quinta-feira, 30 de julho de 2020

Deslizar o dedo pelo ecrã em tenra idade

Um restaurante é muitas vezes um excelente palco da impaciência de uma criança e, enquanto a comida não chega, cabe aos pais a tarefa de colocar “em cima da mesa” distrações. Para Renato Gonçalves e Liliana Nunes, ambos de 37 anos, basta um lápis e uma folha para manterem Rafael distraído. Só uns minutos. O sossego regressa ao improvisarem um teatro com fantoches de dedos, com uma corrida de carrinhos ou com bolinhas de miolo de pão a imitar plasticina. “Chegámos a ouvir comentários e até olhares de reprovação, porque o nosso filho não permanecia quieto nos restaurantes”, desabafa Renato. “As crianças têm os seus tempos e rapidamente deixam de manifestar interesse numa determinada distração”, comenta Liliana.

O casal vive em Lisboa e considera que recorrer à tecnologia é “ir pela via mais fácil”. Foi, pois, excluída até o menino completar dois anos, exceto para videochamadas com os avós maternos residentes em Grândola. A decisão foi baseada em convicções pessoais, mas também no que a experiência profissional lhes ensinou. Renato é programador informático no Aeroporto de Lisboa e sobre os sistemas operativos Android e IOS refere que foram “criados para uma utilização fácil e intuitiva, não deixando muita margem para o pensamento”. Liliana é enfermeira na especialidade de Neuropediatria e aponta malefícios ao nível oftalmológico, sinais de dependência, impacto na socialização e interferência na qualidade do sono. Uma das suas tarefas é administrar vacinas a bebés desde os dois meses e constata que a maioria dos pais utiliza o telemóvel para entreter os filhos. “Há outras formas de distrair”, comenta a mãe de Rafael, que atualmente tem três anos e, em alternativa ao smartphone, brinca com legos, puzzles, ouve histórias, desenha, diverte-se com um balão ou brinca ao ar livre.

Mónica Vasconcelos, neuropediatra no Hospital Pediátrico de Coimbra e presidente da Sociedade Portuguesa de Neuropediatria, explica que nos primeiros anos de vida o cérebro é sensível a um amplo espectro de experiências – sensoriais, motoras, linguísticas, emocionais, afetivas – essenciais para a evolução da linguagem e das funções cognitivas. Por seu turno, avisa que “o uso de dispositivos eletrónicos pode afetar o desenvolvimento cerebral”, indicando que esses aparelhos “promovem a passividade, desencorajam a criatividade, a flexibilidade do pensamento e prejudicam a aprendizagem ativa, o treino da capacidade de manter a atenção e a destreza motora”.

Para João Guerra, pedopsiquiatra do Departamento de Pedopsiquiatria do Centro Hospitalar do Porto (CHP), a “indisponibilidade de tempo e de calma de muitas famílias e o desejo de ver um sorriso permanente no rosto das suas crianças” contribuiu bastante para o uso do ecrã abaixo dos dois anos. Teve igualmente muita influência o uso massificado e o tempo que os adultos passam em frente a ecrãs. “É um modelo de um comportamento”, diz o pedopsiquiatra, dando exemplos clássicos, de tão repetidos, de bebés e crianças que “têm” de ter um tablet ou um smartphone para comerem ou para andarem de carro.

Não raras vezes Carla Jerónimo vê chegar ao Colégio Peluche, em Cascais, onde trabalha como educadora de infância, “crianças com o telemóvel na mão”. A birra é o desfecho habitual. “Às vezes é difícil acalmar a criança, que tem um misto de emoções, porque teve de largar o que tanto queria e foi contrariada pelo pai ou pela mãe. Mas acaba por esquecer o aparelho e entrar na rotina”, conta a educadora que, cada vez mais, repara em “casos de problemas de socialização, atraso na linguagem ou dificuldade em pegar num lápis”.

O uso exagerado da tecnologia pode prejudicar a coordenação motora (gatinhar, andar, saltar) e a motricidade fina (pegar numa colher ou num lápis) e, mais tarde, causar alterações posturais e problemas visuais, atesta Mónica Vasconcelos. “Deslizando o dedo no ecrã, algumas crianças conseguem empilhar cubos, mas são incapazes de o fazer se lhes dermos verdadeiros cubos”, exemplifica a neuropediatra, frisando que o audiovisual modifica a forma como é recebida a informação. “Nos ecrãs a história é mais rápida, o tempo de concentração é menor, muda-se de cenário muito rapidamente e a atenção está exposta a estímulos fragmentados.”

Se o tempo de ecrã aumenta, automaticamente diminui o período para outras atividades essenciais para a estimulação de áreas cerebrais e aquisição de competências. No futuro, a existência de limitações poderá originar “quadros clínicos como obesidade, dificuldade no sono ou problemas de comportamento”, garante João Guerra, focando a dependência. Por serem excitatórios, alguns conteúdos associam-se à libertação de um neurotransmissor, dopamina, ligado ao prazer e ao desejo de o repetir. “Quando é interrompida essa atividade e a produção de dopamina, naturalmente surgem por vezes reações de grande irritabilidade e descontrolo.”

Teoria esbarra na realidade

Mónica Vasconcelos e João Guerra defendem a restrição por completo de tablets e smartphones antes dos dois anos. É uma recomendação da Academia Americana de Pediatria (AAP) mas “esbarra na realidade”, constata o pedopsiquiatra. Que o diga Teresa Sofia Castro, pós-doutoranda na Universidade Nova de Lisboa, atualmente a desenvolver o projeto longitudinal Famílias iTec (estudo sobre o uso de meios eletrónicos por crianças dos zero aos oito anos) e membro da rede EU Kids Online.

