Partilhamos, com muitos outros, o reconhecimento da natureza complexa do ato educativo e assim, a natureza complexa da profissão docente. A docência é, ao mesmo tempo, uma atividade intelectual e uma atividade ética; uma atividade técnica e uma atividade relacional. Sendo a docência também uma profissão de serviço, ela é simultaneamente, uma ação de ensino e uma ação de cuidados; tem, na ação quotidiana, dimensões técnicas, mas também dimensões artesanais, dimensões intelectuais mas também dimensões artísticas.
Assim, a formação dos professores é uma ação complexa. O processo de academização da formação de professores nas últimas décadas do século anterior, foi entendido como a progressiva subordinação das instituições de formação de professores à lógica de ação tradicional do ensino superior em detrimento da lógica inerente a uma formação profissional.
O ensino superior tradicional tem sido caracterizado institucionalmente por uma cultura académica baseada predominantemente na compartimentação disciplinar, numa fragmentação do poder centrado em territórios de base disciplinar e num individualismo competitivo que dificulta a coordenação docente e obstaculiza posturas solidárias. Esta cultura institucional desvaloriza muitas vezes as componentes profissionais da formação e promove frequentemente uma versão corporativa da autonomia coletiva e uma versão narcísica da autonomia individual.
Neste processo de academização, as instituições tendem a apresentar uma visão reducionista da docência como uma atividade quase exclusivamente intelectual. Essa visão reducionista não representa a visão profissional da docência que é mais complexa e mais multifacetada, não incorpora a dimensão essencial de serviço e de desenvolvimento humano que ser professor comporta.
A compartimentação disciplinar na qual assenta a organização do ensino representa um processo simplista de divisão de tarefas na formação de um profissional; é um processo de simplificação que não reflete a complexidade quer da atividade docente quer dos contextos em q1ue se desenvolve.
Percebemos melhor isso quando analisamos a natureza dos processos da componente teórica da formação inicial e os comparamos com a complexidade da componente de formação prática na formação inicial. Miguel Zabalza (1989) refere o fenómeno da “hipertrofia funcional das práticas”. Os professores da componente teórica esperam que essa formação inicie os estudantes a toda a complexidade da docência e da vida nas escolas, libertando-os dessa responsabilidade. Libertando todo o processo de ensino superior desse compromisso e deixando espaço muito limitado para a formação prática.
O mesmo processo de simplificação é desenvolvido na pedagogia predominante na formação inicial – uma pedagogia transmissiva que, ao valorizar a transmissão de conteúdos, apresenta o ensino como uma atividade inteiramente previsível e controlável construída na base do modelo industrial.
A produção em massa baseada no modelo industrial exigiu uma pedagogia completamente planeada, baseada em unidades singulares de conhecimento sequencialmente acorrentadas e montadas em estágios pré-determinados de progresso da aprendizagem (anos escolares). A produção de massa requereu uma pedagogia onde as diferentes necessidades e interesses dos estudantes, as suas diferentes competências e até os diferentes ritmos de progressão fossem desvalorizados ou ignorados. Neste contexto, o ritmo de ensino é determinado pela aprendizagem esperada de um estudante abstrato médio, e não pela aprendizagem real de estudantes concretos numa sala de aula. Uma vez que a responsabilidade pela aprendizagem é quase exclusivamente dos estudantes, o ritmo de transferência do conteúdo é pré-determinado e independente do seu sucesso. A compartimentação da vida escolar em relação à vida social e de família - separando a aprendizagem da vida - permite à escola assumir uma uniformidade académica e social, sustentando assim o modo transmissivo (Formosinho & Oliveira-Formosinho, 2017).
A reivindicação do direito à diferença e a consequente valorização das diferenças na sociedade pós-moderna requer a integração dessas diferenças no currículo escolar e a sua consideração como elemento enriquecedor do processo de construção do conhecimento de si, do outro e do mundo. Essa valorização não se deve fazer apenas de modo episódico, quase sempre superficial e cingida a aspetos “folclóricos”, nem corresponder apenas à adição de novos conteúdos, de modo cumulativo, sem questionamento da perspectiva dominante. Esta abordagem transformativa requer uma pedagogia transformativa, uma “pedagogia da equidade”, que envolve os estudantes no processo de construção e produção de conhecimentos e transforma, não apenas as relações do estudante com o conhecimento, mas também as relações entre estudante e professor.
Neste sentido, a “pedagogia da equidade” promove também a interação entre as culturas como condição de crescimento de todos os sujeitos e dos grupos sociais a que pertencem e, ao mesmo tempo, contribui para a diminuição do preconceito social, étnico, nacional, regional ou de género.
Há uma tensão entre a cultura predominante da instituição de ensino superior baseada na produção de conhecimento abstrato e a formação de profissionais de desenvolvimento humano que tem no seu âmago a promoção de competências interpessoais. Há uma tensão entre uma instituição baseada na especialização disciplinar estrita e a formação de professores como profissionais de desenvolvimento humano num sistema social complexo como é o sistema educativo. A formação de professores como profissionais de desenvolvimento humano numa sociedade complexa, multicultural e inclusiva requer uma visão do mundo, do homem e da construção do conhecimento.
Este dilema na formação dos professores é também um dilema do ensino superior no mundo atual – ser capaz de produzir conhecimento praxeológico e incentivar a reflexão crítica, promover de forma integrada as dimensões éticas e técnicas da sua missão. É essencial criar uma cultura superior de formação profissional para poder construir instâncias relevantes para a transformação das práticas.
Para isso é essencial articular ensino, intervenção e investigação sobre as problemáticas profissionais. Deste modo, poderia ser criado um fluxo constante de produção de conhecimento profissionalmente relevante e rigoroso. Deste modo se poderia pôr ao serviço da construção de uma escola inclusiva e multicultural a dimensão essencial de ensino superior que é a produção de conhecimento.
João Formosinho
Professor catedrático aposentado da Universidade do Minho e professor da Universidade Católica Portuguesa.
Texto publicado no JL via FB
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