domingo, 7 de fevereiro de 2016

Aprender para avaliar

1. Eu gosto que as crianças sejam avaliadas. Gosto que vacilem sobre aquilo que sabem. Gosto que leiam as perguntas em diagonal e, de tão entusiasmadas, se precipitem e se tornem trapalhonas nas respostas. Gosto que fiquem "burras", de vez em quando, e que "bloqueiem" (como os seus pais dizem), parecendo deixar de saber responder ao mais elementar, errando onde era suposto que conseguiriam acertar, por mais que preservem raciocínios complexos e acertem naquilo que seria, facilmente, aceite que elas errariam. E gosto quando, ao saírem de um teste, sossegam os pais assegurando-lhes, com mais um "correu bem", que quer dizer: "não há motivo para alarmes". Por mais que, ao receberem a correção acerca daquilo que fizeram, fiquem sem saber quem é que, afinal, terá feito, por elas (certamente!), aquele teste. Por outras palavras, se as crianças não aprenderem a conviver com o medo de ser avaliadas, com todos os solavancos que isso lhes traz (em termos pessoais e em relação aos seus próprios desempenhos), ficam mais frágeis, menos afoitas, com menos garra e com menos brio.

No entanto, acho que somos todos muito batoteiros nas avaliações que lhes fazemos!
 
  • Em primeiro lugar, porque não lhes damos o direito de errar, como elas precisam de o fazer para aprenderem. Errar porque se está, felizmente, com a cabeça no ar. Errar porque nunca é simples passar do que se sente à ligação entre as imagens que se constroem e a abstração que elas requerem - ou entre a linguagem e a matemática, se preferirem - aprendendo-se, assim, a pensar. Parece-me que queremos avaliá-las e esperamos que não errem. Aliás, é estranho que haja uma escola que se preocupe a ensinar, vezes demais, à margem do imaginar e do pensar. E que não acarinhe o erro. Crianças que não erram (isto é, que não podem, livremente, errar) e que esperam que a escola lhes tire mais dúvidas do que aquelas que lhes coloca, ganham uma espécie de imunodeficiência adquirida ao erro e à dor. Tornam-se vaidosas em vez de serem humildes. "Competitivas" (como, agora, se elogia) porque a escola promove de menos a cooperação com a qual se pensa sempre mais longe. E presunçosas (e inseguras, portanto) quando, diante do conhecimento, deviam ser, simplesmente, rebeldes. Crianças assim, por mais que tenham um potencial fantástico, pensam... pior. E quem não pensa pode conquistar bons resultados escolares, sem dúvida; porque repete. Mas não re-cria. E não aprende!
 
  • Em segundo lugar, porque as avaliações tomam em conta os desempenhos das crianças mas, muito raramente, as performances dos professores e do próprio sistema educativo. Não me interpretem mal, por favor. Os professores são preciosíssimos! Mas vivem engolidos numa engrenagem onde a burocracia e a tecnocracia atropela a paixão e a arte de ensinar. Mas parece que quem constrói os programas, quem pensa os manuais e as metodologias educativas, quem ensina, quem dirige as escolas e quem gere a vida das crianças (os pais, portanto) não se coloca tantas vezes nesta "equação" de avaliações e de notas, como devia. É mais simples que se chegue a um dilema do género: as crianças ou são inteligentes ou não são. Mesmo que a essa presumível "burrice" se chame, hoje, "necessidades educativas especiais", "défices de atenção", "dislexia", etc. como se existissem "defeitos de fabrico" mas nunca (ou muito raramente) uma comparticipação - empenhada! - da escola e dos pais nos insucessos das crianças. Ora, mesmo quando têm resultados maus (ou muito maus), não há crianças burras! Mas crianças que entre aquilo que se atropela dentro e fora de si e a forma como não as ensinaram a aprender, anseiam que a escola e os pais se avaliem antes de as avaliarem.

