sexta-feira, 29 de abril de 2016

"O divórcio precoce com a Matemática está a voltar"

Ainda se chumba muito em Portugal? 
Muito, porque não só se acredita que a retenção melhora as aprendizagens, como também é usada como medida corretiva. Porém, a melhoria da qualidade das aprendizagens é residual ou mesmo nula. No 2º ano de escolaridade quase 10% dos alunos ficam retidos. 

Qual é a explicação para isso? 
A aprendizagem da leitura e da escrita não é um processo natural e nem todas as crianças estão preparadas para essa exigência, mesmo que tenham sucesso noutras áreas. 

Considera que é uma falha da política educativa? 
É um problema cultural, mais do que político: não sabe, logo chumba. E o que deve ser feito é aplicarem-se as medidas certas para que o aluno passe a saber. A primeira e a mais importante é a intervenção precoce. Um pré-escolar de qualidade é fundamental. 

Que custos tem a retenção para a aprendizagem? 
Um aluno retido fica imediatamente desfasado daquilo que é a sua faixa etária, o que aumenta o nível de desmotivação. Algumas destas crianças conhecem o estigma do falhanço logo aos 7 anos. 

Acontece muito? 
Aos 15 anos, 35% dos alunos já tiveram uma retenção, um número de que nos devemos envergonhar. 

Mas acabar com a retenção não seria promover o facilitismo? 
A retenção é um sistema facilitista porque não exige mais nada de ninguém, é tudo repetido. Já a transição responsável pressupõe que o aluno, no ano seguinte, acompanhe os seus colegas além de ser obrigado a recuperar as aprendizagens passadas. Ou através de trabalho adicional durante o período escolar ou de trabalho adicional na escola no período de férias - o que também iria dissuadir aqueles que não aprendem porque não querem. 

Existe o culto da nota em Portugal? 
Sem dúvida. Hoje, o grande foco das pessoas não é o que sabe, mas a nota que teve. Os professores têm transformado a avaliação formativa como exclusivamente sumativa. 

Cabe às escolas ajudar a mudar esta visão da sociedade? 
Primeiro, deve mudar a sua própria visão. A formação não está preparada para lidar com alunos com necessidades de aprendizagem - é neste capítulo que é preciso investir. Temos de ser transparentes. Deve dizer-se que as notas são importantes, mas não o mais importante. 

Não é difícil quando existem médias de entrada no Ensino Superior altíssimas? 
Esse processo não devia estar centrado exclusivamente nas notas do ensino secundário e dos exames. Até porque tenho algumas dúvidas de que todos os alunos academicamente competentes possam ser médicos, enfermeiros ou professores competentes. 

Perdem-se competências com este sistema avaliativo? 
Não se perdem, mas não se treinam. É preciso preparar os alunos para apresentar ideias, apresentá-las publicamente; para fazerem investigação e análise crítica... 

E há tempo para tudo isso? 
Esse é outro problema: a extensão dos programas é uma ditadura. Tal como a antecipação de conteúdos. Hoje, os programas exigem uma capacidade de abstração que a larga maioria dos alunos não consegue atingir. 

Como é que essas dificuldades se fazem sentir? 
O divórcio precoce com a Matemática está a voltar. Os alunos, no segundo ano, dão o conceito de fração e muitos deles ainda não apreenderam o conceito de quantidade, por exemplo. É preciso ver com atenção os resultados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, em inglês) e perceber que se tivemos uma melhoria de 2003 para 2012 é porque se fez alguma coisa bem. 

Que situações positivas foram essas? 
Houve um grande investimento em três áreas: formação de professores, criação de condições materiais e dar tempo para a apropriação de programas. Agora, isso mudou e é fundamental que se faça algo. 

Que medidas devem ser tomadas? 
É preciso ouvir os professores que estão a trabalhar nas escolas: quais as suas dificuldades, as suas opiniões e sugestões. O que sinto é que estes profissionais - não os sindicatos - sentem que não são ouvidos e já desistiram. 

