terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

“Os pais têm medo de ser pais. Têm medo de dizer 'não'”

Javier Urra é o pai de O Pequeno Ditador, publicado em 2007, pela Esfera dos Livros. Nove anos depois, O Pequeno Ditador Cresceu e por causa dele, o psicólogo e professor da Universidade Complutense de Madrid, regressou a Lisboa para falar do novo livro, mas também do seu programa clínico recURRA Ginso, um campus a alguns quilómetros da capital espanhola que recebe adolescentes e jovens já em fim de linha. Aqueles que não vão à escola, têm problemas de toxicodependência ou que batem nos pais e irmãos.

O livro começa precisamente pelo trabalho que é feito no centro em Brea del Tajo, a 69 quilómetros de Madrid, com exemplos concretos de jovens que batem nos pais, sobretudo nas mães; que impõem a sua lei. Urra foi o primeiro provedor de menores em Espanha, recorda que em 2007 registaram-se 2683 casos de denúncias de maus tratos de filhos a pais, e que dois depois eram já 5201. Cerca de 70% dos agressores são consumidores habituais, mas não são os únicos. E, por isso, o resto do livro agarra na criança desde o seu nascimento, de maneira a dar pistas práticas aos pais para que a eduque de forma a não chegar a ser uma ditadora.

Há nove anos entrevistei-o por causa de O Pequeno Ditador, onde dava muitos conselhos aos pais sobre como educar com regras. Agora, O Pequeno Ditador Cresceu, significa que ninguém o leu?
Foi em 2007 e os pais leram o livro, em Portugal saíram 33 mil livros, vai na 18.ª edição. Agora escrevo para outros pais, outra geração. Apesar de ter um título semelhante, este livro saiu por outras razões. Porque em Espanha, criámos o programa recURRA Ginso [em 2011], que tem 102 profissionais, 95 jovens internados e mil casos em ambulatório – 65% são rapazes e 35% raparigas com idade média de 16 e meio. Sabemos que 20% tem problemas de transtorno de personalidade, alguns com problemas de hiperactividade e défice de atenção; e 28% dos pais também tem transtornos psicológicos severos. Os restantes são um problema educativo e social.

A culpa é da sociedade?
Sim, da escola, da televisão, dos meios de comunicação em geral, da Internet… Em dez anos muito mudou e os jovens recebem mensagens diferentes, da sociedade e dos pais. Além disso, passámos por uma situação económica difícil e em Portugal e em Espanha nascem menos crianças. Por isso, os pais converteram a educação num espaço em que as crianças não podem sofrer, estão sobre protegidas. A criança aprende que só tem direitos e não tem deveres e os pais não lhe explicam que também tem deveres. E, por isso, quando crescem, vemos que temos jovens que não vão à escola, estão sozinhos em casa, fumam marijuana… Estes são os casos que chegam ao centro. Em 75% temos êxito, mas este existe porque trabalhamos com os pais e com os filhos. Fazemos terapia individual, de pares, de grupo e de família. Sabemos que os pais ganham novas ferramentas e os filhos também. Os pais choram porque amam os seus filhos; estes também choram quando estão sozinhos ou à noite, porque também querem aos seus pais. Por isso lhe chamo a “patologia do amor”, querem amar-se mas não sabem.

São poucos os pais que educam bem?
Não. São muitos, mas os filhos são diferentes. Por exemplo, tens quatro filhos e os dois primeiros dizem bem dos pais, o último também e o terceiro não. E o problema é com o terceiro. Mas os pais educaram todos por igual, mas há um filho que não se sente querido.

Em Portugal faz sentido ter um centro como o espanhol?
Nós queríamos montar um. Em Espanha fizemo-lo com o apoio do Ministério da Saúde que financia parte dos tratamentos. Em Portugal não tivemos resposta positiva e este fica muito caro para as famílias.

