Quando deixam a pré-escola, muitas crianças já reconhecem letras e escrevem o nome. Essas aprendizagens têm de ser encaixadas e geridas pelos professores do 1.º ciclo para que os mais pequenos continuem motivados no início do seu percurso escolar. Os docentes realçam a importância das atividades de desenvolvimento da consciência fonológica, as brincadeiras com sons e palavras. O neuropedagogo e professor Rafael Silva Pereira criou a BACLE - Bateria de Avaliação de Pré-Competências da Leitura e da Escrita para avaliar em que nível de desenvolvimento se encontram os mais pequenos. A utilização desta ferramenta, na sua opinião, pode fazer a diferença entre o fracasso ou o sucesso escolar.
Isabel Cabral, professora do 1.º ciclo do ensino básico, nota discrepâncias na leitura e na escrita dos meninos e meninas que passam do pré-escolar para a escola primária. Há os que dominam a leitura e há os que não reconhecem as vogais. O cenário muda na escrita. "Muitos alunos apresentam uma motricidade fina pouco desenvolvida, sendo necessário recorrer ao trabalho de grafismo, e mesmo os que dominam a leitura, poucos são os que dominam a escrita", conta.
A experiência mostra-lhe que as aprendizagens adquiridas no ensino pré-escolar variam muito, os conhecimentos são variados e dispersos e, por isso, a continuidade do trabalho no 1.º ciclo não é assim tão linear. Os professores têm de começar do zero, apresentar letra por letra. "Se a leitura e a escrita é algo que preocupa no início da escolaridade obrigatória, mais preocupante é a não existência ou inconsistência de motricidade fina (que permite usar corretamente material de escrita, tesoura e outros), tornando-se uma barreira urgente a ultrapassar", refere.
Para Isabel Cabral, os conhecimentos prévios da leitura e escrita são importantes, mas de uma forma "simples e nivelada". Até porque, na sua opinião, a entrada no 1.º ciclo é a fase em os processos de escrita e leitura se devem iniciar de forma sistematizada. "A nível do ensino pré-escolar, considero ser mais proveitoso para as crianças um trabalho intenso a nível da fonética do que propriamente a nível da escrita/leitura, assim como um trabalho mais cuidado a nível do desenvolvimento da motricidade".
Cláudia Caseiro é professora do 1.º ciclo há nove anos, sempre no ensino privado. Em seu entender, o trabalho feito no pré-escolar é útil para as aprendizagens no 1.º ciclo. A realidade que lhe passa à frente dos olhos revela-lhe crianças com contacto com a escrita e conscientes da sua importância para o dia a dia. Crianças que sabem escrever e identificar os seus nomes e bocadinhos de palavras, que reconhecem as letras do abecedário, que gostam que lhe sejam lidas histórias. "Já tive três turmas do 1.º ano e, em todas elas, havia pelo menos uma criança que já lia - tendo aprendido autonomamente". "É notória a diferença no desenvolvimento da consciência fonológica nas crianças nesta idade, sendo que as que a têm mais desenvolvida aprendem a ler e a escrever com mais facilidade."
Reconhecer todas as letras antes de entrar para o 1.º ciclo não é fundamental. Cláudia Caseiro defende que é mais importante que as crianças, no pré-escolar, realizem atividades de desenvolvimento da consciência fonológica, associem oralmente palavras iniciadas ou terminadas pelo mesmo som, dividam palavras em sílabas batendo palmas, que brinquem com sons e com as palavras. Há hábitos, no entanto, que custam a perder. "No pré-escolar são trabalhados grafismos, mas apercebo-me que muitas crianças, quando chegam ao 1.º ano, desenham as letras no sentido inverso. É muito difícil para algumas perderem esse ‘vício' e há as que terminam o 4.º ano escrevendo as letras incorretamente, com caligrafias menos legíveis, apesar de todos os esforços", comenta.
Rafael Silva Pereira, neuropedagogo e professor - atualmente diretor pedagógico da Associação Ester Janz e professor da cadeira de Dificuldades Específicas de Aprendizagem no Mestrado em Educação Especial na Escola Superior de Educação Almeida Garrett - verificou que os instrumentos validados na literatura portuguesa para avaliar, em conjunto, as pré-competências de leitura e escrita, antes do início da aprendizagem formal, eram escassos. Com vontade de criar um mecanismo inovador que possibilitasse uma avaliação e intervenção eficazes neste âmbito criou, com ajuda de Rita Rocha, aluna de mestrado, a BACLE - Bateria de Avaliação de Pré-Competências da Leitura e da Escrita, que já se encontra na terceira edição.
A BACLE nasceu com três objetivos essenciais. Avaliar pré-competências de leitura e escrita em crianças do pré-escolar a iniciar o 1.º ano de escolaridade ou com dificuldades de aprendizagem, identificar o estádio de desenvolvimento das crianças ao nível das pré-competências adquiridas para o início da leitura e escrita, e validar um instrumento prático no âmbito da avaliação de pré-competências para início de leitura e escrita. "É uma mais-valia para que educadores e professores percebam em que estádio estão os seus alunos ao longo do ano", adianta ao EDUCARE.PT. Uma mais-valia para que percebam atempadamente qual o caminho a seguir e detetem quais as dificuldades de aprendizagem na leitura e na escrita logo no início do percurso escolar.
"A BACLE permite assim avaliar a perceção, a produção, a retenção e a simbolização segundo indícios de pré-linguagem, pré-leitura e pré-escrita", sublinha o responsável. "É muito importante numa turma onde se encontram 30 alunos que o professor perceba se pode começar a aplicar determinada aprendizagem", refere. Nesse sentido, a BACLE apresenta um conjunto de exercícios relativos à maturidade percetiva subdividida em perceção auditiva, visual, dominância lateral e reconhecimento dessa dominância, abordando assim o esquema corporal, a orientação espaciotemporal incluindo a identificação em si, a identificação do outro e a posição no espaço gráfico. A "bateria" aborda também o desenvolvimento motor e a motricidade fina, bem como a linguagem oral subdividida em compreensão oral, consciência fonológica e expressão oral.
A "bateria" afere competências, em que estádio de desenvolvimento o aluno se encontra, mais do que definir percentis. "Apesar de este instrumento ter como finalidade uma avaliação global de pré-competências que se interligam umas com as outras, podemos avaliar apenas as áreas consideradas emergentes ou fracas de acordo com os objetivos da avaliação". "Podemos ainda aplicar a BACLE em outras faixas etárias, desde que se perceba que o aluno, independentemente do seu ano de escolaridade, apresenta dificuldades", acrescenta.
Rafael Silva Pereira garante que a BACLE está a ter muita procura em Portugal e não só. O Brasil tem também utilizado esta "bateria". E não é apenas a comunidade educativa que a utiliza, mas também terapeutas da fala e psicólogos. O responsável já pediu uma reunião ao Ministério da Educação e Ciência para abordar o assunto, nomeadamente a adoção da BACLE por parte de educadores e professores.
Sara R. Oliveira
In: Educare
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