A pandemia domina as nossas vidas. Depois do confinamento e do desconfinamento, vivemos agora na expetativa e no medo de um novo reconfinamento. Dizem-nos que é o “novo normal”, um chavão irritante destinado a normalizar o que não é normalizável, porque se alguma coisa se pode por ora concluir acerca da vida em pandemia é que esta constitui um “novo anormal”. Entretanto, se tudo correr bem, se as pessoas e as famílias puderem ter férias de verão, se o turismo animar, a economia acordar e a crise for gerível, os portugueses voltarão às escolas e aos empregos nos meados de setembro.
Por ser professor, o final deste ano letivo atípico suscita-me uma reflexão preocupada. Em setembro, no regresso, do pré-escolar ao superior, crianças e jovens terão estado seis meses (desde março) fora da escola ou da universidade. Sim, o zoom, em modelo de sistema de emergência, substituiu o ensino presencial. O meu ponto é esse: substituiu-o mesmo? E pode substituí-lo? Tenho dúvidas, que se prendem não com as potencialidades do ensino a distância e do uso das novas tecnologias - obrigando os professores a inovarem métodos e conteúdos – mas com o que particularmente significa a ausência de ensino presencial no Portugal de 2020.
Do ensino pré-escolar ao final do secundário ou da universidade, a escola é a mais importante e insubstituível instância de sociabilidade, de desenvolvimento cognitivo, de apreensão de conhecimentos e de criação e aperfeiçoamento de competências relacionais, sociais, cívicas, etc. Nada substitui a empatia do contacto humano em sala de aula, a espontaneidade das relações ali (como nos intervalos ou recreios) estabelecidas, a rede de colegas que vemos e com quem falamos, a rapidez do debate sobre dúvidas, a transparência dos modelos de avaliação. A mediação do ecrã do computador, via zoom, dificulta tudo isto. O que tivemos de fazer, desde março e até setembro (se não tivermos de o continuar a fazer no outono), foi enviar crianças e jovens para casa, devolvê-los à família e, muitos, à solidão, num absoluto retrocesso civilizacional. Mais: a ausência da escola agrava muitas desigualdades económicas e sociais, das crianças para quem no refeitório está a única refeição do dia (sim, isso acontece em Portugal!), às que, desprovidas de uma pedagogia mais próxima, podem perder o lugar no que muitos chamam o “elevador social”.
Excetuando os lares perfeitos (algum estudo poderia quantificar quantos são em Portugal), onde pais ou avós tiveram todo o tempo para substituir a escola, sabem como fazê-lo e têm os meios digitais para o fazer, a “desescolarização” criou enormes tensões domésticas: pais ou mães (um ou os dois), em teletrabalho, tendo de dividir um tempo indivisível entre eles e o acompanhamento escolar de crianças que não são autónomas, ou jovens que se ligavam à aula virtual e ao facebook ou à netflix ao mesmo tempo, vezes o número de filhos em casa, as refeições em casa, a convivência em casa, o computador que houve que comprar, a net que não chegava para todos, a sensação de que à família se pediu, de repente, como um ultimato moral e social, que substituísse o que não é substituível – a escola. Far-se-ão no futuro inquéritos, barómetros, estudos, teses sobre a escola e a pandemia, sobre os conteúdos que houve que simplificar e talvez empobrecer, e sobre os modelos de avaliação, muito expostos à tentação da fraude nos alunos mais velhos. Mas alguma coisa escapará sempre a esses estudos: a dimensão das rotinas alteradas, os sacrifícios de organização familiar, o cansaço de pais que nunca puderam deixar de ser profissionais dos seus ofícios e, ao mesmo tempo, professores mais ou menos improvisados e em horário completo.
José Miguel Sardica
Fonte: RR por indicação de Livresco
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