domingo, 15 de maio de 2016

Nesta sala há alunos do 1.º ao 4.º ano (e não se queixam)



Na sala, aquecida por uma salamandra para cortar o frio deste mês de Maio, estão sentados 18 alunos, entre os seis e os dez anos de idade. Para vários deles, tem sido ali, naquela mesma sala, que começaram a aprender a ler, a fazer contas, depois a resolver problemas, a escrever textos, a perceber que as palavras têm funções diferentes, como também os órgãos do corpo, a descobrir para que servem as estações do ano e como se podem preservar animais ou plantas. E tudo isso sempre ao mesmo tempo, porque ali, em Moitas Venda, pequena aldeia do concelho de Alcanena, distrito de Santarém, só existe mesmo uma sala e um professor para todos.

Sejam do 1.º, do 2.º, do 3.º ou do 4.º ano de escolaridade, a aprendizagem é feita em conjunto nesta turma, que é umas das 226 que ainda subsistem no país onde estão lado a lado alunos dos quatro anos de escolaridade do 1.º ciclo. Em Moitas Venda, a pequena escola construída nos anos 50 do século passado parece ser o único ponto de animação desta aldeia que, na manhã de uma quinta-feira, é feita de ruas sem vivalma. Lá dentro, Gabriela e André, do 2.º ano, ajudam-se um ao outro. Primeiro é ela a ler o texto indicado pelo professor, depois é a vez de ele prosseguir, com a colega atenta, a corrigir o que não é bem dito.

Ela está lá desde o 1.º ano. Ele chegou em Setembro passado, vindo de outra escola com uma turma para cada ano de escolaridade. André está contente com a mudança: “Assim é melhor. Trabalhamos mais juntos.” Gabriela diz que sim, apesar de ser essa a única realidade que conhece. E estar a ouvir o que os outros, de outros anos, têm de aprender, não é confuso? “Não me faz nada confusão. Até porque vamos ouvindo e depois até sabemos coisas do 4.º ano”, responde Gabriela, com o apoio de André.

Num canto em volta de um computador, os quatro alunos do 3.º ano ouvem uma história sobre o Natal, ao mesmo tempo que têm de assinalar nos seus manuais as respostas de interpretação corretas. Apesar da visita do PÚBLICO ter sido de surpresa, nenhum deles parece intimidado com aqueles estranhos que lhes entraram portas dentro. Pura e simplesmente, continuam o que estavam a fazer, com o à-vontade de quem se sente em casa.

Nas filas de trás, estão alguns dos oito alunos do 4.º ano, o grupo mais numeroso da sala, todos eles com um ditado para fazer, embora o professor esteja por agora lá à frente, junto das três meninas do 1.º ano, ajudando-as a completar frases. “Já demos as letras todas”, diz Marco Sousa, 41 anos, apontando para os mais pequenos. É o seu primeiro ano como professor titular daquela turma, embora já conhecesse vários dos seus alunos. No ano passado foi um dos professores do Agrupamento de Escolas de Alcanena, a que a escola pertence, a dar apoio extra a estes alunos e também a outros de outras escolas.

De aldeia em aldeia

Diz Ana Coelho, diretora do agrupamento, que esta é uma das apostas que têm estado a reforçar logo a partir do 2.º ano de escolaridade, porque constataram que vários dos alunos chegavam ali “com muitas dificuldades, sobretudo a nível de leitura”. Foi esse o caso de André. Quando começou o ano quase não conseguia ler, conta o seu professor, satisfeito por ouvi-lo agora a ler quase sem hesitações, embora sob o olhar atento da sua colega de carteira, Gabriela.

No 2.º ano existe reforço a Português, no 4.º ano é a vez das Oficinas de Matemática, que, segundo Ana Coelho, têm como principal objetivo a promoção de estratégias de resolução de problemas, precisamente um dos domínios em que os alunos portugueses, do 1.º ciclo ao secundário, revelam maiores dificuldades. 

Há também apoios dirigidos a outros conteúdos e aos 150 alunos com Necessidades Educativas Especiais que estudam neste agrupamento onde estudam 1580 alunos, que se estende por 28 escolas do jardim infantil ao secundário, que distam entre si “entre dez a 12 quilómetros”, mas com acessos por pequenas estradas, que tornam a deslocação mais lenta. E, por isso, há que ter professores com tempo, para “percorrerem dez lugares diferentes” de modo a garantir nas aldeias o mesmo tipo de apoio que é dado nas escolas situadas na sede do concelho.

É outra das apostas deste agrupamento. Ana Coelho afirma-o na escola secundária de Alcanena, sede do agrupamento. Marco Sousa repete-o na pequena escola de Moitas Venda. “Temos que garantir igualdade de oportunidades a todos os nossos alunos”, o que passa também por “minimizar o isolamento” dos que vivem nas aldeias. 

Mas voltemos à pequena escola de Moitas Venda e ao grupo do 4.º ano, o que está a fazer ditados, embora não seja o professor quem esteja a ler os textos. Como acontece com a leitura, no 3.º ano, também no 4.º é o colega do lado quem dita o texto. É esta a tarefa do Tomás, enquanto Ricardo vai escrevendo o que ele lê, para pouco depois passar o caderno ao colega para este corrigir o que está mal escrito.

“Fazemos quantas vezes os erros?”, pergunta uma das alunas do 4.º ano ao professor, quando um dos colegas acabou de lhe corrigir o texto. “E os acentos ao contrário também são erros?”, pergunta outro.

