Na passada segunda-feira, uma mãe lançou ao rio Tejo as suas duas filhas, uma com 19 meses e outra de três anos de idade. Segundo foi referido pela comunicação social, as duas crianças tinham sido sinalizadas pela PSP por suspeitas de abuso sexual. "A sinalização tinha que ver com a prática de abuso sexual do pai", disse (...) a presidente da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) da Amadora, Joana Garcia da Fonseca. Foi igualmente referido pela comunicação social, que a família, estava sinalizada por violência doméstica, incidindo as suspeitas no pai das crianças.
A questão que se nos colocou a todos foi, naturalmente, a de se saber se eram evitáveis tais mortes, se poderiam ter sido prevenidas uma vez que o sistema de proteção de menores existente no nosso país já estava a par de uma situação de risco para as crianças.
Daí a concluir-se que o sistema falhou, vai um curto passo (i)lógico que é facilmente dado por muita gente. E, no entanto, a complexidade da questão não permite simplificações fáceis. Seria importante saber exatamente – o que, de resto, nunca vamos saber neste país de nevoeiros institucionais – quais as “sinalizações” que tinham sido efetuadas e em que termos, o que é que a CPCJ sabia desta família, o que foi feito, o que não foi feito e o que podia ter sido. De uma forma transparente e cristalina. Para que todos pudéssemos perceber o que se passou, não dentro da cabeça daquela desgraçada mãe, mas dentro das instituições que criámos para proteger os menores.
Estamos no âmbito de uma atuação do Estado extremamente sensível e controversa já que põe em causa o respeito – que todos nós, certamente, desejamos – pela privacidade da vida familiar. Todos sabemos que o Estado se mete em tudo o que é e não é chamado e, por isso, todo o cuidado é pouco. Quando e até onde pode o Estado, contra a vontade do(s) progenitor(es), entrar na vida de uma família, em nome da proteção dos menores e do seu futuro? E o que é exatamente essa proteção dos menores e do seu futuro? Quem a define e como se define?
É por demais evidente que, se há um notório risco de vida ou de lesões graves de menores, naturalmente incapazes de se defenderem das agressões vividas dentro da família, o Estado tem de intervir para os proteger. Mas há muitas situações – naturalmente, a maior parte – em que as “coisas” não são a preto e branco e em que o cinzento preenche grande parte do quadro. São esses casos que temos de clarificar em termos e regras e protocolos.
Curiosamente no dia seguinte a este ato tresloucado, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) condenou Portugal por ter violado o direito ao respeito pela vida privada e familiar. O caso que determinou esta condenação foi exatamente uma interferência do Estado dentro de uma família para a proteção das crianças e do seu futuro. O caso foi, na altura, muito discutido já que o tribunal mandou retirar sete crianças da guarda de uma mãe que tinha muito fracos recursos económicos e incapacidade para as alimentar e educar.
Incapacidade esta, apurada pelo tribunal depois de inúmeras diligências das estruturas e pessoas que acompanham estes casos. A mãe protestou, reclamou e recorreu mas ficou privada do convívio com todos os filhos que foram colocados em instituições diversas – onde ainda vivem – para futura adopção. Na altura foi muito comentado, o facto de o tribunal ter valorizado negativamente o comportamento desta mãe por se ter recusado a submeter-se à esterilização apesar de a ter aceitado inicialmente.
Bem acompanhada pelas suas advogadas, esta mãe recorreu para o TEDH e conseguiu, desde logo, uma medida essencial em março de 2015: poder visitar os seus filhos, o que não podia fazer desde que estes tinham sido institucionalizados em meados de 2012. E, agora, o TEDH veio explicar porque é que o Estado se excedeu: a mãe em causa tinha como rendimento mensal € 393, dez filhos para sustentar e educar e um marido ausente. Uma família claramente disfuncional. Mas o Estado face a esta situação em vez de procurar apoiar, nomeadamente quanto aos custos básicos, como a eletricidade, a água ou a alimentação, ou, ainda, providenciando uma creche para as crianças para a mãe poder procurar emprego, preferiu institucionalizá-las apesar de não haver quaisquer comportamentos violentos da mãe e serem por demais evidente os profundos laços emocionais que ligavam a mãe aos filhos e o inverso.
No entender do TEDH – e parece que bem –, apesar da falta de condições em que viviam aquelas crianças, não se justificava, numa sociedade democrática, o Estado acabar com aquela família, espalhando os filhos por instituições e proibindo a mãe de os ver.
Seria bom que estes dois eventos permitissem que melhorássemos o funcionamento das nossas instituições de protecção de menores mas, confesso, que duvido muito.
Por Francisco Teixeira da Mota
Fonte: Público
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