Sempre que sai à rua com a Zara, uma cadela labrador castanho-chocolate, a cena repete-se: primeiro, olham para o cão, depois para a cara dela. "Às vezes, até pisco o olho e as pessoas assustam-se", brinca Inês Monteiro. A jurista, de 30 anos, residente em Coimbra, já está habituada à estranheza das pessoas. Razão: ela não é invisual, mas anda com um cão-guia. Logo, pode entrar em todo o lado com o animal, sem restrições. Confuso? Nós explicamos: Inês Monteiro é família de acolhimento de um cão de assistência em treino. Na verdade, Zara não é sua, foi-lhe entregue pela Associação Beira Aguieira de Apoio ao Deficiente Visual, de Mortágua – a única escola de cães-guia para cegos no País. Até completarem 1 ano (o que, no caso da Zara aconteceu há dias), estes cães vivem em casa das famílias de acolhimento, para aprenderem a socializar e as regras básicas de higiene e bom comportamento; no segundo ano de vida, entram num regime de colégio interno: vão para a escola em Mortágua durante a semana, para receberem treino específico, e regressam a casa ao fim-de-semana. Só aos 24 meses são entregues a um invisual.
Contudo, nem sempre as saídas são tão pacíficas. Inês Monteiro faz isto há nove anos, Zara é o nono cão-guia que acolhe, e colecciona histórias de sítios onde lhe barraram a entrada. Aconteceu recentemente num autocarro, em que o motorista quis mesmo expulsá-la. A jurista não se ficou: "Temos indicação da escola para andar com o decreto-lei [nº 74/2007, que consagra o acesso destes animais a transportes e estabelecimentos públicos], e até para fazer queixa e chamar a polícia se necessário", explica (..). A discussão chegou a subir de tom – "A menina não é cega", gritava-lhe o homem –, mas não foi preciso chamar a polícia. "O motorista acabou por ligar ao superior, que lhe confirmou que eu podia entrar. No fim, ainda me pediu desculpa", conta, divertida.
Desde 1996, ano em que abriu a escola em Mortágua, que existem famílias de acolhimento de cães de assistência. "Era impossível termos 40 cães em canil e socializá-los", justifica Filipa Paiva, directora técnica da escola. Qualquer pessoa pode candidatar-se a acolher um destes animais desde que viva no raio de acção da escola, entre Coimbra e Viseu, para que os treinadores possam acompanhar o crescimento do cão; e que tenha disponibilidade para não deixar o animal sozinho por mais de duas horas. "Quando os cães estão muito tempo sozinhos, sobretudo nestas idades, corre-se o risco de ficarem ansiosos e dependentes", explica a técnica.
Subir para o sofá é proibido
A Lisbonne, uma cadela labrador amarela, cruzada com golden retriever, de quatro meses, nunca lhe falta companhia. Catarina Pereira leva-a consigo até para o ginásio: "No dia em que a vieram trazer foi logo comigo a uma aula de spartans, que deve ser uma das mais agitadas, é tudo aos berros. Ela esteve na maior, até adormeceu", conta a consultora de 31 anos. No ginásio que frequenta, a presença de um animal não é estranha: chegam a lá estar quatro cães-guia ao mesmo tempo. Todos com famílias de acolhimento. Regra geral, mal se dá por eles, deitam-se e dormem. "Mas, já aconteceu, um dia, em que eu estava distraída, ela entalou o focinho numa máquina de elíptica", conta. Não passou de um susto. Família de acolhimento desde Agosto de 2014, Catarina Pereira já acolheu quatro cães-guia. O primeiro chamava-se Valete, era um labrador preto, e até foi com ela para a defesa da tese de doutoramento. "Esteve ali calmo durante as três horas da discussão. O júri achou piada, mas não se opôs, e na assistência houve gente que nem se apercebeu da presença dele", diz.
Além de poder levar o animal para todo o lado, até para o trabalho ou para o cinema, acolher um cão-guia tem outras vantagens: todas as despesas são suportadas pela escola, alimentação e veterinário e, no dia em que o cão-guia é entregue, a família também recebe a trela e a coleira, o colete, que identifica o animal como cão de assistência em treino, a taça da comida; um champô, dois ou três brinquedos e uma caixa transportadora.
No mesmo dia, o treinador também dá uma espécie de formação à família sobre as regras que se devem ensinar ao cão. Por exemplo, é proibido deixar os animais subirem para cima do sofá ou receberem comida da mesa, às refeições. "Outra coisa importante é habituá-los desde cedo a estarmos perto deles quando estão a comer e a pormos a nossa mão dentro da taça. Como vão ajudar um invisual é fundamental que não sintam a presença dele como uma ameaça", explica Inês Monteiro.
Quando o cão é reformado
A palavra universal para as necessidades do cão é "besonha", que vem da tradução do mesmo termo em francês. É outro comando que a família de acolhimento deve ensinar e usar sempre que sai com o cão; a ideia é que, mais tarde, o animal aprenda a fazer as necessidades só depois da ordem do dono. Contudo, o processo de aprendizagem nem sempre é muito fácil. Que o diga Bruno Batista, coordenador do gabinete de cultura e turismo da Câmara de Figueiró dos Vinhos, que já foi famí- lia de acolhimento de cães-guia duas vezes.
"Uma vez fui a Lisboa entregar uma exposição ao museu da Assembleia da República. Levei comigo a Veneza [a sua primeira cadela-guia]. Fartei-me de passear com ela para fazer as necessidades e nada. Quando entrei nas Amoreiras para almoçar, decidiu fazer tudo dentro do centro comercial", recorda (...). Pior: no mesmo momento, passou uma criança com a mãe e começou aos gritos: "Está um cão a fazer cocó!" "Foi das maiores vergonhas que apanhei", lembra.
A partir dos 12 meses é tomada a decisão se o animal está ou não habilitado a tornar-se um animal de assistência. "Quando um cão não funciona, por razões físicas, por exemplo, como a displasia na anca, que é muito recorrente nesta raça, ou de comportamento, se é muito sensível, tem medos ou é demasiado dependente, é reformado", explica a directora técnica da escola, Filipa Paiva. Nessa altura, ou é adoptado pela família que o treinou, ou acolhido por outra família.
Foi o que aconteceu com a quinta cadela-guia de Inês Monteiro, a Roma. Quando a jurista a acolheu, apercebeu-se logo de dois problemas: os gatos e o tédio. Quanto aos primeiros, não podia sequer vê-los: "Desenvolveu o instinto caçador", explica. Já em relação à personalidade: "Costumamos dizer, na brincadeira, que ela é a cadela do tédio. Quando a mando sentar, ela respira fundo. Trabalhar era um sacrifício", recorda, divertida, Inês, que acabou por ficar com ela.
Fonte: Sábado por indicação de Livresco
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