“Com quatro anos ao mesmo tempo, os alunos têm de colaborar com o professor”, responde Marco Sousa, quando interpelado sobre esta prática de colaboração entre pares. Embora considere que esta situação de ter todo o 1.º ciclo na mesma aula não é a ideal — “só dois anos já era bom”, diz —, este docente também aponta algumas vantagens: “Os alunos aprendem a ser mais autónomos do que os que só estão numa turma do mesmo ano.” Mas, frisa, há uma condição prévia para que tudo possa correr bem. “O professor que ensina a quatro anos ao mesmo tempo tem de ter tudo muito mais planificado e preparado previamente do que os outros.”

Naquela escola com vista para a serra de Castro d’Aire, o próprio Marco Sousa é um fenómeno que se encontra em vias de extinção pelo país fora, porque quase já não há professores do sexo masculino no 1.º ciclo. Dizem as estatísticas da Educação que pelo menos 86% dos docentes deste nível de escolaridade são mulheres. “É verdade que os alunos não estão habituados a ter professores do sexo masculino nestas idades mais pequenas, mas até acho que o facto der ser homem constituiu uma vantagem no controlo do comportamento da turma. Claro que já me conheciam antes e, por isso, a habituação também foi mais fácil”, relata.

Num estudo recente do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre a organização das turmas, alertava-se que, “tendo em conta as tendências demográficas recentes e caso se mantenha a resistência ao encerramento de escolas com reduzido número de alunos, haverá uma tendência de aumento” das chamadas turmas mistas, as que têm mais de um ano de escolaridade na mesma sala, o que não contribuirá para a melhoria das aprendizagens. No total, quase um terço das turmas do 1.º ciclo do país tem alunos de mais de um ano de escolaridade. 

A diretora do agrupamento explica que a opção pelas chamadas “turmas mistas” tem ali duas vertentes: o de não existirem nas aldeias o número de alunos exigido por lei para abrir mais salas (são necessários 26 para se ter uma turma de um só ano), mas também a vontade de não os deslocar para locais longe da sua residência, que tornaria mais difícil a já complicada vida da maior parte dos pais destas crianças: “Muitos deles trabalham nas fábricas de curtumes e têxteis que existem aqui em Alcanena e os horários dependem da produção. Entram às 8h da manhã, mas em alturas de maior movimento não têm hora de saída.”

Por agora, no agrupamento de Alcanena, não se concretizou o presságio do CNE quando à redução da qualidade das aprendizagens nestas turmas com mais de um ano. Pelo contrário. As duas escolas que têm os quatros anos do 1.º ciclo na mesma sala foram também as que no ano passado tiveram melhores médias nos exames finais de Português e Matemática: 3,7 numa escala de 1 a 5, o que as levou a ter um lugar entre as 600 com melhor posição no ranking, de um total de mais de quatro mil.

Provas finais

Ana Coelho considera que, para tal, contribuiu o facto de serem turmas mais pequenas do que as existentes noutras escolas e os seus alunos acabarem por ter, por isso, apoios mais personalizados. Mas também frisa que estes resultados se devem, em muito, ao facto de os professores do 1.º ciclo elaborarem planos de ação anuais, com base na análise feita aos resultados dos alunos, sendo estes monitorizados regularmente de modo a que as dificuldades possam ser diagnosticadas atempadamente. Por exemplo, em Novembro passado, uma equipa de professores também integrada por Ana Coelho correu todas as escolas do agrupamento com 2.º ano para fazer um diagnóstico de como os alunos se estavam a sair na leitura. No final do ano farão o mesmo, mas desta vez para testar o cálculo.

Por terem desenvolvido esta monitorização, e também porque os alunos do 5.º ano realizaram exames de final do 1.º ciclo no ano passado, o agrupamento decidiu não fazer, em Junho, as provas de aferição do 2.º, 5.º e 8.º ano que a meio do ano letivo, por decisão do Ministério da Educação, vieram substituir os exames do 4.º e 6.º ano. Mas será um dos poucos agrupamentos do país onde os alunos destes anos farão provas finais, que serão elaboradas pelos professores da casa com base nas matrizes nacionais disponibilizadas pelo Instituto de Avaliação Educativa.

“São anos para os quais não temos ainda os indicadores de que necessitamos, porque estávamos a contar que houvesse exames”, justifica a diretora que, contudo, aplaude a decisão do ministério em aplicar provas de aferição nos anos intermédios de ciclo, o que passará a ser obrigatório a partir do próximo ano letivo: “Principalmente no 2.º ano, é uma decisão muito importante porque permitirá um melhor diagnóstico das dificuldades dos alunos”, diz, com uma ressalva: “Vai depender do grau de dificuldade das provas. Se forem para testar o que os alunos não sabem, como aconteceu com os exames, então será um descalabro.”

Na escola de Moitas Venda, Marco Sousa conta que os seus alunos do 4.º ano ficaram “aliviados” quando souberam que não iriam, afinal, realizar os exames: “Ainda são muito novos e a pressão desta avaliação é demasiada para eles”, diz, acrescentando que, no que respeita ao estudo, o resto continuou igual.

Marco Sousa só sairá da escola para o intervalo de almoço, depois de verificar que todos os seus alunos lavaram as mãos e já se encontram sentados na pequena sala de entrada que funciona como refeitório. Antes, a única aluna com Necessidades Educativas Especiais da sala, que tem oito anos, virá apresentar as suas duas “princesinhas”: duas meninas que ao lado dela parecem ser muito pequenas, mas que têm sido as suas companheiras da aventura que também pode ser o início da escolaridade obrigatória.

Reportagem de Clara Viana e Rui Gaudêncio

Fonte: Público

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