domingo, 3 de abril de 2022

O Asperger que mora no meu coração

Nasceu em Junho, exactamente na véspera do meu exame nacional de Química e, por isso, era na explicação que me encontrava quando o telemóvel tocou. “Já nasceu”, disse-me uma voz comovida do outro lado da linha inexistente. “Não vais sair a meio da explicação na véspera de um exame que, ainda por cima, é tua específica, pois não?” perguntou-me o professor num tom de voz ofendido. Mas eu saí. Claro que saí. Como é que podia ficar, se ele tinha nascido?

Quando ele era bebé, eu gostava de o adormecer no colo, enquanto lhe cantava ao ouvido, na minha voz de cana rachada, um salmo que sempre me acalmou. E muitas outras vezes, sem os pais dele saberem, cantava-lhe as músicas que ouvia em Alvalade na esperança de o trazer desde logo para o lado certo da família.

Ele foi crescendo e eu nunca o larguei. Mas ele tinha coisas estranhas, sabem? Fazia birras de dimensões descomunais, era fixado em números e tinha interesses demasiado específicos. Um dia, tinha ele três anos, fomos à papelaria comprar cromos para uma qualquer caderneta. E enquanto eu pagava ao balcão, ouvi a vozinha dele a dizer qualquer coisa sobre “Izmailov”. Deixem-me só esclarecer que, por esta altura, já ele era obcecado pelo Sporting. E foi por isso que não estranhei, quando olhei para o jornal que segurava nas mãos pequeninas e vi uma fotografia do médio centro sportinguista.

Só que ele não parou por ali e continuou, do alto dos seus três anos, a ler as restantes chamadas de capa do jornal. A dona da papelaria olhava para ele com absoluta incredulidade. E nisto, como que para confirmar o prodígio, começou a dar-lhe revistas e a pedir que lesse o que estava escrito nas capas. E ele lia. Lia tudo. E quando lhe perguntei quem o tinha ensinado a ler, um menino muito sorridente respondeu-me que tinha aprendido sozinho e que não sabia muito bem como. “Acho que foi com as letras e palavras que aparecem nos filmes”, disse descontraído.

Eu fiquei meio assustada. Acabei com a demonstração de habilidade, agarrei-lhe na mão e marchámos para casa. À chegada contei à minha irmã o que tinha acontecido. E ela, com ar aflito, respondeu: “Há qualquer coisa de diferente nele; alguma coisa não está certa.”

Aqui, devo confessar-vos, achei mesmo que quem não estava certa era a minha irmã. É que na minha cabeça imatura eu achava que, mesmo que ele fosse diferente, aquela era uma diferença para melhor. Uma criança de três anos a ler? Caramba, era tia de um pequeno prodígio. Mal sabia eu que a diferença tem várias faces, mas que nenhuma delas é bonita, se vista através dos olhos da sociedade.

E sabem quando é que finalmente me convenci que a minha irmã tinha razão? Não foi quando ele começou a fazer contas de cabeça com vários dígitos em segundos. Também não foi quando descobri que ele sabia a história do Sporting desde a sua fundação. Não foi sequer quando encaixei que ele tinha dificuldade em compreender piadas. Eu soube que havia alguma coisa de diferente, quando, numa feira aqui da terra, ele perguntou as horas e percebeu que já tinham passado as 22h22 consideradas por ele, de forma religiosa, as horas certas para dormir.

Hoje, quase 15 anos depois, identifico um meltdown a léguas, mas naquela altura tudo o que vi foi uma birra de dimensões despropositadas. Mais do que uma birra, na verdade. O que vi foi um verdadeiro colapso emocional numa criança. Um descontrolo que o dominou de forma tal que me fez chorar de ansiedade e fez com que a minha irmã, já em casa, tivesse levado tempos sem fim para o acalmar. Nesse dia eu soube. Não voltei a tocar no assunto com ninguém, mas soube.

Com o passar dos anos outras características foram saltando à vista. Um bom aluno, de facto, mas com incapacidade total para fazer coisas tão básicas como recortar, picotar ou usar um compasso. Até fazer o laço nos atacadores dos sapatos ou apertar os botões de uma camisa se tornavam missões de elevada complexidade. Ele queria, mas era impossível por mais que se aplicasse. E depois chegava a frustração.

E enquanto eu lidava com as dificuldades diárias dele com a ajuda de uma terapeuta que lhe fazia o treino de motricidade, a minha irmã debatia-se com uma questão mais profunda: onde será que fazia sentido procurar um diagnóstico?

Ainda bateu a algumas portas erradas – mas os erros fazem parte do caminho e uns meses e algumas centenas de euros mais tarde o diagnóstico chegou-nos às mãos. Era síndrome de Asperger, que, como explicava o médico de óculos muito redondos, é “provavelmente a perturbação com expressão mais ligeira dentro do espectro do autismo”.

Foi então que apareceu para me visitar o arrependimento por todas as vezes em que o mandei ficar calado por já não lhe aguentar os solilóquios. Ou por todas as vezes em que o deixei triste com as minhas respostas ao melhor estilo: “Agora estou a estudar; logo já me contas tudo sobre esse plantel de 1987.”

De repente, quase do nada, aquilo que o meu sobrinho era tinha um nome. E eu estava horas presa à Internet a ler tudo aquilo que podia sobre o assunto e a pensar no que podia ser feito para o ajudar. Às vezes, olhava para ele e tinha medo. Medo que ele crescesse infeliz, incapaz de socializar, demasiado perdido nos seus próprios interesses tão particulares e eternamente incapaz de perceber uma insinuação ou a doçura que pode conter uma boa dose de ironia.

Mas agora ele é adolescente. Está a tirar a carta de condução. Continua a fazer contas de cabeça, independentemente do número de dígitos, mais depressa do que uma calculadora. E continua a não conseguir usar um compasso e a prender os atacadores dos sapatos de forma bastante atabalhoada. Mas isso, tal como saber o nome dos jogadores do Sporting que marcaram os golos no jogo contra o Salgueiros na segunda volta de uma das épocas de mil novecentos e troca o passo, faz parte daquilo que ele é. E o que ele é? É um adolescente com uma perturbação do espectro do autismo. Urge perder o medo de o dizer.

Estima-se que 20 a 25 crianças por cada 10 mil tenham esta perturbação, que afecta mais rapazes do que raparigas, e que é bastante mais comum e menos problemática do que as formas mais “clássicas” de autismo. Em 2015, no mundo, cerca de 37,2 milhões de pessoas teriam síndrome de Asperger. E ainda assim, apesar de ser tão comum, continua tão pouco falado. É quase como se as pessoas sentissem que devem esconder – mas não devem. Não devem esconder a síndrome de Asperger, nem nenhuma outra forma de autismo. Tal como não devem esconder nenhuma outra diferença.

Ontem, dia 2 de Abril, celebrámos o Dia Mundial da Consciencialização do Autismo. E a história do meu sobrinho é o meu contributo. Muitas outras histórias existirão por contar, de muitos lugares diferentes do espectro. Lugares de mais difícil acesso, onde não existem oralização ou interacção significativas. Lugares mais duros. Lugares de dolorosa aceitação. São as histórias das pessoas neuro-atípicas e das suas famílias. São as histórias de pessoas iguais a nós – mas para quem o mundo é totalmente diferente.

Carmen Garcia

Fonte: Público

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