Os seus rostos são reconhecidos pelo público em geral. Desde 12 de Março que os gestos e as expressões de Luís Oriola e Sofia Figueiredo entram diariamente na casa dos portugueses por causa das conferências de imprensa da Direcção-Geral da Saúde e do Ministério da Saúde. Apesar disso, o seu público-alvo, a comunidade surda, já os reconhece “há imenso tempo”, explica, entre risos, Luís Oriola (...). Como a “comunidade é pequena” e muito comunicativa entre si, sobretudo nas redes sociais, “um surdo em qualquer parte do país, desde que seja falante de Língua Gestual Portuguesa (LGP), conhece todos os intérpretes que estão a trabalhar em televisão, inclusive os seus nomes gestuais”, acrescenta Sofia Figueiredo.
Se, por um lado, Luís tem familiares surdos e a LGP sempre esteve presente na sua vida, o mesmo não aconteceu com Sofia, que seguiu esse percurso profissional já em adulta depois de várias formações. Antes do mundo profissional, foi no Instituto Politécnico de Setúbal que ambos se formaram no que é hoje a licenciatura de Tradução e Interpretação de Língua Gestual Portuguesa.
Os dois intérpretes conhecem-se muito antes de a pandemia os ter juntado no ecrã, desde o tempo em que eram profissionais liberais e “faziam um pouco de tudo”, entre traduções em reuniões de condomínio, idas a consultas médicas ou aos bancos com pessoas surdas, exemplifica Sofia Figueiredo. Agora, enquanto técnicos superiores no Instituto Nacional para a Reabilitação, o trabalho de ambos passa não só pela vertente de LGP, através de traduções de vídeos ou reuniões, mas também pela emissão de pareceres, por exemplo. A introdução das conferências de imprensa diárias no dia-a-dia não veio trazer um aumento na carga laboral, revela Luís Oriola. “O que as pessoas vêem consecutivamente são repetições daquele momento, o trabalho não aumentou propriamente”, justifica.
Nova pandemia, novos gestos
Da mesma forma que palavras como “coronavírus” ou “covid-19” não eram conhecidas pelo público ouvinte, também os profissionais de LGP tiveram que encontrar formas de as expressar. Sofia Figueiredo afirma que o processo foi “natural” e que os gestos “acabam por surgir”. Enquanto há gestos mais icónicos que têm a ver com a parte visual do significado, há ainda a possibilidade de as palavras serem soletradas, mas “das primeiras vezes que o fazemos, ninguém entende”, admite Luís.
Com o passar do tempo, à medida que a comunidade surda “adopta mais um ou outro gesto”, a expressão da palavra estabiliza. Para esse efeito contribuem as redes sociais que “ajudam à divulgação do que significam determinados gestos”, plataformas às quais “os intérpretes prestam muita atenção”, afirma Sofia Figueiredo. “Os surdos costumam dizer que são estrangeiros no seu próprio país”, acrescenta. Isto devido à dificuldade em aceder à comunicação oral e, por isso, “viram-se muito para as redes sociais onde contactam com surdos de todo o mundo”.
Embora não haja uma Língua Gestual internacional, acontece o mesmo que na língua oral e “os gestos da Língua Gestual Americana são os mais utilizados para a comunicação entre pessoas de países diferentes”. Por cá, o grupo “Língua Gestual Portuguesa (LGP)” no Facebook conta com mais de cinco mil membros que esclarecem dúvidas relativamente aos gestos, enquanto no grupo “COVID-19 Portugal Língua Gestual Portuguesa” o tema é exclusivamente a pandemia.
Acessibilidade à informação ainda fica aquém
As conferências de imprensa que vieram trazer mais mediatismo aos dois técnicos trouxeram também “visibilidade” para a causa. De certa forma, “já se progrediu muito”, admite Luís Oriola, que se considera um “optimista q.b.”. Contudo, “isto é uma gota no oceano”, reflecte Sofia Figueiredo que diz temer que “tudo fique na mesma, a não ser que haja regulamentação séria e que o Estado fique vinculado a ela”.