Quanto custa?
Por mês são 4100 euros, um valor que os pais não conseguem pagar. Os pais custeiam 1700 euros, também é caro. Trabalhamos todos os dias, a todas as horas. Mas à noite tenho de ter bons profissionais, por exemplo, um jovem acorda a chorar e preciso de ter um psicólogo que o apoie. E isso custa dinheiro.

Tem uma taxa de sucesso de 75% e os outros 25%?
Não sabemos. Talvez falhemos nós, mas também há jovens complicados que, às vezes, têm problemas com drogas e aos quais não é fácil chegar.

Os jovens hoje, fruto da crise e do desemprego, sabem que têm menos perspectivas, logo, estão mais deprimidos?
O mundo está em constante mudança e parece que as palavras “jovem” e “depressão” não conjugam, mas eles têm uma angústia existencial: o que vou fazer com a minha vida? Eles amam a sua família, os seus amigos, mas para terem trabalho têm de ir para o Reino Unido ou para o Canadá. Não é claro para eles como começar a sua vida profissional, como ter uma família, a sua casa… Os números da OCDE dizem-nos que a principal causa de morte dos jovens entre os 18 e os 24 anos é o suicídio. O que significa que há muitos que não têm esperança ou que vivem a vida mais do que esta pode oferecer. Mas, em geral, os jovens são seguros.

Quem são os pais dos filhos ditadores?
A maioria são famílias tradicionais. Mas existem outros: 28% são famílias que adoptam, por exemplo, do Leste europeu, crianças que viveram em famílias destruturadas, com pais alcoolizados, ou que viveram em lares, são crianças que precisam constantemente que os pais adoptivos provem que os querem. Depois temos famílias monoparentais e o problema é que esses pais têm de enfrentar os problemas sozinhos, sem apoio ou ajuda.

Mas como é que se tem um filho ditador? Os pais demitem-se de serem pais?
Os pais têm medo de ser pais. Têm medo de dizer “não”, de enfrentar os filhos e de os castigar. Há pais que têm de ser adultos. Uma coisa é ser maior e outra é ser adulto. Ao centro chegam muitos pais que são médicos, professores, militares – acostumados a mandar em milhares de pessoas –, um filho dá-lhes um pontapé e dizem apenas “isso não se faz”, em voz baixa e sem convicção.

Porquê?
Porque querem comprar o amor dos filhos. Claro que há filhos que se portam bem e outros que dormem mal, comem mal. Mas aos pais cabe educá-los. Uma coisa é a personalidade, outra coisa é o temperamento e outra é o carácter.

Pode-se educar para que os filhos, à medida que crescem, não tenham tantos problemas, por exemplo, na convivência com os outros?
Os primeiros anos são essenciais. As pessoas preocupam-se muito com os adolescentes, mas esses são, em grande medida, o que foram em crianças. 
Em 2007, quando estive em Portugal, observei que havia violência nas escolas. Crianças que batem noutras, que batem nos professores. Pais que ficam do lado dos filhos quando chega uma queixa do professor, mas também professores que não se sabem impor. Falta-lhes autoridade, mas também falta serem bons docentes, terem vocação para ensinar. A sociedade tem de compreender que é preciso autoridade porque as crianças precisam de ter limites. Eles precisam de ter uma parede, senão perdem-se.

Além do bullying observamos também que existe violência entre os namorados.
Existe o equívoco de que a violência doméstica é só entre adultos, mas verificamos que não. O problema está na maneira como os jovens se vêem a si mesmos. Elas pensam que são umas princesinhas e procuram rapazes másculos, duros. Mas também existem relações minadas pelo ciúme e com o telemóvel e as redes sociais a vigilância é muito maior. “Onde estás? Com quem estás? Aonde vais?” Confundem ‘amar’ com o ‘querer’ e’ amar’ com ‘posse’. É preciso explicar-lhes desde que são muito pequenos. É preciso ensiná-los a respeitar o que o outro sente. ‘O importante não sou eu, mas nós’. Mas eles são criados como se fossem únicos e pequenos reis. Por isso, têm dificuldade em compreender os sentimentos dos outros.

