Gaspar, de 13 anos, e Guiomar, de 9, são crianças com capacidades acima da média. Ele quer ser jogador de futebol e já é lateral esquerdo na Escola do Benfica de Vila Nova de Gaia. Ela gosta de andebol e quer ser cientista forense. A família Maganinho abre-nos a porta para a sua história e fala-nos da falta de sensibilidade nas escolas para o tema da sobredotação.
Gaspar tinha apenas sete anos quando a professora primária, sensibilizada para o tema da sobredotação, colocou a possibilidade de o menino ter capacidades acima da média e ser observado segundo a metodologia de Howard Gardner, autor da teoria das Inteligências Múltiplas. Tinha um raciocínio três anos à frente da idade. O caso de Gaspar, agora com 13 anos, não é, no entanto, o mais comum. Estima-se que entre 3 a 5% das crianças matriculadas nas escolas sejam consideradas sobredotadas, mas a maioria está por identificar.
A Associação Portuguesa de Crianças Sobredotadas (APCS ), criada em 1986, tem um longo trabalho feito no terreno e já acompanhou cerca de 1.500 menores com estas características. Helena Serra, responsável da associação, afirma à CNN Portugal que a missão da APCS visa “a diferenciação, a individualização e a inclusão” destes alunos nas escolas. Avançar de ano nem sempre é o mais indicado. "Passar um ano à frente chama-se aceleração e em alguns casos é aconselhável porque já se tem maturidade para isso, mas noutros pode não ser”, diz Helena Serra.
Por outro lado, a APCS procura apoiar todos os pais que pedem "orientação”. Foi o que aconteceu com Cláudia Queirós e Hugo Maganinho, pais de Gaspar e Guiomar, de 9 anos. Esta família de Santa Maria da Feira conta-nos, numa entrevista por 'zoom', o caminho de grande frustração que teve de percorrer devido à falta de consciencialização para este assunto nas escolas. “Foi de loucos”, desabafa Hugo.
Foi na escola primária que Gaspar fez uma série de testes para avaliar as suas capacidades. Testes cujos resultados vão muito para lá do Quociente de Inteligência (QI): “vão buscar as valências motoras, a componente emocional, a de liderança, o vocabulário se é ou não adequado à idade“, explica Cláudia.
A família faz questão de sublinhar que as pessoas associam a sobredotação a “ser-se bom em tudo” ou a miúdos que devoram enciclopédias, quando não é assim. “A criança pode ser, por exemplo, excepcional a nível de desporto e o QI - que é normalmente aquilo a que as pessoas associam a sobredotação - pode não ser elevado”, refere a mãe. Daí a necessidade de desmistificar alguns preconceitos.
“Pensa-se que uma criança com capacidades acima da média é um menino muito caladinho, muito sossegadinho, muito pouco falador… e não, não é nada disso. Não são ratinhos de laboratórios que não falam com ninguém", vinca Cláudia.
Um dos parâmetros que pode indiciar essas capacidades acima da média é a lateralidade cruzada, que tanto em Gaspar como em Guiomar apresentam níveis significativos: “há coisas que eles tanto fazem com o lado esquerdo como com o lado direito”.
A escola primária foi um período estimulante graças a uma professora que “estava sensibilizada” para as necessidades de uma criança com um raciocínio mais rápido do que o dos colegas. “Quando ele colocava questões que iam um bocadinho além da matéria, ela sentia-se até desafiada e chegou a comentar connosco várias vezes que se esquecia que o Gaspar tinha a idade que tinha porque a sensação que tinha era a de que estava a falar com um menino que era três anos mais velho”, conta Cláudia.
Quando um mundo cheio de expectativas se transforma numa desilusão
Gaspar tinha um raciocínio três anos à frente da idade, mas quando chegou ao quinto ano, o seu mundo cheio de expectativas esbarrou na falta de sensibilidade dos professores para as suas características. Ir às aulas tornou-se uma desilusão. A família de Santa Maria da Feira descreve à CNN Portugal como foi este “ano de loucos”.
“Quando chega ao quinto ano, o Gaspar ia com expectativas muito elevadas em relação à escola, mas aquilo foi sendo uma desilusão porque ele não podia colocar questões. Qualquer coisa que saísse fora do programa estabelecido não podia ser, não era para ali e isto foi gerando frustração atrás de frustração. Em termos emocionais as coisas não ficaram fáceis de gerir”, recorda Cláudia.