Embora Portugal tenha ratificado a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, que prevê tornar toda a comunicação e serviços públicos acessíveis. “A questão é que isso não se cumpre”, lamenta a intérprete. A título de exemplo, Sofia Figueiredo relembra a recente reunião de António Costa com os presidentes de câmara da Área Metropolitana de Lisboa. “No final, o senhor primeiro-ministro fez uma intervenção que não foi assegurada por nenhum intérprete”, afirma. Da comunicação oficial surgiu o anúncio de regras a que “todo o país teve acesso, menos as pessoas surdas”.
Mas não basta haver técnicos no local. Ambos os profissionais lembram que, muitas vezes, os próprios canais de televisão não cumprem as recomendações estabelecidas nas transmissões. “Há claramente condições que não estão a ser respeitadas”, começa por afirmar Luís Oriola, suportado pela existência de uma deliberação da ERC que regulamenta a questão da acessibilidade na comunicação social, em vigor desde 2016.
“Embora esse plano até preveja sanções, a verdade é que as estações de televisão se preocupam em cumprir o número de horas com interpretação e legendagem, mas a qualidade dos conteúdos acessíveis fica aquém”, expõe. O intérprete esclarece que, em termos práticos isso significa, por exemplo, que há legendas que não são síncronas e com erros e sublinha que o tamanho das janelas para os tradutores nunca é o recomendado. O espaço que teoricamente deveria ocupar um sexto do ecrã, na realidade “é uma coisa minúscula que quase apetece usar uma lupa”.
Para os profissionais, os problemas à volta da acessibilidade relacionam-se com “falta de sensibilidade”. Isto porque, adianta a técnica, “até se podia pensar que era por questões financeiras”, mas rapidamente esclarece que “a partir do momento que se percebe o valor que é pago aos intérpretes, vê-se que não tem a ver com dinheiro”.
“O dia-a-dia das pessoas surdas é cheio de barreiras”
Desde uma ida a uma loja até aos serviços públicos, “o dia-a-dia das pessoas surdas é cheio de barreiras”, admite Sofia Figueiredo. Entre vários exemplos, a intérprete recorda um caso recente “digno de um filme de terror”, o de uma pessoa surda que, ao tentar levantar o cartão de cidadão num balcão do registo civil, foi colocada numa sala de espera, depois de ter sido chamado um segurança, porque ninguém a conseguia compreender. O surdo profundo terá pedido que os pedidos fossem escritos, mas “a pessoa no balcão de atendimento não queria tocar no papel e caneta” devido à pandemia de covid-19.
Também Luís reconta o caso de um surdo que não terá conseguido comunicar com os profissionais de saúde num dos postos de despiste para covid-19 em que os testes são feitos dentro do carro e viu-se obrigado a levar um amigo para servir de intérprete para fazer o teste, “sujeitando essa pessoa a um possível contágio”. Sofia acrescenta: “Quando lhe perguntei se tinha deixado uma reclamação, a pessoa respondeu ‘agora tenho que passar a vida a reclamar?’”.
Mas é a comunidade surda reivindicativa? “De uma forma geral, as pessoas reivindicam e protestam muito no Facebook e no café da esquina, mas, formalmente, há pouco esse hábito”, responde Luís Oriola, embora considere que “felizmente”, a legislação garante quase toda a protecção que as pessoas com deficiência precisam. “Sempre que ocorre uma situação com algum problema de acessibilidade, há uma enxurrada de comentários e fotografias no Facebook. Se formos ver as queixas feitas em papel, só há meia dúzia”, conclui. Além disso, “são raras as plataformas que existem dedicadas a queixas e reclamações que estão pensadas para pessoas surdas”, sublinha.
“Nós sabemos que as pessoas surdas existem. Temos é que fazer cumprir os normativos da acessibilidade” afirma Sofia Figueiredo. A intérprete lembra que as próprias conferências de imprensa dedicadas à covid-19 que hoje traduz, só começaram a ser acessíveis à comunidade surda depois de uma onda de reclamações que chegou à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).
“Durante estes tempos de pandemia, e esperemos que continue, o serviço SNS 24 passou a ser acessível através de videochamada”, informa a intérprete. Contudo, além de muitos surdos não conhecerem estas soluções, os próprios serviços e profissionais de saúde muitas vezes também não conhecem, lamenta Luís Oriola. “Eu percebo que possa parecer estranho uma pessoa entrar num consultório ou gabinete com o telemóvel em videochamada, há a questão da privacidade e dos dados pessoais, mas é preciso sensibilizar os serviços e profissionais para estas soluções”, conclui.
Fonte: Público
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