Em 2016, a AAP reconheceu um desajustamento da orientação face ao estilo de vida moderno, até porque os ecrãs conciliam várias funções num mesmo dispositivo. “O distanciamento entre teoria e prática é o que mostra a minha experiência no terreno. As recomendações são aconselhamentos. Como tal, muitas vezes, colidem com a diversidade de cenários e composições familiares”, sustenta a investigadora, que lida com muitas realidades, como a de uma mãe que vive sozinha com o filho e que lhe dá o tablet enquanto se prepara para sair de casa, para garantir que o jovem não corre o risco de se magoar por andar livremente pela casa.

Teresa Sofia Castro, que também tem colaborado na construção de produtos lúdico-pedagógicos dirigidos a famílias e escolas, considera fundamental apoiar as pessoas com informação baseada na evidência e que não “alimente medos ou ansiedades, mas antes privilegie boas práticas”. Diz que cada núcleo familiar “deve ser entendido no seu contexto e sem pré-juízos”. Isto porque “não há fórmulas mágicas nem receitas”. E, se há um forte desenvolvimento tecnológico, também existem “pais digitalmente competentes que combinam e reajustam diferentes estilos de mediação para gerir o uso de ecrãs no contexto familiar”.

Natural do Porto, Teresa tem dois anos e partilha o quarto com a irmã Luísa, três anos mais velha. Numa parede está afixado um acordo familiar com as normas do uso de tecnologias. Assinado por Luísa e pelos pais, Helena Grangeia e Rodrigo Diego, o documento refere que o uso do smartphone não pode exceder os 15 minutos, o equipamento é apenas utilizado em casa, mas nunca antes de dormir, sempre com um adulto por perto, e não pode haver brigas entre as duas manas. “A Teresa ainda não consegue compreender as regras que foram co-construídas com a Luísa. Mas aceita se pedirmos o aparelho, porque passou o tempo estipulado”, afirma Helena, 36 anos, investigadora na área de Psicologia.

O pai das duas irmãs tem 38 anos, é diretor de recursos humanos e conta que Luísa tinha algumas dificuldades para comer. Por indicação de amigos, recorreram a equipamentos eletrónicos e verificaram que o “apetite melhorava” mas, a dada altura, só comia a ver vídeos. “Até que um dia o tablet se partiu. Foi a nossa tábua de salvação.” O uso passou a ser muito mais limitado. Porém, Teresa “nasce já com a Luísa a pedir para ver conteúdos, pelo que teve um acesso mais precoce”, diz a mãe destas irmãs. “Temos a perfeita noção de que o uso de tecnologia pode ser nocivo e, por nós, nem haveria nenhum contacto. Mas uma coisa é o que pensamos, outra o que acontece no dia-a-dia. E, na verdade, é muito difícil evitar o uso completo destes aparelhos.”

Antes dos dois anos, “a negociação não é tanto com as crianças, mas sim dos próprios pais em relação às situações e ao tempo de ecrã que consideram ser ajustado, para garantirem um bom desenvolvimento da criança e uma relação saudável e equilibrada com a tecnologia”, defende Teresa Sofia Castro, que aconselha a visualização de conteúdos adequados à idade e maturidade da criança.

Há pouco mais de um ano, Daniel tinha seis anos quando pegou no tablet, sob o olhar atento dos pais, Elisabete Barros e João Trindade, ambos de 40, para mostrar vídeos do Panda, d’Os Caricas e da Xana Toc Toc ao Miguel, hoje com dois anos. “Nessa altura tinha instaladas no iPhone várias aplicações e músicas para bebés”, comenta a mãe, que faz registos fotográficos dos desenvolvimentos dos filhos para elaborar uma revista para cada um e, de facto, no primeiro número relacionado com o uso de tecnologia, cada um dos irmãos tinha seis meses. “Atualmente, o tablet é partilhado, de forma negociada, respondendo a interesses comuns e individuais.”

Neste lar em Braga, os aparelhos eletrónicos são uma presença banal. A televisão está ligada a maior parte do tempo nos canais Panda ou Disney Júnior, o computador é bastante usado para visualizar fotografias, muitas das quais tiradas pelo Miguel no tablet, no telemóvel ou na máquina fotográfica. “Costumo pesquisar imagens de animais no Google para mostrar ao mais novo. Delira e aprende bastante. Também ouvimos música. Sou investigadora em Tecnologia Educativa no Instituto de Educação da Universidade do Minho e o meu marido é proprietário da Portugaltripsandtours, uma empresa na área do turismo, e as tecnologias são ferramentas essenciais. Estão disponíveis para trabalho e lazer”, declara Elisabete, para quem a preocupação não passa pelo uso precoce mas sim “o desmazelo de deixar que o Miguel use o tablet ou o smartphone horas seguidas ou não observar o que está a visualizar”. Estimula, assim, a realização de atividades como pintura, colagens, jardinagem, culinária ou brincar livremente.

Helena e Rodrigo sublinham a importância de sair à rua com a Teresa e com a Luísa, que brincam imenso juntas. “Temos um parque infantil perto de casa onde andam de bicicleta ou de patins”, diz Rodrigo. Foi a tia materna quem primeiro apresentou as novas tecnologias ao Rafael e depois a avó paterna, após os dois anos. Liliana e Renato começam a pensar na segurança, apesar de ser “um problema para mais tarde”. Para já, o uso é muito controlado. “Vê sobretudo vídeos de construção de legos, que depois reproduz”, menciona Liliana, que acredita na sensibilidade de cada pai ou mãe.

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