Conhecer uma variedade de palavras, distinguir diferentes sons, saber manusear o livro são requisitos que podem fazer a diferença na leitura e na escrita. Ao chegar ao 1.º ano do ensino básico, as crianças trazem do pré-escolar um conjunto de competências básicas que as preparam para estes desafios. “A aprendizagem da linguagem oral e escrita é um processo de apropriação contínuo que se começa a desenvolver precocemente e não exclusivamente quando existe ensino formal”, contextualiza Ana Teixeira, educadora.
No jardim de infância as aprendizagens acontecem de forma lúdica, mas sempre com intencionalidade, ou seja, com um propósito. Assim, desenvolvem-se atividades direcionadas para preparar as crianças para o domínio da linguagem oral e abordagem à escrita. “Num ambiente rico e estimulante, tanto em materiais como em experiências, que é preciso criar”, explica Goreti Carneiro, educadora de infância que, por estes dias, dá os últimos “retoques” numa turma de finalistas do pré-escolar.
Para estimular a leitura, recorre-se, como seria de esperar, à literatura infantil. Mas não importa apenas o conteúdo. “A forma como o educador conta uma história é muito importante para despertar o interesse e a curiosidade por aprender a ler”, frisa Goreti Carneiro. “A criança aprende a ouvir, associando os sons às letras e, assim, se trabalha a consciência fonológica.” Na escrita, promove-se o contato informal com as letras. “Jogos de memória, quebra cabeças e dominós de sílabas, são atividades que ajudam a exercitar o que a criança já sabe e a aprender novos conteúdos”. Faz-se também o registo escrito de situações do quotidiano.
A par destas preparam-se outras aproximações à escrita. Com atividades que trabalham a motricidade fina e grossa, através de desenhos, trabalhos manuais, recortes e colagens, explica outra educadora de infância, Adelaide Constante. “Nada se trabalha no jardim de infância de forma estanque”, pelo contrário, “é um desenvolvimento global que se pretende”. E que segue as Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar, estabelecidas pelo Ministério da Educação.
Sons e letras
Sensibilidade aos sons e conhecimento das letras são competências que facilitam a aprendizagem da leitura e da escrita. Ao longo da conversa com o Educare.pt, São Luís Castro, investigadora nas áreas da Psicologia Cognitiva e Psicologia da Linguagem, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto explica como estas noções estão implicadas.
A primeira diz respeito à capacidade da criança para discriminar pequenas diferenças entre os sons. Como, por exemplo, distinguir o “pe” do “me”. Ora, dessa distinção depende também a correção da escrita. “Se a criança ouve um som indistinto não vai saber se a palavra se escreve com “pe” ou “me”, será algo difuso”, explica. A segunda carece de menos explicações. Mas não deixa de ser interessante, como faz notar a investigadora, que estudos mostrem que para a criança ser capaz de ler textos e palavras desconhecidas não precisa de conhecer as letras todas, apenas 70%.
As observações de São Luís Castro coincidem com a sua participação num projeto internacional de avaliação da alfabetização precoce, designado por Mabel, sigla de Multilanguage Assessment Battery of Early Literacy. Investigadores ingleses, espanhóis, eslovacos, checos e portugueses averiguam as capacidades da criança que inicia a leitura e a escrita. Fazem-no para poder acompanhar o seu progresso e fazer o diagnóstico de eventuais dificuldades de aprendizagem de uma maneira consistente em vários países europeus. A recolha de dados em Portugal vai começar.
No final, esclarece a investigadora, “o objetivo é dar aos professores indicações sobre que resultados deve ter a criança que está no primeiro ano face a um conjunto de tarefas (sobre a noção dos sons das palavras, o conhecimento das letras ou a sensibilidade à rima) se estiver no seu desenvolvimento normal. Ou seja, resultados em tarefas relevantes para a leitura e a escrita e que importa perceber se a criança as domina e com mais ou menos facilidade”.
A versatilidade da história
A versatilidade educativa da história, ressalta nas explicações que as educadoras deram ao Educare.pt sobre a abordagem à aprendizagem da leitura e escrita. Parece coisa simples, mas por detrás do ato de contar uma história, existem inúmeras possibilidades pedagógicas. Que não se esgotam nas mais óbvias: desenvolvimento da linguagem e da formação pessoal e social, a típica “moral da história”. Com recurso a histórias também se ensinam noções de matemática. Adelaide Constante ilustra toda esta dinâmica, ao passar em revista, por telefone, uma das suas mais recentes “aulas”.
Tudo começa com a história de Elmer, o elefante às cores, da autoria de David McKee. Desde logo, as crianças aprendem que ser diferente não faz mal. Ora, como o Elmer é todo colorido, Adelaide aproveita para ensinar aos alunos, entre os 5 e os 6 anos, o significado da palavra “colorido”. Explica que são cores variadas. E, assim, as crianças vão enriquecendo a linguagem com palavras que desconhecem.
