Lúcia Fisteus tem uma amiga que mora dois andares acima dela no prédio onde vive desde 2015, em Lisboa. É uma senhora mais velha, também sozinha, que a ajuda em caso de emergência, a acompanha ao médico e desce, para a ver, no momento de aquecer a refeição que o apoio domiciliário da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) entrega às terças e sextas-feiras para toda a semana.
Antes disso, Lúcia pouco comia, a não ser iogurtes. Bebia água com os comprimidos que o psiquiatra lhe receitou para superar um entre os muitos momentos da vida que lhe trouxeram dor. O ex-companheiro, que saiu de casa em novembro passado, cozinhava e dava-lhe “muito apoio”. Juntos iam a concertos ao ar livre, ao cinema, e passeavam na rua de mão dada. “Toda a gente olhava”, diz, rindo. “Tínhamos uma vida social mais agitada do que pessoas normais.” E uma vida conjugal feliz. Lúcia chama “normais” às pessoas (como o ex-companheiro) que não têm uma deficiência como ela. Nasceu com uma paralisia cerebral, resultante do parto, que a deixou sem mexer as pernas.
A amiga do 4.º andar, e outras pessoas, estão lá para o que for preciso. E essa é uma das muitas razões pelas quais não quer deixar esta casa — agora que a Santa Casa lhe propõe uma outra, com uma renda abaixo dos 560 euros (que paga com o apoio de 500 euros que a SCML lhe dá para o efeito). “As pessoas sem deficiência não percebem isto, mas o importante, para nós, é se há condições no prédio, se estamos enquadrados na comunidade e sentimos o apoio por parte dos vizinhos. Para nós, deficientes, não é justificável a questão financeira.”
Pedimos a Lúcia que comentasse as propostas do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social para as pessoas com deficiência que estão, neste momento, em processo de consulta pública, e que serão posteriormente apresentadas no Parlamento. A saber: a nova Prestação Social para a Inclusão, que prevê o pagamento de uma prestação única para as pessoas que recebem a Pensão Social de Invalidez ou o Subsídio Mensal Vitalício (que serão ambos extintos), e o novo Modelo de Apoio à Vida Independente para Portugal, que irá permitir que quem tem uma incapacidade igual ou acima dos 60% possa ter um assistente pessoal.
Na prática, estes assistentes pessoais servirão para ajudar em atividades da vida diária (higiene, alimentação, deslocações, por exemplo) definidas pela pessoa com deficiência com os Centros de Apoio à Vida Independente (CAVI). Estes assistentes serão pré-selecionados por esses centros, com quem quem celebrarão contratos de trabalho em comissão de serviço, com formação obrigatória. É o que está previsto.
Uma e outra proposta deste Governo — nova prestação e apoio à vida independente — inspiram-se no princípio da cidadania plena. Mas não é assim que Lúcia Fisteus as vê. “A Vida Independente não pode basear-se só num assistente pessoal que dá apoio durante umas horas por dia. Há as pessoas que não têm família e há as pessoas de quem as famílias não querem saber.” Como, diz, é o caso dela.
Além disso, defende que o dinheiro para contratar um assistente seja pago diretamente à pessoa portadora de deficiência, com um sistema de fiscalização. “Defendo o poder de escolha da pessoa que vai entrar na nossa vida, na nossa intimidade, muito mais do que a nossa melhor amiga entraria.”
“Uma pessoa imposta”
O certo, prossegue, “seria termos o direito de escolher, contratar e despedir”, se necessário. “Temos de ter empatia com a pessoa que, em muitos casos, vai dar banho, vestir, vai ser as nossas pernas e os nossos braços. Não pode ser uma pessoa imposta”, afirma. Ora, continua, “o que estão a propor é que sejam os CAVI, que são instituições particulares de solidariedade social (IPSS) a poder candidatar-se” para gerir estes processos. E defende: “Deviam dar a mesma oportunidade às associações, mesmo não sendo IPSS, porque o sistema burocrático para criar uma IPSS é tão complexo que só as que já existem vão acabar por concorrer a esses fundos. E a grande maioria não tem pessoas com deficiência nos seus órgãos de direcção, não tem sensibilidade para os problemas porque não os vivem na pele.”
Mas Lúcia aponta outras falhas ao modelo que está em discussão pública: oito horas de assistência pessoal (o máximo previsto) não vão resolver o problema das pessoas que estão completamente sozinhas. E lembra que viver com dignidade uma cidadania plena passa também pelo direito a não ser institucionalizado.
Com os 325,58 euros que atualmente recebe de pensão mensal, Lúcia Fisteus paga água, eletricidade, telefone, Internet e luz, transportes e despesas do dia, que antes de receber o apoio da SCML incluíam também a alimentação.
Passou a ter esse apoio de alimentação diária desde que ficou sozinha e sem vontade de cozinhar só para si. Foi ficando fraca, com hipoglicemia (baixa concentração de açúcar no sangue), esteve internada, e agora, ao lado da cama, tem um sistema de tele-assistência com um botão — e ligação aos bombeiros — para pressionar sempre que sente que vai desmaiar. Aconteceu várias vezes.
Prestação baixa
Para ficar na casa onde vive — com um elevador suficientemente espaçoso para a sua cadeira elétrica e portas largas para circular facilmente entre divisões, além de ter vizinhos que são como uma família — pretende arrendar os dois quartos livres. Diz que não quer ter de depender de nenhum tipo de apoio financeiro.
Sobre a nova Prestação Social para a Inclusão (que prevê o pagamento de uma prestação única para as pessoas que recebem a pensão social de invalidez ou o subsídio mensal vitalício, representando um ligeiro aumento dos valores atuais, e dá a possibilidade a quem trabalha de acumular a prestação com o rendimento desse trabalho, desde que o valor não exceda os 607 euros mensais) Lúcia também tem críticas a fazer: “A prestação única prevê que uma pessoa com incapacidade igual ou superior a 80% receba 260 euros de valor-base, ao qual acrescem os 91,51 euros do complemento de dependência e, se houver o aumento previsto, para 2018, de 71,59 euros mensais. Assim, essa pessoa recebe 423 euros mensais, ficando ainda a faltar 134 euros para atingir o salário mínimo nacional”, explica.
Ou seja, acusa, o Governo, que define um salário mínimo de 557 euros mensais para as pessoas viverem com dignidade, propõe que as pessoas com deficiência vivam sem dignidade.
Num dos momentos mais difíceis, quando fugiu da casa da mãe e foi morar para Lisboa, Lúcia Fisteus participou num programa da RTP. “Apareceram mil soluções” de pessoas que a tinham visto no programa. Um senhor iria ensiná-la a cantar para depois andar com ela a pedir dinheiro na rua. “Mas nenhuma se concretizou”, ao contrário das soluções que a comunidade e os amigos lhe garantiram na infância.
Na escola, pouco distinguia Lúcia dos seus colegas, a não ser o autocarro adaptado que a transportava. A partir do 9.º ano, passaram a ser os bombeiros da Junta de Freguesia de Lourosa, concelho de Santa Maria da Feira, onde era a casa dos avós, que a levavam para as aulas. Todos ajudavam e os professores facilitavam. “Os meus amigos levavam-me para todo o lado. Ia a festas, divertia-me e apanhei bebedeiras como qualquer adolescente”, recorda.
As gargalhadas que solta escondem um passado de maus tratos pela mãe e a frustração provocada pelo fosso entre aquilo que deseja para si hoje — viver com a dignidade uma vida independente, comprar casa, trabalhar e constituir família — e a realidade onde todos os dias acorda e na qual a caridade se sobrepõe à igualdade.
Fonte: Público
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