  • Em terceiro lugar, como pode uma escola avaliar se privilegia, quase sempre, as respostas às perguntas (às imensas perguntas) que não se colocam? Perguntar permite que, de um todo mais ou menos indiferenciado, se possa discernir o indispensável do colateral e do supérfluo. Ora, sem se perguntar não se colocam hipóteses, nem se articula o "sente, discorre e faz" com que se pensa. Como pode uma escola silenciosa ser amiga da avaliação? Perguntar já é compreender. Logo, se uma criança não pergunta, livremente, compreende pior. Pode, pois, a avaliação ser justa e honesta quando a escola avalia mas não escuta?
 
  • Em quarto lugar, é altura da escola ir do uniformizar (que vai do modo como exige que elas se formatem a um pensamento à forma como exige que elas se vistam) ao singularizar. Uma escola com inequívocos défices de atenção em relação à singularidade é uma escola que avalia. Mas não aprende!

  • Em quinto lugar, turmas de primeira e turmas de segunda, disciplinas de primeira e disciplinas de segunda, áreas de estudo de primeira e áreas de estudo de segunda, alunos de primeira e alunos de segunda são formas estranhas com as quais todos temos convivido e que, para além do modo subtil e sinuoso como se foram instalando, já mereceram, não há muito tempo, aval ministerial. Uma escola assim transforma-se (sem se dar conta, suponho eu) numa escola amiga do apartheid. Ora, uma escola amiga do apartheid avalia. Mas não se põe em dúvida. Nem educa.
 
  • Em sexto lugar, uma escola que acha o brincar, o jogo e o recreio, tal como a educação física ou as disciplinas expressivas como acessórios, mas nunca como instrumentos indispensáveis à estrutura esquelética da aprendizagem, parece não entender que ao brincar, ao jogar e ao expressar-se, uma criança põe problemas, discorre sobre eles e aprende a resolvê-los. E aprende, sobretudo, formas, tendencialmente, mais simples de resolver incógnitas, progressivamente, mais complexas. Sendo assim, uma escola alarmada com o brincar é uma escola assustada com a liberdade. E uma escola que acarinha, sobretudo, o exclusivo e atropela o plural e o inclusivo. Uma escola que avalia, sem dúvida, mas que não aprende.

  • Em sétimo lugar, uma escola que acha que tem de avaliar embrulhando, muitas vezes, num clima alarmado testes e exames (preparando-os, em inúmeras circunstâncias, de uma forma batoteira), é uma escola que diz às crianças que o melhor do mundo não é aprender, mas ter bons resultados. E, sendo assim, é uma escola que entre os alunos com bons resultados e os alunos que aprendem (e, por vezes, uns e outros não são os mesmos!) escolhe os primeiros. Os outros, a bem da inclusão dasoutras escolas, são convidados a frequentar outros estabelecimentos de ensino. Uma escola assim é desonesta. Porque acha que o numérico (seja qual for a forma como se lá chegue) é mais fidedigno do que outra qualquer avaliação. Sabendo nós que, mesmo no ensino público - por mais que as escolas vão do 1 ao 5 ou do 0 ao 20 - a forma como se coloca pó de arroz nas notas só tem rival no modo como se adocica com "poção mágica" a atenção. Uma escola assim é um bocadinho mentirosa. E não repara que as crianças e os adolescentes são mais inteligentes do que ela supõe e valem menos do que eles imaginam. É amiga, portanto, da publicidade enganosa. Com a qual avalia professores e alunos. Por mais que não aprenda.
 
  • Finalmente, é importante que se diga que não é fácil aprender! Dá trabalho. Exige muitos erros. E requer humildade. É verdade que se avalia para aprender. Mas só se aprende quando, dessa avaliação (que é sempre recíproca) os resultados são positivos. Porque é que, então, as crianças parecem, muitas vezes, zangadas com a aprendizagem? Porque ao avaliarem quem as avalia, ao avaliarem o modo como são avaliadas, ou a discrepância entre o que se avalia e a utilidade que isso poderá ter nas suas vidas, a sua avaliação é, muitas vezes... negativa. Sendo assim, devíamos assumir que se tem de aprender para avaliar. Ficaria melhor... Quando se trata de pensar a avaliação a partir da escola e dos próprios pais.