Contar quantos elefantes estavam, quem apareceu pelo caminho e fazer essa sequência na história, tudo isto, remete as crianças para noções de matemática. Com fichas trabalham-se mais competências: a coordenação óculo-motora, o raciocínio lógico. As crianças são desafiadas a pintar o desenho do elefante, mas sem juntar duas cores seguidas. O que implica também que as cores de baixo não coincidam com as de cima. “Para um adulto isto é facilíssimo, mas para uma criança é difícil e exige uma atenção grande”, esclarece a educadora.
Contagens de grupos de elefantes permitem à criança associar a quantidade ao algarismo. “Porque não basta memorizar os números”, adverte a educadora. “As crianças devem perceber que o 5 corresponde a cinco objetos.” Numa ficha, têm de colorir apenas o número de elefantes que é pedido e noutra pintam o número de círculos correspondente ao número de elefantes. Novamente, surge a matemática, mas agora o português também está implícito.
Pelo caminho muitas mais coisas aconteceram. Adelaide leu o título da história, apontou as frases com o dedo, “para as crianças perceberem a direcionalidade, isto é, o sentido da escrita, que se faz da esquerda para a direita, de cima para baixo”. As crianças interpretaram a história, falaram na sua vez, ouviram os colegas e estiveram atentas, concentradas nas tarefas. Tal como tem de ser no pré-escolar e como terá de ser ainda mais no primeiro ano.
Como a linguagem é transversal, frisa Ana Teixeira, “todas as outras áreas contribuem para a sua aquisição e desenvolvimento”. Questionar e reformular o que as crianças dizem, “fomentando o diálogo entre o grupo com cada criança”, especifica, “é um contributo importante para a expansão do vocabulário e o domínio de frases mais complexas”. A comunicação oral “vai permitir à criança não só utilizar adequadamente frases de diversas formas e tipo, bem como fazer as concordâncias de género, número, tempo”.
Além da comunicação oral, para preparar a aprendizagem da leitura é essencial, segundo Ana Teixeira, a consciência linguística e cada uma das suas três dimensões. A saber: a consciência fonológica, consciência da palavra e consciência sintática.
Percebe-se a teoria com exemplos de como se trabalham, na prática, estas consciências. Com as tradicionais rimas, pede-se à criança que identifique os sons iguais e daí chega-se à consciência fonológica; para a criança compreender a palavra pede-se que numa frase acabada de formular, substitua uma palavra por outra; por fim, verifica-se que a criança compreende as regras de organização gramatical das frases quando esta reconhece uma frase incoerente e, mais tarde, consegue até perceber o motivo e corrigi-la.
Não “massacrar” com o ABC
Entenda-se: é bom que as crianças conheçam palavras variadas antes de aprender a ler e a escrever. Mas “não é que precisem, no sentido de que se não tiverem também não recuperam”, tranquiliza São Luís Castro. Segue-se uma explicação, mais detalhada. “Uma criança que tenha um vocabulário mais rico, possivelmente também consegue ouvir com mais nitidez palavras diferentes e ter a tal perceção fina dos sons, o que lhe permite, depois, fazer a correspondência com o escrito. Se a criança chega à escola com um vocabulário reduzido vai ter de aprender muita coisa ao mesmo tempo: as palavras que não conhece, a forma como as palavras se escrevem, os sons associados às letras.”
Ora, ter vocabulário é bom, mas o que ajuda mais, especifica a investigadora, é ter alguma sensibilidade às características dos sons das palavras. Portanto, ter a capacidade de notar pequenas diferenças entre “que” e “gue” ou entre “que” e “de”. No pré-escolar, trabalham-se estas questões com recurso a lengalengas infantis e rimas. Algo que “as crianças gostam muito porque associam o prazer da música com a linguagem”.
Em casa, “o que os pais e as mães podem fazer - tendo em conta o que a ciência mostra - é despertar nas crianças o interesse pela linguagem, o prazer pelas palavras, lendo histórias com imagens e brincando com as palavras”, recomenda São Luís Castro. Sem perder de vista que as crianças não se interessam todas pela linguagem da mesma forma. Tanto a leitura em conjunto, como outras tarefas associadas a estas aprendizagens não devem causar ansiedade, alerta. “Desenvolver a sensibilidade ao som das palavras é muito importante, mas isto tem de ser feito de uma maneira que seja prazerosa.”
Como? São Luís Castro partilha algumas ideias. Se a criança mostrar interesse por um som em particular, os pais podem tentar ensinar palavras associadas a esse som. Um jogo deste género será melhor opção do que estar a tentar que a criança aprenda vocabulário através de histórias que não lhe interessam, compara a investigadora. “Mas se tudo isto vem acompanhado de ansiedade é um problema.” Umas crianças podem gostar de ouvir histórias e outras preferirem jogos desportivos.
Seja como for, há uma coisa que todos os pais precisam ter em mente. “Andar atrás da criança a massacrá-la para antes de chegar à escola saber dividir a palavra é contraproducente”, alerta a investigadora, “porque introduz uma certa ansiedade, naquele aspeto que a escola costuma trazer que é a preocupação por conseguir ter bons resultados”.
Fonte: Educare
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