Os estudantes podem ser desafiados a imaginar-se na pele de um cigano que se dedica à venda de vestuário. “Se venderes um par de meias a 1,5 euros, por quanto vendes dois pares de meias? E cinco pares? E dez pares?” Ou, ainda antes de ler um texto sobre como os ciganos chegaram a Portugal na segunda metade do século XV, ser chamados a responder a uma pergunta: “Os ciganos são portugueses?”
Não fosse a pandemia de covid-19, este seria o grande ano de teste do “Reflexo - Ferramenta pedagógica para uma nova relação entre a escola e as comunidades ciganas” na Covilhã. As escolas fecharam as portas em Março e os professores tiveram de ensinar à distância estudantes que, muitas vezes, não tinham computador. Perante tais condições, a coordenadora do projecto, Rosa Carreira, considera “muito difícil” avaliar o resultado.
O assunto está em cima da mesa. No princípio deste mês, o comité de ministros do Conselho da Europa recomendou aos seus 47 Estados-membros que incluam a história dos ciganos e dos travelers nos seus programas escolares e nos materiais pedagógicos. Em Portugal, o contexto parece favorável. Há dois anos, o Governo colocou a educação inclusiva entre as suas prioridades. O regime jurídico, aprovado há dois anos, lembra Maria José Casa-Nova, coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, refere “a necessidade de cada escola reconhecer a mais-valia da diversidade dos seus alunos, encontrando formas de lidar com essa diferença, adequando os processos de ensino às características e condições individuais de cada aluno.”
Começam a aparecer as primeiras ferramentas. Em 2016, o “Kit Pedagógico Romano Atmo”, desenvolvido pela Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas, testado no Agrupamento da Arrentela, no Agrupamento de Santo António da Charneca e no Agrupamento de Augusto Louro. No ano passado, o “Reflexo”, de que fazem parte os dois exercícios mencionados no arranque deste texto.
Dez anos de intervenção
Há uma década que a Coolabora, uma cooperativa fundada por cinco mulheres, trabalha com crianças e jovens do Tortosendo, a freguesia que acolhe mais população cigana. Gere o projecto Quero Ser +, em parceria com o Agrupamento de Escolas Frei Heitor Pinto, com financiamento do Programa Escolhas, do Alto Comissariado para as Migrações. E esse inclui equipa de estudo, formação parental, mediação familiar e outras medidas destinadas a promover a inclusão escolar, mas também a participação cívica e a inclusão digital. Ainda agora, com a pandemia a encerrar as escolas, a equipa desse projecto tratou de garantir que as tarefas e orientações dos professores chegavam aos estudantes que não têm computador. E que os trabalhos feitos por eles chegavam aos professores.
Embora o absentismo e o abandono estivessem a descer, permaneciam elevados na Escola Básica 2 e 3 do Tortosendo. Era evidente, diz Rosa Carreira, que “a escola teria de fazer um esforço diferente”. Para isso, precisava de ferramentas pedagógicas. “As crianças ciganas podiam sentir que a sua cultura também faz parte dos manuais e as crianças não ciganas podiam conhecer melhor aquela cultura”, explica.
Para já, ficaram pelo 2º ciclo. Esse nível de escolaridade constituiu uma primeira barreira inultrapassável para muitas crianças e jovens daquela comunidade. E a duração do projecto, financiado pelo Fundo de Apoio à Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, não dava para mais. Uns exercícios, todavia, são tão simples que podem ser usados no 1º ciclo e outros têm complexidade suficiente para o 3º ciclo (como a lista de alvarás ou decretos que ao longo dos séculos foram sendo decretados para impedir a entrada de ciganos ou para os expulsar, para os condenar ao trabalho forçado ou ao degredo, para os proibir de falar a sua língua ou de usar os seus trajes típicos.
Entre Fevereiro de 2018 e Julho de 2019, uma equipa fez acontecer. Envolveu profissionais do agrupamento, do departamento de Psicologia e Educação da Universidade da Beira Interior, da Câmara da Covilhã, da Junta de Freguesia de Tortosendo e representantes da comunidade cigana do Tortosendo que defendem a importância da escola (Celeste Salgueiro, Mário Fernandes e Manuel Cardoso).
Celeste Salgueiro, de 49 anos, não tem dúvidas: “Foi por sermos líderes da comunidade que nos escolheram.” O marido, pastor evangélico, recomenda aos pais que deixem as crianças estudar. E ela faz mentoria a estudantes do básico. Participaram em várias reuniões. “Falámos do que as pessoas fazem, do que gostam mais de comer, da discriminação que sentem. O que sabemos toda a gente sabe. Foi mais para ficar melhor.”
Envolver a comunidade
A equipa começara por ouvir os professores a indicar os conteúdos que podiam ser explorados pelo projecto. Tendo isso em conta é que fez as pesquisas, conversou com os três membros da comunidade e outras pessoas. Além de um conjunto de exercícios e actividades que podem ser usadas nas várias disciplinas do 5º e do 6º anos, alinhou sugestões de actividades extracurriculares e estratégias a usar de forma complementar. E testou os materiais foram com diferentes turmas. Ao que conta Rosa Carreira, estas sessões mostraram que a exploração da temática mantém as crianças motivadas e que há um grande desconhecimento sobre esta comunidade.
Safira Gonçalves tem 13 anos e só se lembra “de algumas coisas”, mas valoriza o esforço. “Os ciganos não são muito de ir à escola, mas já estão a melhorar”, diz ela. Tem o exemplo do irmão, que conta 18 anos e acaba de terminar o 12º ano. Esse não é, porém, bem um exemplo que conte para ela. “Na nossa comunidade é diferente se és menino ou menina. Na comunidade ensinam assim. Os homens podem estudar. As mulheres, despede das famílias. Algumas estudam. Não sei porquê. Não sou muito de falar sobre isso. Ainda tenho tempo para pensar.” Talvez não, talvez esteja na hora de começar a pensar a sério no que quer fazer à vida. “Desde que entrei para o 6º, comecei a conviver mais com os meus primos e a faltar.” Por nada que pudesse justificar. “Para o convívio.” Teve notas para passar para o 7º, mesmo assim. “A minha directora de turma ajudou-me muito. Ela gostava muito que eu permanece na escola.”
Um dos grandes entraves ao cumprimento da escolaridade obrigatória, diagnóstica Rosa Carreira, é a “pressão do grupo”. “Se as famílias estivessem espalhadas não se controlavam tanto umas às outras. Morando no mesmo bairro, o controlo social é muito forte. É difícil contrariar a pressão”, observa. As raparigas abandonam a escola mais cedo, não vão encantar-se com algum não cigano, namorar, “desonrar” a família. Os rapazes não tardam a segui-las. A união adolescente continua a ser comum, às vezes contra a vontade dos pais.
Acredita que a falta de exemplos positivos não ajuda. “Muito dizem: ‘Para quê que vou estudar se não me dão trabalho?’ É um ciclo vicioso. Não estudam porque não lhes dão trabalho e não lhes dão trabalho porque não estudam”, conta. Para o romper, a Coolabora convida ciganos ilustres, como Carlos Miguel, que foi secretário de Estado, ou Olga Mariano, que preside à Letras Nómadas, ou mulheres que concluiriam o ensino superior, para que rapazes e rapariga percebam que nem por isso deixaram de se identificar como ciganas e de defender a história a e cultura cigana.
Fonte: Público por indicação de Livresco
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