2. Ora, é nesta escola que se tem discutido o que é que pode ser mais benéfico para as crianças: provas de aferição ou exames nacionais. E, chegados aqui, receio que a discussão possa não ser, tantas vezes como devia, tão séria como seria de esperar.

Recapitulando: todas as crianças ganham quando aprendem. E avaliá-las é uma prova de aferição para aprendermos se entre aquilo que desejamos que aprendam e aquilo que elas aprendem há coincidência de pontos de vista. Logo: as avaliações fazem bem às crianças. Porque se desconhecermos as suas dificuldades (mesmo as mais pessoais, diante de momentos mais tensos, por exemplo) nunca encontramos os métodos que, com bondade, colocaremos ao seu dispor para que elas aprendam melhor.

É claro que elas, quando são avaliadas, são obrigadas a escolher. E é, também, verdade que escolher é reconhecer que não se pode ter tudo. É aqui que as coisas se complicam. Porque os pais confundem, muitas vezes, pais bondosos e pais bonzinhos e as frustram de menos. As crianças precisam de experimentar a dor para se tornarem tolerantes à dor. Precisam de ter insucessos para crescer com eles. E precisam de não ser nem "sabidas" nem "sabichonas" para se tornarem sábias. Tudo um bocadinho ao contrário daquilo que as famílias, na sua bondade, lhes dão.

Mas, voltando às avaliações, é claro que "a pressão" do momento lhes faz bem. Porque traz imprevisibilidade ao previsível, porque traz tensão à sabedoria, porque envolve a memória de raciocínio prático, e engenho e "malandrice" ao modo como se pensa. As avaliações ajudam a crescer. Porque viver é avaliar e ser avaliado. Em todas as áreas onde se vive!

É mau, portanto, que elas distingam, em grau de "nervoso miudinho", testes e exames? Não! Como não é mau que elas percebam que "jogar em casa" e "jogar fora" não é a mesma coisa. E que, quando se imaginava que se "mandava no jogo", ao "jogar" nos "campeonatos distritais" e nos "campeonatos nacionais" traz o medo, a audácia e as experiências com que se constrói a humildade. Mau é mudar de regras a meio de qualquer jogo. E aí não há, entre quem decide, quem tenha a autoridade moral para não reconhecer que não o fez. Mau é discutir as avaliações antes da aprendizagem. É divergirmos sobre o modo como as devemos classificar antes de classificarmos aquilo que nos faz divergir a propósito da forma como queremos que elas aprendam.


Faz, pois, sentido, distinguir, neste contexto, provas de aferição de exames nacionais? Não. Porque, seja qual for o jogo, nunca se joga a feijões. Portanto, se hoje (no quarto ano, por exemplo) a ponderação de um exame para a nota final for de 10%, se amanhã for de 20% e, depois, de 30%, qual é o mal? Os exames não magoam as crianças. Magoa - isso sim - a forma dúbia como eles são usados. Os exames não podem estragar a forma como a educação democratiza o mundo. É verdade! Mas o mau uso que, hoje, tantos fazem deles não pode inibir-nos de perguntar se são úteis ou não. E são! Dir-me-ão: mas os exames não podem ser "a avaliação"! É verdade que não. Mas podem contribuir para que todos vejam neles a aferição que todos devemos ter. "A doer". Tão "a doer" como devia ser avaliada a forma como as escolas batoteiras - aquelas que põem, habitualmente, muitos valores a mais nas notas de algumas crianças - avaliam as crianças. Mas a inspeção das escolas parece ser só, à escala daquilo que se passa com as crianças, uma prova de aferição... Não tem contado, portanto. 

