Portugal é um país com muitos problemas, mas nenhum deles é mais sério, mais obsceno e mais escandalosamente terceiro-mundista do que os atrasos da justiça nas questões que envolvem direitos de menores. Nós enchemos a boca com o famoso “interesse superior da criança”, indignamo-nos e comovemo-nos ao ritmo dos casos mediáticos, só que isso, sejamos claros, vale zero. Desligam-se as câmaras e continua tudo na mesma, até porque as crianças em risco, azar o delas, não votam nem formam sindicatos.
Mais grave, muito mais grave, do que a negligência parental é esta negligência governamental, que não consegue pôr de pé uma política de proteção das crianças que seja célere e minimamente eficaz. Maus pais sempre haverá, mas um país decente tem o dever de se empenhar na forma como trata os menores de idade, e não falhar vergonhosamente no seu auxílio, como parece ter acontecido mais uma vez na tragédia de Caxias.
No momento em que escrevo é impossível saber em detalhe aquilo que se passou. Não faço ideia se as acusações de abuso sexual acerca daquele pai são verdadeiras. Não faço ideia do estado mental em que se encontrava aquela mãe. Não faço ideia se as crianças estavam vivas ou mortas antes de terem sido lançadas à água. Mas isto eu sei, porque foi admitido pelas autoridades e pelos envolvidos: a situação foi sinalizada à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) da Amadora, em novembro de 2015; houve uma participação na PSP e uma comunicação recebida do Hospital Amadora-Sintra que levou à instauração de um inquérito em finais de novembro, para investigar, segundo um comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR), “factos suscetíveis de integrarem os crimes de violência doméstica e de abuso sexual de crianças”; em paralelo, e na sequência da referida sinalização da CPCJ, o Ministério Público (MP) requereu, a 2 de dezembro de 2015, “a abertura do processo judicial de promoção e de protecção a favor das duas crianças”.
Querem contar comigo até cinco? O caso da família de Sónia Lima, que acabou com duas pequenas crianças afogadas em Caxias, foi sinalizado à CPCJ, à APAV, à PSP, ao Hospital Amadora-Sintra e ao Ministério Público. Sejam verdadeiras ou falsas as alegações de Sónia Lima, a verdade é que só lhe faltou escrever ao presidente da República. Fátima Duarte, da Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, contou à Lusa que, “dados os contornos da situação”, em novembro o caso “seguiu de imediato” para o MP, já que só ele pode investigar suspeitas de abuso sexual de menores. E seguiu “com caráter urgentíssimo”.
O que fizeram as autoridades perante tão urgente pedido? Não se sabe ao certo, já que o caso, é claro, “corre termos no DIAP de Lisboa-Oeste e encontra-se em segredo de justiça”. A PGR garante que “no âmbito deste inquérito, foi proposta à denunciante a tele-assistência, tendo sido elaborado um plano de segurança”. Eu até admito que o plano de segurança fosse magnífico, só que há este pequeno problema: contactado pelo DN, Rui Maurício, advogado do pai das crianças, declarou duas coisas: 1) o seu cliente nega todas as acusações; 2) ele nunca foi ouvido pelas autoridades relativamente a elas. Leram bem. Há um pai acusado de abuso sexual de menores em novembro de 2015 e a 16 de fevereiro de 2016, três meses depois, ninguém lhe tinha perguntado o que quer que fosse. Não preciso de saber mais nada. Isto basta-me. Superior interesse da criança? Não gozem comigo.
Por João Miguel Tavares
Fonte: Público
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