O tema da constituição de turmas que incluam alunos com necessidades educativas especiais tem suscitado alguma controvérsia, com diversas personalidades e representantes de instituições a manifestarem-se publicamente de forma discordante. As alterações introduzidas ao diploma da constituição de turmas determinam que a redução das turmas com alunos com necessidades educativas especiais só se poderá concretizar se estes permanecerem nas salas de aula em pelo menos 60% do seu tempo curricular.
O Ministério da Educação fundamenta tal proposta no objetivo de induzir mais inclusão associando a redução do número de alunos ao estímulo à permanência destes alunos com necessidades educativas especiais na turma. Na esfera dos princípios, nada a opor. Pelo contrário, parece louvável e desejável que assim seja e que se reforce. No entanto, vejamos a realidade e algumas implicações.
Esta medida tem essencialmente como alvo os alunos com necessidades educativas especiais com a medida educativa de currículo específico individual, cuja permanência na turma é reduzida mas contribuem para a redução do número de alunos por turma, desde que determinado no respetivo programa educativo individual.
Um currículo específico individual determina alterações significativas no currículo comum, podendo as mesmas traduzir-se na introdução, substituição e ou eliminação de objetivos e conteúdos, em função do nível de funcionalidade do aluno. Assim, deve incluir conteúdos conducentes à autonomia pessoal e social do aluno e dar prioridade ao desenvolvimento de atividades de cariz funcional centradas nos contextos de vida, à comunicação e à organização do processo de transição para a vida pós-escolar.
Acontece com regularidade que, sobretudo a partir do 2.º ciclo do ensino básico, estes alunos começam a frequentar apenas algumas disciplinas e ou parte do tempo letivo de disciplinas em contexto de sala de aula. No entanto, o aluno continua a integrar a turma e a frequentar outras disciplinas em contexto de turma, podendo implicar tal situação uma redução de alunos da turma para que o docente consiga promover um apoio pedagógico personalizado sistemático e, em certas circunstâncias, em segurança.
Os alunos com currículo específico individual frequentam essencialmente as disciplinas de expressões (educação visual; educação tecnológica; educação física; educação musical). Algumas destas disciplinas implicam alguns riscos, quer educativos, quer físicos, nomeadamente por envolverem o manejo de material específico que poderá ser perigoso, pondo em risco o próprio ou os colegas. Por outro lado, o sucesso educativo do aluno pode requerer um apoio pedagógico personalizado por parte dos docentes dessas disciplinas. Um docente sozinho e com uma turma com um número regular de alunos sentirá, certamente, dificuldades em lidar com essas situações e em prestar um apoio individualizado necessário e previsto no programa educativo individual.
Analisando o ordenamento jurídico educacional pela ótica dos fundamentos do Ministério da Educação, constata-se que a Portaria 201-C/2015, aplicada aos alunos com currículo especial com idade igual ou superior a 15 anos, fomenta a segregação. Este diploma apresenta uma matriz curricular orientadora e determina as disciplinas e áreas que estes alunos devem frequentar, sendo estas incompatíveis com as disciplinas do currículo comum, independentemente da modalidade educativa frequentada. Por outro lado, o próprio diploma prevê a constituição de grupos de alunos com currículo específico individual para a lecionação das disciplinas da formação académica (português, matemática, inglês, língua estrangeira e oferta de escola). Ou seja, destas orientações decorre que estes alunos são forçados a serem retirados da turma e, consequentemente, a não determinarem redução de turma.
Acontece, ainda, que, no país, existem em funcionamento 353 unidades de apoio especializados para a educação de alunos com multideficiência (119 no Norte; 55 no Centro; 146 em Lisboa e Vale do Tejo; 15 no Alentejo; 18 no Algarve). Todos estes alunos incluem uma turma e grande parte participa em atividades da turma e, consequentemente, de acordo com o respetivo programa educativo individual, podem determinar redução de alunos por turma. Atendendo à frequência e à participação nas atividades da turma inferiores a 60% do tempo curricular, com o novo enquadramento nenhum destes alunos passa a determinar redução de turma. Caso contrário, devem extinguir-se as unidades de apoio especializados para a educação de alunos com multideficiência uma vez que são segregadoras.
Existe, ainda, a situação dos alunos com necessidades educativas especiais que, no âmbito da medida de adequações no processo de matrícula, frequentam o ano de escolaridade por disciplinas. O aluno frequenta parte das disciplinas num ano e dá continuidade às restantes no ano letivo seguinte. Estes alunos requerem, normalmente, um apoio pedagógico personalizado em contexto de sala de aula e, consequentemente, determinam redução de turma. Nestes casos, e atendendo ao perfil de funcionalidade, é difícil que o aluno frequente, no mesmo ano letivo, um mínimo de 60% do tempo curricular na turma. No entanto, as disciplinas a que se encontra matriculado são de frequência integral. Deste modo, estes alunos deixam de poder determinar redução de turma, tal como é determinado no respetivo programa educativo individual.
Numa outra perspetiva, verificamos que, na transição para o ensino secundário, o possível efeito de redução de turma dos alunos com necessidades educativas especiais depende da modalidade educativa selecionada. Assim, aos alunos com necessidades educativas especiais que optarem por prosseguir estudos no designado ensino regular é-lhes inviabilizada a possibilidade de determinar redução de turma. No entanto, os mesmos alunos se prosseguirem os estudos secundários em cursos profissionais já podem determinar redução de turma. Pode depreender-se, deste modo, que os cursos profissionais constituem a modalidade educativa adequada aos alunos com necessidades educativas especiais.
A suposta indução de mais inclusão pode ser promovida por outro tipo de respostas educativas, como, por exemplo, pela coadjuvação, pelo aumento do apoio individual do docente de educação especial em contexto de sala de aula. Todavia, a concretização destas estratégias requer recursos que as escolas não têm.
Em suma, a educação em geral e os alunos com necessidades educativas especiais em particular não devem ser encarados simplesmente como matéria administrativa. Por outro lado, os princípios devem ser coerentes com as práticas. As respostas e as medidas educativas requerem uma completa adaptação arquitetada ao perfil individual de cada aluno.
4 comentários:
De acordo, em toda a linha...
Excelente análise da aplicação do despacho!
Bem escrito e analisado João. No entanto, como também tenho defendido, a montante deste despacho e das suas consequências, muitos dos conteúdos do 3/2008 carecem de ajustamento pois acabam por estar na base de tudo isto.
Tal e qual.
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