Os grandes temas da nossa vida social, na verdade, nunca se resolvem definitivamente: encontram, quando muito, equilíbrios que parecem estáveis durante um tempo mas acabam por ser desafiados por novas ideias ou pelo recrudescer de ideias que pensávamos terem sido ultrapassadas ou desatualizadas.
Recentemente assumiu uma grande visibilidade em Portugal a discussão do “velho” tema da Liberdade na Educação. Trata-se de um tema com uma complexidade enorme que pode ser olhado sob múltiplas dimensões. Como “começo de conversa” existem algumas questões que vale a pena formular: “Liberdade para quem?”, “Liberdade para quê” e “Liberdade como?”
A Liberdade é para quem? A resposta parece óbvia: é para as crianças. Mas sendo as crianças tuteladas pelos adultos – na maioria dos casos pelas suas famílias – a questão complica-se: a Liberdade deve ser entendida para que os adultos eduquem as crianças segundo as suas convicções. E continuam a surgir perguntas: será que a Liberdade dos adultos é igual à Liberdade para as crianças? Pode ser que não. Por exemplo, é possível que uma criança seja educada numa escola religiosa e que muito precocemente rejeite os princípios da ideologia da sua educação. A liberdade dos pais não se identifica pois, necessariamente, com a liberdade dos filhos, mas é prevalente porque são os pais que detêm a possibilidade de exercer o seu direito à liberdade. A Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu artigo 26 diz explicitamente que “Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos seus filhos”. Assim a Liberdade na Educação é um direito que é exercido pelas famílias e não pelas crianças.
Liberdade para quê? Também aqui a resposta parece simples: a Liberdade é uma condição inerente ao ser humano. Não é possível ser plenamente humano se não tivermos a capacidade de ser livres, isto é, a capacidade de optar, ver a vida e agir com os outros. Esta dimensão da liberdade “com os outros” é muito importante para Hannah Arendt: ela defende que somos livres para que a nossa experiência coletiva ganhe uma dimensão que não é possível assumir nos interesses privados. Os interesses individuais são vistos como necessidades, mas a efetiva liberdade só acontece quando agimos com os outros num ambiente de pluralidade.
Uma outra resposta a esta pergunta é avançada por Paulo Freire. Para este pensador, a liberdade é fundamental em Educação não só para nos podermos adaptar à sociedade, mas sobretudo para exercermos um outro objetivo central da Educação: transformar o mundo. Se amputarmos a Educação desta compreensão, deste exercício de transformar o mundo, certamente que a Educação regressa aos seus mais negros tempos assumindo-se como uma árida e previsível repetição de tudo o que foi feito e pensado antes. Enfim a liberdade em educação serve para agirmos com os outros numa perspetiva de transformação.
Como se materializa a Liberdade em Educação? Há certamente dois aspetos diferentes e não opostos desta materialização. Antes de mais parece evidente que a Educação deve assegurar o conhecimento do património cultural e científico das sociedades. Sem este conhecimento a Educação não é livre porque é ignorante (ninguém ignorante é verdadeiramente livre) daquilo que antes tantas e tantas pessoas e sociedades, defenderam e fizeram. Mas a liberdade não fica confinada a este conhecimento do que existe: deve situar-se na possibilidade de inovar, de transformar, de assumir um protagonismo. Só com esta dimensão de transformação é possível que a educação seja verdadeiramente livre na medida em que livremente responde e considera a imprevisibilidade do futuro, ao preparar as crianças para questionar, para investigar, para perceber com a sua ação e as suas perguntas um mundo que certamente não vai ser igual ao seu nem dos seus antepassados.
Dos comentários a estas questões se depreende que os factos recentes que suscitaram o debate sobre a “Liberdade na Educação” se revelam relativamente frágeis para se possa evocar princípios tão essenciais quanto os da Liberdade. Evocar falta de Liberdade só pelo Estado não subsidiar escolas privadas parece pobre. Antes de mais porque nada nos prova que se existir uma escola ao lado da outra, se promove a Liberdade. As escolas podem não diferir em nada no seu sistema de ensino, valores e práticas. Se assim fosse, ir para uma ou para outra seria “trocar seis por meia dúzia”. Em segundo lugar nada nos prova que é necessariamente um atentado à Liberdade a existência de uma só escola. A verdadeira questão é de que forma a escola promove pela sua prática, pelos seus valores, pelas experiências e conhecimentos que proporciona aos seus alunos uma efetiva Liberdade face à ignorância e face à capacidade de transformação e emancipação dos seus alunos. Talvez não haja muitas dúvidas que deve existir – e, na verdade, sempre existiu - espaço para que as famílias que querem dar outro rumo à educação que lhes é oferecida pelo sistema público, possam optar por uma educação diferente. Uma outra questão é considerar que o Estado deve “discordar de si próprio” quando, tendo criado as melhores condições possíveis para proporcionar uma educação de Liberdade, se disponha a sustentar um sistema paralelo. Ressalvam-se obviamente os casos em que o Estado assuma a insuficiência da sua cobertura da rede educativa desde que a iniciativa privada assegure os valores constitucionais como a laicidade e a igualdade dos alunos perante a lei. Mas… talvez haja nesta equação outros interesses que não são exatamente os da “Liberdade na Educação”.
Termino com Hannah Arendt quando escreve: “a presença de outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos”. A Liberdade não mora na escola “a” ou “b” nem obrigatoriamente nas duas, a liberdade floresce onde as crianças têm oportunidade de se conhecerem, de conhecer o mundo e aprender como nele intervir. Com Liberdade, com Igualdade, com Fraternidade.
David Rodrigues
Presidente da Pró-Inclusão / Associação Nacional de Docentes de Educação Especial, Conselheiro Nacional de Educação
Fonte: Público
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