O que me parece - e desculpem-me se for injusto - é que a avaliação das crianças e dos adolescentes tem sido objeto de demagogia política. Podem os exames tornar o ensino mais sério quando, ao olhar-se, unicamente, para o subsistema de avaliação do ensino básico, desde 2000, terão sido 14 as alterações feitas no respetivo modelo avaliativo? Pode o ensino ser mais sério somente à custa do dilema: provas de aferição versus exames? Ou não será que este dilema - exames versus provas de aferição - não tem sido um pretexto para um outro confronto, mais subtil, entre escola pública versus ensino privado, para o qual os rankings, da forma como são elaborados, tanto tem colaborado? Porque é que os exames nacionais hão de ser amigos da direita e as provas de aferição cúmplices com a esquerda? Porque nisto da avaliação das crianças, esquerda e direita não têm sido amigas das crianças. Aliás, compreende-se que nenhum dos candidatos às eleições presidenciais tenha assumido a necessidade de assumir a Presidência como o catalisador para um pacto de regime para a educação, a vinte anos de distância?

Voltando às crianças: será que as crianças não podem passar por exames, com regularidade, porquê? Porque são frágeis? Porque isso as "traumatiza"? 
Sejamos razoáveis: quanto mais tarde elas tiverem provas nacionais mais tarde reúnem recursos para as vencerem. Ora, eu acho que andamos todos na vertigem da vaidade a imaginar que as crianças são muitíssimo mais inteligentes que os seus pais (o que é mentira); que não podem tomar-se arrufadas com a escola, num ano ou noutro, por mais que a amem, o que é mentira; e que não podem deixar que o conhecimento vá atrás da sua paixão para que tenham sucesso para que, mais tarde, sejam "pagas para brincar"; o que é mentira. Estamos todos a estragar as crianças com a escola. O que é um absurdo! Estamos a querer que sejam jovens tecnocratas de fraldas, aos 4; jovens tecnocratas de mochila, aos 12; mestres aos 22; e ídolos antes dos 30. E se, entretanto, fizeram escolhas profissionais que eram o sonho que os seus pais não concretizaram, paciência. Mesmo que, à escala das relações amorosas, lhes passemos a vida a dizer, em relação aos seus estudos e às suas escolhas profissionais: casa com uma namorada rica e depois faz de conta que ela é como a água tónica da Schwepps; aprende a gostar. É de tal forma assim, que há muitas crianças que não brincam, não têm vida, não acarinham a família, os amigos e os seus compromissos sociais porque, em primeiro lugar, para os pais, está o estudar. Sempre o estudar! Quem estuda e não vive não aprende! Quem estuda e não pensa não aprende. Sempre que os pais põem o estudar, e só o estudar, à frente de tudo, estão, sem se darem conta, a dizer aos filhos que, se eles fossem mais espertos, seria possível terem vida, brincar, jogar, ter família, sonhos e projetos e... estudar. Tudo ao mesmo tempo. Como não são...

3. O futuro vai continuar a aceitar pessoas imperfeitas. E para quem ainda não tenha reparado: aceita, acarinha e é grato, cada vez mais, aqueles que trazem a singularidade, o amor pelo conhecimento e a paixão pela vida até aos outros. São esses que mudam o mundo. E a escola, se se deixar de "cabulices", tem a obrigação de se reinventar, no sentido de romper com a forma como as disciplinas, hoje, se organizam, elegendo temas transversais a várias delas que deem ao conhecimento a dimensão útil que ele tem de ter. E tem de repensar este avaliar em que tem vivido! A escola tem de preparar as crianças para um mundo de pessoas. Mas, para tanto, tem (ela própria) de se tornar "pessoa". Reconhecer os erros é aprender. Será que a escola, que avalia, reconhece os seus erros? Não. Deve, então, primeiro, aprender e, só depois, avaliar? Eu acredito que sim! Com a certeza que as crianças não gostam de trabalhar; mas adoram aprender. E se divertem quando trabalham para aprender. Assim quem as avalie aprenda que brincar, trabalhar, pensar e aprender são tudo verbos duma mesma conjugação. Acabam em aA de criança, portanto.

Por Eduardo Sá

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