Essa dificuldade estende-se a outras áreas, por exemplo, faltam-lhes sentimentos solidários?
Sim. No Natal, os pais dão muitas prendas, por que não propor dar uma delas a um menino que não as recebeu? O filho não quer escolher uma para dar, pede para comprar outra, os pais devem dizer que não, que deve dar uma das suas.
Outro exemplo, no fim-de-semana, vamos ver a avó – “não quero porque ela só diz disparates”, diz o filho, mas é importante ir vê-la porque está doente e precisa da nossa ajuda, devem responder os pais. Vão e, deste modo, ensinam o que é uma relação familiar de amor e de cuidado.

Só que tudo isso dá trabalho. Os pais chegam cansados e a última coisa que lhes apetece é entrar em confronto com os filhos, não é?
Dá trabalho. É importante ter tempo de qualidade com os filhos. Eles têm de sair, de brincar, de correr, de ar livre, precisam de jogar, eles são criativos, têm muita imaginação, têm de tocar na terra, na água. Precisam de transcendência, não estou a falar de religião, mas de compreenderem que são diferentes dos outros animais, que são algo mais e é preciso dar-lhes esse alimento. Insisto muito na ideia de nos pormos no lugar do outro, de maneira a que eles sejam generosos e não egoístas.

Como se impõem regras?
Têm de ser poucas e são para ser cumpridas. Não são necessárias muitas regras que só confundem. As normas explicam-se de forma clara e são para cumprir. Por exemplo, o filho vai sair e antes disso é preciso estabelecer a hora em que vai voltar a casa, é preciso ficar claro que por cada hora que se atrasar, terá de chegar duas horas mais cedo na próxima vez que sair. E é preciso cumprir o castigo, caso o filho se atrase. Não interessa estabelecer castigos muito longos que não vão ser cumpridos – por exemplo, “não vês televisão durante um mês”, ninguém vai cumprir. Os castigos são proporcionais, imediatos, para ser cumpridos e as regras explicadas.

E quando os pais acham que já não há solução podem bater?
Quando não cumprem o castigo, há que subir a fasquia – não sair de casa, não sair com os amigos. Não devemos bater nos nossos filhos. Deve ser uma vez na vida e isso marcará o filho para sempre, não se vai esquecer nunca desse gesto. Esquecemos o que nos dizem, mas não o que sentimos quando nos bateram. É um recurso fácil e que não funciona.

Se os pais impuserem muitas regras não correm o risco de se tornarem eles próprios uns ditadores?
A família não é uma democracia. Os pais estabelecem a lei, as regras e estas são para ser cumpridas. Há famílias onde os pais são muito duros e correm o risco de os filhos aprenderem a ser assim também. É preciso um equilíbrio.

No livro fala nas alterações à família como a entrada das mulheres no mercado de trabalho. A família ideal é aquela em que a mãe está em casa?
O problema não é a mãe trabalhar, mas a forma como a sociedade está organizada. Os horários de trabalho para pais e mães deviam ser mais curtos ou mais flexíveis para terem tempo para estar e desfrutar dos filhos.

O pequeno ditador cresceu e daqui a alguns anos vai ter filhos. Como vai ser?
Eles sabem como foram e acreditam que não vão educar como os seus pais os educaram. Acreditam que vão ser diferentes. 

Daqui a dez anos como se chamará o terceiro livro sobre este tema?
Não sei! Hoje trabalhamos com jovens e com os seus pais, mas o que queremos é chegar aos pais, educar os pais para que não haja conflitos. Claro que a vida é feita de conflitos, mas se os pais estiverem educados, forem alertados para a necessidade de amarem os seus filhos, de lhes darem atenção, de imporem regras, não teremos jovens violentos, mas solidários.

Fonte: Público

Sem comentários: