Há algo que me inquieta nas efemérides ligadas à deficiência. No afã legítimo de trazer uma determinada condição para a agenda mediática, acabamos por insistir demasiado na ideia do “contributo para a sociedade”. Chega o 2 de Abril e ouvimos que há pessoas autistas com altas habilidades, capazes de trazer incríveis benefícios para a comunidade em várias áreas — da programação informática às artes visuais, passando pela engenharia e pelo activismo climático. É a mais pura verdade e estes feitos têm de ser celebrados. Mas precisamos mesmo frisar tais contributos para consciencializar? Qual é a lógica que subjaz à “narrativa do contributo”? É a ideia de troca, ou seja, pede-se aceitação e acessibilidade sublinhando o que um grupo minoritário tem a oferecer?
Existem mais de mil milhões de pessoas com deficiência no mundo. Este grupo constitui “a maior das minorias”, como nota a activista brasileira Patrícia Almeida. Uma parte pode estar agora mesmo a desenvolver projectos fabulosos, independentemente do grau de deficiência. Pinturas, peças teatrais, receitas deliciosas. Tantas coisas. Outros estarão a fazer coisas giras também, mas não necessariamente rentáveis, mediáticas ou singulares. A sociedade é assim, diversa, e isso vale para todas as pessoas, com ou sem deficiência. Já li livros escritos por pessoas autistas que não falam. Conheci pessoas com deficiência intelectual que gostam de fazer girar rodas. Fazem-no horas a fio. É legítimo pedir respeito, aceitação e acessibilidade a cada uma destas pessoas, seja qual for impacto que as suas vidas venham a ter na economia ou no pensamento global.
Se pegarmos o caso específico do autismo, veremos que a maior parte dos exemplos identificados como “contributos para a sociedade” remete para indivíduos que não precisam de apoio substancial na vida quotidiana. É o caso de Greta Thunberg, a activista sueca que impulsionou a greve climática, ou do empresário Elon Musk, mais conhecido pela criação da Tesla. Mas o espectro é vasto e cada pessoa neurodiversa precisará de um grau diferente de apoio. A maioria das pessoas autistas com quem convivo não está a gerar dinheiro ou ideias revolucionárias. Exigem recursos, cuidados específicos e atenção non-stop dos cuidadores, que por vezes optam por diminuir a carga laboral para poder prestar uma melhor assistência. Estas pessoas autistas têm menos valor? Só podemos reivindicar aceitação para os grupos com deficiência que dão o seu “contributo para a sociedade”?
No inconsciente colectivo, a deficiência é muitas vezes vista como um equívoco que constitui um entrave para a sociedade veloz, eficiente e produtiva. Perante um diagnóstico, os pais de crianças costumam envidar todos os esforços em tratamentos e consultas médicas. Se para os pais esse esforço terapêutico pode visar a autonomia e o bem-estar do filho — objectivos meritórios e desejáveis —, para a engrenagem social, este investimento não descura uma fria lógica económica: quanto mais precoce e intensiva for a intervenção, mais autónoma será a criança na vida adulta, o que a torna em teoria um fardo mais leve para a sociedade. Reconhecer este contexto económico-social ajuda-nos a compreender como “as narrativas do contributo”, certamente bem-intencionadas, são construídas e depois reproduzidas nos dias mundiais desta ou daquela deficiência.
A deficiência sempre fez parte da diversidade humana. Integra o nosso tecido civilizacional, como escrevi aqui há um mês. Devemos promover a consciencialização e a aceitação porque acreditamos em valores como a equidade e a solidariedade. Pedir aceitação invocando o que um grupo minoritário pode oferecer em troca é entrar num terreno escorregadio, pois desloca a discussão sobre direitos humanos para o campo da permuta, do comércio. E os direitos humanos, como sabemos, não se negoceiam.
Andreia Azevedo Soares
Fonte: Público
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