Apesar de até aparentar se três anos mais velho, emocionalmente Gaspar continuava a ser um menino de 10 anos. “Havia recados a toda a hora de que ele era inoportuno porque colocava constantemente questões nas aulas, porque estava constantemente com o dedo no ar e porque não podia ser sempre ele a responder”, desabafa a mãe. E porque colocava muitas questões, Gaspar era conotado, erradamente, como um menino hiperativo. “O que interessa é pormos um rótulo, o rótulo é que é interessante”, atira Hugo, de forma irónica.
Cláudia e Hugo tentaram sensibilizar o diretor de turma e a própria direção da escola para o tema da sobredotação. Chegaram mesmo a enviar uma carta registada, à qual nunca obtiveram resposta. Helena Serra, da APCS, diz que esta é a realidade na grande maioria dos estabelecimentos de ensino do país, onde não há docentes e profissionais especializados para fazer um acompanhamento destas crianças.
“Como se estes 3 a 5% de crianças fossem entregues à sua sorte. Não se preparam os professores nem as equipas. O Governo não tem pessoas especializadas nas escolas para fazer um acompanhamento”, frisa a responsável.
Sem respostas e sem ajuda por parte da escola, os pais de Gaspar encontraram algum alento no Projeto Investir na Capacidade (PIC) que a APCS desenvolve em vários concelhos do país e que foi acolhido pela autarquia de Vila Nova de Gaia. São “programas de enriquecimento com as próprias crianças para estas desenvolverem as suas competências”, vinca Helena Serra. O PIC abrange diversas atividades, das Ciências às Humanidades, passando também pelas Artes. Este projeto pretende estimular a criatividade e a originalidade destas crianças com capacidades acima da média.
A sessão do PIC era o momento mais desejado da semana para Gaspar e para a família. “O PIC ocorria ao sábado, então o Gaspar passava uma semana inteira a desejar esse momento do sábado de manhã. Era onde ele aprendia mais, era onde ele podia aplicar mais a sua criatividade”, explica o pai.
Gaspar conta-nos o que fazia nessas manhãs: “Estivemos sempre a trabalhar nas artes. Trabalhámos o cinema, o teatro e a música, fizemos um mix e fizemos um filme. Foram poucos segundos, mas um ano inteiro de trabalho”, recorda, sorridente. Estes programas tornaram-se tão importantes para o menino que o levaram a abdicar, por uns tempos, da sua maior paixão: o futebol. É que os jogos de futebol ocorriam precisamente também ao sábado. “Era este o nível de maturidade”, sublinha o pai.
Ele é lateral-esquerdo do Benfica, ela sonha ser "cientista forense"
O pesadelo do quinto ano viria a terminar com a decisão de mudança de escola e a transferência para um colégio onde Gaspar acabou por ter outro acompanhamento. Um acompanhamento que forneceu os estímulos à medida das suas necessidades. Acabou-se o pesadelo e voltou o sonho, o sonho de sempre: Gaspar já não precisava de ir ao PIC e podia voltar ao futebol.
“Agora jogo no Benfica de Gaia a lateral esquerdo”, revela-nos, sem esconder o entusiasmo. “O futebol implica tudo na minha vida, todos os dias. Todos os dias eu abdico uma, duas horas, depende, para me dedicar a isso que é o meu sonho, que é o futebol.”
Depois da experiência com Gaspar, os pais admitem que Guiomar, agora no quarto ano e que também apresenta capacidades acima da média, vai diretamente para o mesmo colégio onde está o irmão.
Sem papas na língua, a menina de nove anos apressa-se a dizer: “Gosto muito de falar, a boca nunca está fechada, eu gosto sempre de falar”. A mãe corrobora esta ideia: “Sempre foi uma criança com muita facilidade em falar. Sempre teve uma facilidade de expressão muito grande, um leque de vocabulário muito alargado para a idade e uma grande capacidade de gestão emocional”.
Ainda assim, em ambos os casos, a possibilidade de avançarem de ano não se coloca: “Para nós, a questão social tem um impacto muito grande. Ter o Gaspar ou a Guiomar com crianças mais velhas um ou dois anos podia trazer outro nível de desconforto”, refere o pai.
E se no caso do irmão o futebol tem um papel central, no caso de Guiomar, o desporto é outro: “Gosto de andebol. Queria entrar na seleção, mas ainda vai demorar um bocado”. Até lá vai sonhando com o que quer ser “quando for grande”. “Eu queria ser médica quando era pequenina, mas agora estou na dúvida entre veterinária e aquelas cientistas, como é que se chamam?”, pergunta, pedindo auxílio aos pais. “Forense, forense”, replica a menina, que acrescenta sorridente: “Eu gosto muito daqueles casos porque eu vejo o Inspetor Max e gosto muito quando a Sílvia entra em campo e começa ali a fazer as coisas. Eu gosto dessas partes”.
Fonte: CNN por indicação de Livresco
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