Não estamos sempre a ver a mesma coisa quando olhamos para comportamentos hiperativos. Por detrás da hiperatividade está muitas vezes a desatenção. E é esta que é preciso cuidar.
«Se não para quieto, como pode estar atento?» Esta é a queixa frequente de professores e pais ao fim do dia ou à volta dos trabalhos para casa. Mas o universo de perguntas não respondidas é muito maior: por que razão é tão atenta ou atento para as coisas que lhe interessam e tão pouco ou nada para outras? E por que razão tem «brancas» nos testes, quando tudo sabia na véspera? E por que é tão difícil memorizar, embora se lembre de coisas que já ninguém recorda? E por que é que nem as coisas de que gosta consegue levar até ao fim? E por que é tão fácil fazer amizades e tão difícil mantê-las? E por que salta sempre de uma coisa para a outra?
Estas e outras questões, mais ou menos enigmáticas, fazem parte da rotina das inquietações de pais, professores e outros «grandes» que têm de lidar com os mais pequenos e adolescentes que muitas vezes se distinguem por não conseguirem «parar quietos». Certo é: muitas vezes, mas nem sempre. O conceito de hiperatividade é porventura um mau serviço prestado à causa dessa perturbação do desenvolvimento que se chama «défice de atenção». Hiperatividade é apenas um aspeto ruidoso, mas pouco importante, da problemática da desatenção, que prejudica, além do aproveitamento na escola, o comportamento em casa, a interação no recreio e a autoestima. A hiperatividade varia ao longo do dia e das circunstâncias e que se vai atenuando com o crescimento. O problema na atenção é que veio para ficar.
Haverá basicamente dois tipos de distraídos: os que estão de tal forma concentrados numa coisa que não pensam em mais nada (como o guarda-redes à espera do penalty!) e os que prestam «atenção» a tudo, inclusive à mosca que passa, e não se concentram em nada!
É destes últimos, com ou sem a tal de hiperatividade, de que a «gente grande » se queixa. Na verdade, o que de facto os distingue é que os primeiros, os guarda-redes, estão como que muito acordados, em vigília, focados apenas no que é importante e ignorando o que se passa à volta, ao passo que os segundos estão como que menos acordados, passeando pelos seus pensamentos e reagindo por vezes de forma sobressaltada, «hiperativa», aos estímulos que aparecem, quase, metaforicamente falando, quando um telefone toca no momento que estamos quase a adormecer!
Todos passamos diariamente por estes dois estados, ora bem ora mal acordados. A diferença é que nestas crianças e adolescentes é como se o estado «menos bem acordado» entrasse pelas horas da escola e dos TPC prejudicando a sua capacidade para aprender e usar o que sabe. Todas as medidas usadas até hoje para aumentar a concentração – desde as reguadas, agora proibidas por lei, ao levantar a voz, ao sentar na primeira fila, ao trabalhar com pouca gente e coisas à volta, ao desporto, ao café, até aos medicamentos estimulantes – não farão outra coisa se não aumentar o grau de vigília.
A causa principal desta desatenção, hoje tão «diagnosticada» como hiperatividade, estará nos genes, numa tendência herdada e transmitida nos cromossomas, que limita o tempo de prestar atenção a determinado assunto. O estar «menos bem acordado» durante uma aula penaliza a capacidade de bloquear o acesso à paisagem cerebral do que não é importante naquele momento: alguém que riu lá atrás, a mensagem no telemóvel, a preocupação sobre os problemas no recreio ou em casa, a sensação de bexiga cheia… O resultado é o mesmo, com ou sem externalização ou movimento que é no fundo a dita hiperatividade.
Com esta tendência – como com tudo o que queremos reter quando estamos cansados e com sono – as matérias não passam da memória RAM para o disco rígido. E mesmo tendo sido percebidas, não ficaram estáveis para o dia do teste. Não temos nenhum motivo sério para acreditar que haja agora mais gente desatenta do que no passado. O que de facto mudou foi a estrutura familiar e como esta se interrelaciona: as famílias são mais pequenas, os pais estão menos disponíveis, muitas crianças não têm irmãos com quem aprender a partilhar a atenção e os objetos, com quem aprender a esperar, e estão rodeadas de ecrãs e de aparelhos que dão acesso a tudo e no tempo de um clique. Para além destes novos dados, sucede que este comportamento irrequieto poderá até ter sido reforçado em casa, quando adultos, embevecidos pela «personalidade forte» da criança, acham graça a ser interrompidos e ignoram até quando lhes levantam a mão.
A escola passou a ser para todos, indiferente a perfis desiguais no que diz respeito à capacidade para focar. Esta escola democrática não consegue responder com a sua nova pedagogia de tolerância e trabalhos feitos na net que levaram a uma menor interiorização de conteúdos e regras, e maior volatilidade do que se aprende.
Neste cenário, professores, médicos e técnicos contabilizam a quantidade de movimentos e de asneiras das crianças e fazem, literalmente, diagnósticos a partir de escalas e tabelas.
Tudo isto conduz naturalmente a esquecer a obrigação clínica de despistar questões emocionais que podem estar na base de comportamentos desatentos ou irrequietos e de tirar o retrato atualizado ao ambiente em que se movem.
A medicação, que não tem problemas de habituação ou dependência – ao contrário do que consta na internet e até na bula – surge como uma solução fácil e milagrosa, modulando o comportamento de crianças e jovens por os deixar mais quietos. O que é um efeito indesejado – ou mesmo tóxico – quando o que se pretende é deixá-los mais atentos.
Hoje, há um excesso de diagnósticos e de medicação em muitos casos, bem como de práticas erróneas que têm em conta indicadores pouco fiáveis, como o controlo da atividade. Estas práticas podem estar a ignorar a necessidade de outras importantes intervenções, como a psicológica ou psiquiátrica, nos jovens, nos seus hábitos e nos adultos de quem dependem.
Quem medica com estimulantes deve ter em conta que o importante é cuidar, não da hiperatividade ou das notas mas sim da atenção e das questões emocionais. A desatenção pode de facto prejudicar, de forma encadeada, todo o quotidiano destas crianças e adolescentes no seio familiar, no aproveitamento escolar, no recreio, no comportamento social e na autoestima. Tudo isto não é bom para quem está a crescer.
Pedro Cabral
Neurologista pediátrico e diretor clínico do CADIn
Fonte: Notícias Magazine
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