinote
Professor do ensino básico e autor do blogue A educação do meu umbigo.
In: Público
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