quarta-feira, 13 de abril de 2022

REFORMA DA MATEMÁTICA: Apostar nas contas de cabeça

Em 2022/23, os alunos do básico estreiam o novo programa de Matemática. Com menos contas feitas à mão, mas mais estatística. Mais aplicações e menos abstração. O Expresso assistiu a uma ‘aula teste’.
São 8h30 e os primeiros minutos da aula, ainda quase metade da turma não chegou e a outra arruma lancheiras e mochilas, são logo aproveitados pela professora Manuela Vicente para dar uso à Matemática. “Quantos já aqui estão? 2+2+2. Quantos? E que parte da turma já se sentou?”, insiste. “Onze vinte avos, doze vinte avos, treze vinte avos”, vão contando os alunos à medida que os restantes colegas entram pela sala do 3o ano da EB 1 da Comenda, em Évora.
Arrumada a turma, começa a lição. Manuela Vicente traz à conversa uma notícia que voltou a ouvir no telejornal. “Sobre a guerra na Ucrânia”, antecipam alguns. Mas não, era mesmo sobre outro aumento dos combustíveis. E se não está nas mãos da turma baixar preços, há uma coisa que pode fazer: ir a pé para a escola. Pelo menos os alunos que moram até 2 km ou 2 mil metros. E quantos são?
Com a ajuda do Google Maps, o Afonso, a Maria Clara, o Gustavo e todos os outros mediram no computador a distância entre a sua casa e a EB1 do Bairro da Comenda. E numa folha do Excel fizeram o registo das frequências (número de crianças que moravam até 1 km, entre 1 e menos que 2, e 2 km ou mais) e construíram um gráfico de barras para ver em que categoria se colocava a maioria. A seguir, calcularam de cabeça quanto é que cada aluno andaria num dia, numa semana, num mês e num ano se fosse e viesse a pé da escola até casa. “E se um aluno andasse 2 mil metros por dia, 10 mil numa semana e 40 mil num mês, o que é que acontecia?”, pergunta Manuela Vicente. “Morria”, respondeu prontamente um dos alunos. Morrer não morria, mas a família poupava dinheiro em combustível, acabaram por concluir.
Nos cálculos feitos de cabeça pelos alunos — não há recurso às contas em pé, escritas no papel —, os números vão-se tornando maiores, mas ninguém desiste. “Ai, mãezinha do céu”, desabafa uma das alunas do 3o ano. “Auch”, queixa-se outro, perante um 5x170. E os cálculos lá aparecem, com estratégias de decomposição: 5x100 mais 5x70. Há um plano neste método.
“A ideia é eles relacionarem os números e treinarem o cálculo mental”, explica Ana Paula Canavarro, coordenadora da equipa que elaborou o novo programa de Matemática para o ensino básico, que irá ser estreado por todos os alunos do 1o, 3o, 5o e 7o anos no próximo ano letivo, estendendo-se nos dois seguintes aos restantes níveis de ensino. Mas nesta turma do 3o ano, e noutras sete espalhadas pelo país, já se testa a nova abordagem. “Mais centrada nos problemas reais, envolvendo os alunos na procura de soluções, a partir de dados que recolhem e recorrendo às tecnologias que são capazes de usar”, sintetiza Manuela Vicente, professora há 32 anos e entusiasta da mudança em curso.

MATEMÁTICA E MUNDO REAL

Em julho de 2021 o anterior Governo revogou os programas e metas curriculares de todas as disciplinas do ensino básico e secundário aprovadas no tempo do ministro da Educação Nuno Crato, passando a vigorar as aprendizagens essenciais, entretanto definidas e aprovadas. No caso específico da Matemática, foi criado um grupo de trabalho para olhar para o que fora feito nas duas últimas décadas e estudar melhorias no ensino da disciplina, tendo sido recomendado e aprovado um novo programa para o básico. No secundário, o processo está mais atrasado e o documento ainda terá de passar por uma discussão pública.
A ideia, explica Jaime Carvalho e Silva, presidente desse grupo de trabalho e professor de Matemática na Universidade de Coimbra, foi criar um programa “mais moderno, mais atento ao que se passa no mundo e mais equilibrado nas diferentes componentes”, diz. “Não faz sentido começar com teoria no 1o Ciclo e encher estes primeiros anos de frações com números enormes. É preciso envolver os alunos, estimular o seu pensamento criativo, capacidade de investigação e mostrar-lhes as aplicações da Matemática no mundo real”, acrescenta.
“O novo programa trata da Matemática que todos os alunos do ensino básico devem aprender. Mantém as suas características essenciais, como o rigor e a abstração, mas trata-as da forma que os alunos consigam apreender, com compreensão e focando-se no que é importante aprender e saber fazer no século XXI, ao lado de outras disciplinas”, analisa Ana Paula Canavarro. Por isso, é logo nos primeiros anos que as crianças vão começar a usar robôs, aplicações e software para tratamento de dados, geometria e modelações. E que o pensamento computacional será estimulado em todos os níveis de ensino.
Neste momento, já foram formadas cerca de 150 pessoas que irão preparar os professores que transmitirão depois os novos métodos, abordagens e princípios em cada escola do país. Novos manuais escolares, ajustados ao programa, estão também a ser organizados, informa Ana Paula Canavarro.

CARTA AO PRESIDENTE

A aula da turma do 3o ano da EB1 da Comenda funciona como um laboratório onde se tenta trabalhar tudo isto. Incansável, a professora vai envolvendo os alunos na procura de respostas ao problema colocado no início: como reduzir o consumo de combustíveis a partir da experiência diária de cada um deles.
Ao velhinho ‘ir ao quadro’ escrever a resposta é acrescentado o preenchimento de células numa folha de Excel e discussões em grupo sobre como fazer um cálculo de cabeça e de estratégias que permitiriam gastar e poluir menos. E, no final, fazem o devido relatório, concluindo quantos quilómetros a menos de carro e quantos euros as famílias poupariam ao fim de um ano se quem pudesse ir a pé para a escola o fizesse. O suficiente para valer uma carta já enviada ao presidente da Câmara de Évora: “Gostaríamos que o senhor mandasse prolongar a ecopista pela Av. Almirante Gago Coutinho até à Escola Básica da Comenda, como assinalámos no mapa, e concluir os passeios, porque, ao vir a pé para a escola, ajudaríamos o planeta, pouparíamos dinheiro e cresceríamos com mais saúde.” O problema está identificado, as contas feitas e os alunos do 3o ano aguardam agora a solução.

Fonte: Expresso via FB

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