A Direção-Geral da Educação veio recentemente submeter a consulta pública o tão aguardado ‘Referencial da Educação para o Empreendedorismo’. Numa altura em que a retoma económica e outros tópicos da agenda política, como o desenvolvimento de competências digitais e de cidadania, ganham interesse acrescido, esta é uma boa notícia e um passo muito significativo.
De facto, torna-se pertinente aproveitar esta oportunidade para refletir sobre a educação para o empreendedorismo (EpE), enquanto competência essencial que visa capacitar os jovens e dotá-los de competências transversais que apoiam o seu desenvolvimento pessoal, a cidadania ativa, a inclusão social, a empregabilidade e o estado de espírito para transformar ideias criativas em ações empreendedoras, com ou sem fins comerciais.
Estudos de vários quadrantes científicos apontam, há décadas, para os benefícios a médio e longo prazo do desenvolvimento das competências empreendedoras das crianças e jovens em idade escolar. Para além de evidenciarem a possibilidade de a EpE integrar vários conhecimentos transversais e veicular ferramentas com enorme amplitude de utilidade, desmontam o mito de que toda a questão se resume a habilidades empresariais ou a palestras motivacionais – dadas muitas vezes por especialistas, mas que são também alvo de captura indevida por parte de ‘entertainers’.
Do mesmo modo, em ambiente político, existe um longo historial de mais de 20 anos de continuadas recomendações institucionais (UE, OCDE, ONU, entre outras). Por exemplo, em 2006 o empreendedorismo foi reconhecido pela Comissão Europeia como uma das oito competências essenciais para a aprendizagem ao longo da vida. Em 2018, essa posição foi revalidada pela mesma instituição.
Contudo, a realidade da implementação da EpE na escolaridade obrigatória está ainda por se cumprir, quer no espaço europeu, quer nacional. No nosso país, o empreendedorismo é considerado um domínio opcional da disciplina de Educação para a Cidadania, ficando ao critério de cada agrupamento escolar decidir a sua pertinência e enquadramento no seu projeto educativo. Isto contribui para que o número de Programas de EpE na escolaridade obrigatória seja residual.
Conforme investigação realizada, no âmbito do meu programa de doutoramento (1), foi possível identificar que a taxa de penetração dos programas de EpE no ano letivo 2017/2018 foi de 4% e 2,2%, respetivamente, ao nível dos alunos e dos professores. No mesmo ano, num total de 71.823 docentes inscritos em ações de formação contínua, apenas 185 participaram em ações no domínio do empreendedorismo (0,26%). De um total de 3.027 ações de formação, apenas 13 incidiram no domínio do empreendedorismo (0,43%).
Em contraposição com esta realidade, e na senda de uma forte aposta em políticas pró-ativas nesta matéria, a Dinamarca fez chegar, no mesmo período, a EpE na escolaridade obrigatória a mais de 19% dos alunos do primeiro ciclo e a mais de metade dos estudantes do ensino secundário.
A hesitação em dar mais destaque à EpE (algo que é inteiramente dependente de decisão política) produz consequências adversas e perpetua problemas. Avanço aqui apenas com três exemplos. Em primeiro lugar, provoca iniquidade social, na medida em que certas faixas mais prósperas da sociedade podem dotar os seus filhos de conhecimentos fundamentais, que não fazem parte do quotidiano da maioria das famílias, prolongando e aumentando uma divisão entre aqueles que têm acesso a certa informação e aqueles que não têm. Em segundo lugar, é uma barreira ao salutar desenvolvimento do ecossistema empreendedor e empresarial português.
Por último, e atenta a notória ligação e complementaridade entre empreendedorismo e inovação, afigura-se óbvio que a modernização e atualização de vários setores também se ressente negativamente da ausência de projetos educativos que contemplem uma dimensão de empreendedorismo.
Quanto mais desenvolvidas forem as competências empreendedoras mais será possível aos jovens fazer com que aquilo que foi apreendido (por exemplo, pensamento e programação computacional, no âmbito do Plano de Transição Digital) seja transposto em tempo real, a fim de gerar novas ideias, novos produtos, novos conhecimentos e, com isso, valor para a sociedade.
Importa, pois, harmonizar o documento proposto pela DGE com uma visão integradora da riqueza de fontes académicas, cientificamente validadas, que poderão ser de grande utilidade, nomeadamente para o estabelecimento de parâmetros ou referências a boas práticas. Seria, igualmente, enriquecedor conciliar este documento com os inúmeros artigos que invocam estudos de caso e lições pertinentes que poderiam ser transpostas para o nosso contexto escolar.
Também a construção de um quadro de progressão dos alunos e a conceção de níveis de proficiência (baseados no referencial Entrecomp, citado na bibliografia do Referencial) poderiam ser ponderados à luz da matriz estabelecida neste importante documento de referência.
Afigura-se, assim, substancialmente positivo poder-se, neste momento, discutir a disseminação da EpE no ensino público e obrigatório e o correspondente impacto que a implementação efetiva de iniciativas e Programas nestas áreas pode produzir junto da comunidade educativa nacional. Quero, por isso, acreditar que este Referencial contribuirá para dar resposta às orientações estratégicas com consenso a nível internacional e, consequentemente, facilitar a adoção pelas escolas das melhores experiências pedagógicas a desenvolver no domínio do empreendedorismo.
(1) Em ciências económicas e empresariais pela Universidade do Algarve com o trabalho ‘Implementação de Programas de Educação para o Empreendedorismo: Processos de Decisão no Caso Português’, com acesso em https://sapientia.ualg.pt/ handle/10400.1/ 15239A
Presidente do Grupo Gesbanha e Professor Universitário
Fonte: SOL por indicação de Livresco
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