Para quem anda de cadeira de rodas ou é invisual, o simples acto de atravessar uma passadeira nas movimentadas ruas da capital pode tornar-se uma aventura.
Quando sai de casa, todas as manhãs, Madalena Brandão tem imediatamente um desafio à sua espera. No cruzamento entre a Avenida da República e a Avenida Júlio Dinis, em Lisboa, onde mora, o passeio tem um desnível de 10 centímetros face à passadeira. Madalena desloca-se em cadeira de rodas, pelo que, para chegar à plataforma onde se situam as paragens de autocarros e daí ao Campo Pequeno, tem de andar em plena estrada, à mercê dos automóveis que por ali passam.
Depois de pelo menos quatro desvios a que o desenho das passadeiras obriga, novo desafio a aguarda já em frente à Praça de Touros. Aqui, a passadeira tem uma rampa, mas excessivamente inclinada. Madalena só a consegue subir sem ajuda porque está numa cadeira de rodas eléctrica.
Hélder Mestre, numa cadeira manual, não tem a mesma sorte. "Isto é sempre um folclore", diz. Ultrapassadas as primeiras dificuldades, estão juntos os três autores do blogue "Lisboa (IN)Acessível", criado no mês de Fevereiro: além de Madalena e Hélder, Filipa Marcos.
Licenciada em Reabilitação Psicomotora, Filipa não tem qualquer deficiência física, mas partiu dela a iniciativa de criar o blogue.
"Esta área sempre me interessou muito. As pessoas não estão muito sensibilizadas para este tema", admite Filipa, que espera que o blogue contribua "para mostrar que é cool ser acessível". Algo que muitas ruas e edifícios de Lisboa ainda não são. Iniciando um percurso que já relataram na Internet, os três seguem pela Avenida da República acima, demonstrando as falhas da via para pessoas em cadeira de rodas.
Por exemplo, mal a Praça do Campo Pequeno fica para trás, em direcção à estação de Entrecampos, Madalena tem de circular uma vez mais em plena estrada, numa faixa reservada a autocarros, já que a altura do passeio é de, pelo menos, 15 centímetros.
Os veículos que ali passam vêem-se obrigados a abrandar e a desviar-se. "Uma vez, um autocarro teve de esperar que eu passasse", já que aquele troço não é suficientemente espaçoso para uma cadeira de rodas e um veículo largo ao mesmo tempo, afirma Madalena. Hélder segue no passeio, porque Filipa o ajudou a subir. Mas também aqui não é fácil circular.
O empedrado, além de não ser muito amplo, é inclinado em direcção à estrada e apresenta obstáculos como postes de iluminação e sinalização e caixotes do lixo. "Não há sensibilidade nem preocupação" para os problemas da acessibilidade, diz Hélder, que assume ter que empregar uma grande força de braços para manter a cadeira direita e não cair na estrada.
Nada a que, aliás, não esteja habituado. Tetraplégico desde os 19 anos, Hélder Mestre continuou a fazer o que já fazia antes do acidente de automóvel que o atirou para a cadeira de rodas: atletismo.
No passado dia 24 de Março, esteve mais uma vez na Meia-Maratona de Lisboa, na prova de deficientes motores, cuja passagem pela nova Avenida da Ribeira das Naus - em mau estado na altura - poderia ter trazido problemas aos atletas. "A única maneira de evitar males maiores seria fazer a travessia do troço a uma velocidade muito moderada", o que acabou por acontecer, conta Hélder no blogue.
Dois minutos para um botão
De regresso ao passeio, depois de ultrapassado o viaduto ferroviário da estação de Entrecampos, Madalena vai relatando a experiência que é andar em transportes públicos como o Metro de Lisboa. "Tenho de telefonar a dizer que vou apanhar o metro e perguntar se os elevadores estão a funcionar." Segundo o Metropolitano, 35 das 55 estações da rede já têm acessibilidade plena e, de acordo com dados de 27 de Fevereiro, 85 dos 97 elevadores estavam operacionais.
A estação de metro de Entrecampos não é uma das que são acessíveis para pessoas em cadeira de rodas. Mas esse não é o único problema de mobilidade da zona, o que levou a que nove associações de deficientes apresentassem a proposta "Lisboa Acessível" ao Orçamento Participativo da Câmara de Lisboa em 2012. O projecto - orçado em 500 mil euros - foi seleccionado para ser executado no prazo de 18 meses e destina-se a eliminar todas as barreiras do eixo Entrecampos-Saldanha, o que significará a adaptação de 81 passadeiras e 16 paragens de autocarro.
De acordo com o Decreto-Lei 163/2006, que regula as acessibilidades de espaços públicos, estas alterações deviam ocorrer num prazo máximo de 10 anos, ou seja, até 2016. No caso dos edifícios novos, a acessibilidade plena deveria estar garantida logo no projecto.
Algo que não acontece, por exemplo, num edifício recém-construído no número 186 da Avenida 5 de Outubro, onde, exactamente em frente à porta de entrada principal, existe uma caixa de electricidade que quase impede a entrada no prédio. "É falta de formação, consciencialização, fiscalização e penalização", resume Hélder Mestre perante o insólito da situação.
As acessibilidades para deficientes em Lisboa parecem, assim, seguir a máxima do anúncio da Prevenção Rodoviária Portuguesa em que Hélder levava dois minutos a abotoar um botão de camisa: "Quanto mais depressa, mais devagar".
Por João Pedro Pincha
In: Público
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