É diretora de Agrupamento de Escolas de Constância. Como procura combater o insucesso escolar? 
Há seis anos que os nossos alunos do 5º ao 9º ano a Português, Matemática e Inglês estão agregados em nichos. O castanho (a semente na terra), quando os alunos estão a fazer aprendizagens básicas, o verde (a planta começa a florescer) e o azul (o céu é o limite). Temos três professores por ano que dão a mesma matéria, mas com abordagens diferentes. Assim, alunos dão saltos qualitativos no seu ritmo e podem mudar de grupo. 

Foi fácil implementar esse sistema? 
Foi um investimento muito grande do ponto de vista da formação dos professores, da consciencialização dos alunos e das famílias. Temos tido resultados muito positivos, tanto ao nível das notas, como da motivação. 

Já criticou os modelos avaliativos. Como é no seu agrupamento? 
Este ano, descentrámos a avaliação dos testes. Desde o primeiro ciclo, e em todas as disciplinas, tem de haver, por período, quatro instrumentos de avaliação. Um deles é uma apresentação oral, mas também se fazem fichas, resumos de aulas. Depende das disciplinas. O plano foi apresentado aos pais e foi bem aceite. 

Quando era professora nunca sentiu que havia alunos que não podiam mesmo passar? 
Era professora de Inglês, ainda não tinha feito este percurso, mas a ideia de impossibilidade sempre me assustou muito. As escolas devem ser lugares de oportunidade. "Tu não és capaz" ou "ainda não és capaz" têm uma diferença: a oportunidade. Uma escola só pode ser um lugar de esperança. 

Mantém a proximidade com os alunos? 
Dou aulas de substituição, mas não é a mesma coisa. Além disso, por exemplo, vou ouvir todos os miúdos do 1º ciclo a ler, no fim do ano, para perceber o que é preciso fazer. Temos uma professora apenas para ajudar os alunos do 1º e do 2º ano com dificuldades de leitura. 

Tem filhos em idade escolar? Alguma vez chumbaram? 
Tenho três - um rapaz de 13 e duas raparigas de 15 e 16 anos - e nunca nenhum chumbou. Mais importante para mim do que as notas é perceber porque é que algo falhou. "Não tiveste atenção? Malandro!", "Não percebeste mas já percebes? Óptimo!", "Não és capaz de fazer? Alerta!" E aí é preciso ver o que é preciso corrigir. 

Acabaram os exames do 6º ano, voltam as provas de aferição. O que pensa desta decisão? O presidente do CNE, David Justino, foi muito crítico… 
A avaliação externa das aprendizagens é justa, permite saber o que é preciso melhorar. No nosso agrupamento, por exemplo, corrigimos as provas todas novamente para podermos preparar o ano seguinte. 

Tiveram melhorias em algum campo? 
Há uns anos, o nosso calcanhar de Aquiles era a produção escrita. Hoje, é o mais forte e estamos acima da média nacional. 

Então, os exames e as provas de aferição são positivos? 
É preciso perceber que a prova de aferição, como era feita até agora, ou o exame escrito são muito limitados na aferição de competências, que é o que sublinha o CNE. Este conceito que foi agora introduzido é diferente: as provas de aferição são no meio dos ciclos, para poder corrigir algumas falhas. O único aspeto que podia ter sido melhorado é que, mais uma vez, os professores que estão nas salas de aula não foram ouvidos. 

Esta anulação dos exames alterou o que estava programado nas escolas do agrupamento? 
Na minha escola, zero! Nunca tivemos cultura de preparação de exames - o que não quer dizer que os professores não vão promovendo exercícios dos exames para os alunos não serem apanhados de surpresa. (...)

É fácil manter a paixão? 
Todos os dias temos motivos que nos orgulham e garanto que não são os resultados do ranking: é olharmos para um aluno e imaginarmos o percurso que ele iria fazer se não estivesse integrado na escola. Nós acreditamos mesmo que é possível criar um raio de luz no meio do cinzento. 


Fonte: Sábado por indicação de Livresco

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