sábado, 4 de março de 2017

Língua Gestual Portuguesa: “É preciso mudar muita coisa”

A Língua Gestual Portuguesa (LGP) foi integrada como disciplina curricular nas Escolas de Referência para surdos em 2008. Aos olhos de formadores, intérpretes e especialistas em LGP o facto constitui uma evolução, mas ainda há um longo caminho a percorrer.

De acordo com o Ministério da Educação (ME), há mais de 500 alunos surdos em Portugal, distribuídos por 17 Escolas de Referência para a Educação Bilingue de Alunos Surdos (EREBAS) e 16 unidades orgânicas no país. A Língua Gestual Portuguesa é reconhecida oficialmente na Constituição da República Portuguesa desde 1997, mas o seu ensino continua a ser exclusivo para alunos surdos. As crianças ouvintes apenas aprendem LGP em atividades pontuais realizadas nas escolas.

A situação pode mudar. Em outubro do ano passado, o Bloco de Esquerda (BE) apresentou uma proposta de lei que visa a disponibilização do ensino da Língua Gestual Portuguesa aos alunos ouvintes e que esta seja incluída no leque de atividades extracurriculares.

“Não se compreende que os/as alunos/as ouvintes não tenham qualquer possibilidade consistente de aprender uma língua oficial do país, que lhes permite a comunicação com uma comunidade escolar significativa de colegas e amigos/as que todos os dias encontram na escola, com os/as quais interagem, mas com os quais têm profundas dificuldades de comunicação por não conhecerem a LGP”, lê-se no documento apresentado na Assembleia da República. O Ministério da Educação ficou de analisar a proposta.

Sofia Quintas é formadora de Língua Gestual Portuguesa numa das três escolas de referência bilingues existentes no Porto. Trabalha na Escola Básica Augusto Lessa, do Agrupamento de Escolas Eugénio de Andrade, onde estudam cerca de trinta crianças surdas, com seis intérpretes e oito formadores. Na entrevista com o JPN, foi Fátima Ferreira quem fez a tradução.

Sofia não hesita em concordar com a proposta e nos benefícios que esta poderia proporcionar. “Claro que era ótimo se lhes ensinássemos língua gestual [aos alunos ouvintes], porque mais tarde podia acontecer em qualquer lado cruzarem-se com surdos e, assim, a atitude deles seria diferente, porque já tinham conhecimento da língua gestual”, conta ao JPN.

A formadora destaca a importância desta proposta na promoção da igualdade de oportunidades no contacto entre as crianças surdas e ouvintes e fala da sua própria realidade. “É muito importante sentirmo-nos iguais uns aos outros, é muito importante a igualdade. Eu sou surda, as crianças quando olham se tivessem conhecimento [de LGP], agiriam naturalmente.”

Ao mesmo tempo, e apesar do interesse das crianças, o ensino de LGP a ouvintes pode ser um desafio, pois o trabalho com os alunos não é fácil. “É difícil a comunicação, é tudo muito baseado em imagens, exemplos, tudo o que consigo arranjar, preparar as fichas, preparar jogos de ligação, por exemplo, com um gesto, a palavra, muito vocabulário”, sublinha.

Durante uma visita ao Mosteiro de São Bento da Vitória, Catarina Martins, deputada do BE revelou ao Público a intenção de as propostas apresentadas serem aplicadas já no próximo ano letivo (2017/2018).

Segundo Miguel Augusto Santos, coordenador da Licenciatura em Tradução e Interpretação em Língua Gestual Portuguesa da Escola Superior de Educação (ESE) do Porto, a medida é fundamental e já deveria ter sido pensada mais cedo. No entanto, “é preciso mudar muita coisa” antes de começar a ser aplicada. O professor alerta para a necessidade de ter pessoas habilitadas para o ensino da Língua Gestual Portuguesa. “É preciso pensar se as escolas têm os formadores necessários e aí penso que poderá haver um obstáculo que é alguma falta de formadores, de professores de língua gestual nas escolas. Seria necessário recorrer a mais”, sublinha.

Para o coordenador da licenciatura, “a dimensão bilingue só é, de facto, concretizada quando dentro e fora da sala de aula as crianças têm acesso a esse contexto. E, portanto, a formação das crianças ouvintes é fundamental. As pessoas não estão preparadas, não sabem língua gestual e não conseguem comunicar enquanto não houver essa formação.”

“O meu trabalho é igual ao dos docentes”

A criação de um grupo de recrutamento para os professores de Língua Gestual Portuguesa é outra das propostas que os profissionais mais anseiam ver realizada. Atualmente, os formadores de língua gestual são contratados como técnicos especializados e não como professores, algo que pode ser prejudicial tanto para os profissionais como para as crianças.

“Temos um calendário escolar que agenda o início das aulas para meados de setembro e alguns dos atores essenciais para a educação de crianças surdas, nomeadamente o professor de Língua Gestual Portuguesa e o intérprete, são colocados em meados de outubro/novembro. Estamos a falar de um mês, um mês e meio a menos no calendário escolar”, aponta Miguel Augusto Santos.

Os técnicos são contratados “como figuras estranhas”, alguns com contratos que “nem têm duração de um ano, são contratos de nove meses, o que impede ou pelo menos dificulta a elaboração de um programa, de um plano de ação plurianual.”

Sofia Quintas fala da realidade do seu trabalho como sendo “tudo um pouco confuso. Seria positivo se tivéssemos [um grupo de recrutamento], porque nós somos contratados como técnicos, mas fazemos um trabalho exatamente igual aos dos professores diariamente. O meu trabalho é igual ao dos docentes das diferentes disciplinas. Eu preparo as avaliações, preparo as aulas, preparo as atividades, os planos, tudo como outros colegas professores fazem”.

Face a esta realidade, o Ministério da Educação (ME) anunciou na última quinta-feira que “vai avançar com a identificação e definição dos requisitos de habilitação e profissionalização para a docência da Língua Gestual Portuguesa (LGP) nas escolas públicas”. A medida passa pela criação de um grupo de trabalho que pretende estudar “o enquadramento e regime jurídico da habilitação profissional para a docência no ensino obrigatório”.

O grupo de recrutamento para os professores de LGP, acrescenta o ME no comunicado, “não produzirá efeitos antes do ano letivo de 2018/2019, uma vez que o grupo de trabalho pode apresentar o relatório até ao final do próximo ano letivo.

Como funciona a aula de uma turma bilingue?

“A matéria é exatamente a mesma que a das crianças ouvintes”, conta Sofia. Na sala de aula da Escola Básica Augusto Lessa, “está o professor especializado, o professor titular e o professor de língua gestual”, que trabalham em parceria e vão adaptando os conteúdos de acordo com as necessidades dos alunos. “Todos nós vemos quais são as necessidades de cada um, quais são as dificuldades e tentamos ajustar ao perfil de cada um”.

Os alunos têm aulas de português, matemática, estudo do meio e aprendem Língua Gestual Portuguesa como primeira língua, e o português escrito como segunda, “o que não significa que o português seja uma língua menos importante e que não se dê tanta importância ao ensino da mesma. Trabalhamos em igualdade as duas línguas.”, acrescenta a formadora.

Fonte: JPN por indicação de Livresco

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