Desbloquear o ecrã, ler ou escrever uma mensagem, consultar o e-mail e as notificações de amigos no Facebook são gestos banais para a maioria dos utilizadores de “smartphones”. Mas e se estivermos a falar de pessoas cegas ou amblíopes, que alternativas existem? A par das aplicações, também os ecrãs táteis invadiram o mercado dos “gadgets” pessoais nos últimos anos, substituindo o teclado alfanumérico que já nos parece datado. A evolução desta tecnologia acontece a um ritmo difícil de acompanhar, mas a acessibilidade “anda sempre atrás do progresso tecnológico”. Quem o diz é Fernando Santos, técnico de informática e telecomunicações da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO). Para quem estava habituado a utilizar os aparelhos com teclado alfanumérico, os ecrãs táteis foram um revés na autonomia. Terá a indústria ignorado os cerca de 285 milhões de pessoas com dificuldades visuais extremas, segundo contas da Organização Mundial de Saúde? E o que é que está a ser feito em Portugal?
Ferramentas como leitores e ampliadores de ecrã e assistentes pessoais são já nativas de alguns sistemas operativos, como é o caso do iOS. Existem, também, aplicações que digitalizam documentos e fazem uma descrição áudio do conteúdo dos mesmos ainda que, em alguns casos, à custa da privacidade do utilizador. Desde “software” que utiliza a câmara fotográfica dos “smartphones” para identificar e descrever objetos ou para criar uma comunidade de entreajuda, o leque de alternativas tem aumentado. Os relógios inteligentes (ou “smartwatches”) são as interfaces mais recentes com experiências neste campo: o Dot é de origem sul-coreana e transforma textos “online” em carateres de Braille. Este alfabeto criado em 1824 pelo francês Louis Braille pode, aliás, ser a chave para a rentabilização do uso de ecrãs tácteis por parte de cegos e amblíopes.
“Existe muita investigação e muita gente a trabalhar para colocar a tecnologia ao serviço de pessoas com necessidades especiais”, assegura Tiago Guerreiro, docente do departamento de informática da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) especializado na interação pessoa-máquina. O desafio aqui é tornar a investigação sustentável, estabelecer a ligação entre os meios académicos e o mercado sem que os utilizadores “tenham que se dirigir a uma empresa de tecnologias assistidas para comprar algo a um preço exorbitante”. É por isso que Tiago Guerreiro e o colega Hugo Nicolau, docente no Instituto Superior Técnico (IST), disponibilizam, gratuitamente, os modelos de duas ferramentas que desenvolveram para facilitar a escrita em Braille nos “smartphones” na página Braille21.
Adaptar o Braille aos ecrãs táteis
A capa com motores de vibração HoliBraille e o corrector ortográfico B# chegaram a produtos. “Tiveram um grande impacto na comunidade de acessibilidade a nível internacional, foram e estão a ser referenciados por outros trabalhos”, explica Tiago, 34 anos. O passo seguinte seria a sua utilização, em ambiente real, por pessoas cegas, mas o interesse empresarial português não chegou. O investigador ensaia uma justificação: “A comunidade é relativamente pequena, é um nicho de mercado e não haveria lucro”. Tiago e Hugo, que há já vários anos se dedicam a desenvolver soluções de acessibilidade, decidiram focar-se na criação de “software” que qualquer pessoa possa instalar nos dispositivos móveis.
“Acreditamos que os ‘smartwatches’ têm algum potencial para as pessoas cegas, uma vez que os ‘smartphones’ sempre causaram algum embaraço na rua”, continua o jovem professor da FCUL. Usar os telemóveis de ecrã tátil implica ter as duas mãos livres, algo potencialmente complicado se as pessoas cegas estiverem com um cão-guia ou uma bengala, e não faltam “histórias de aparelhos roubados por quem passa”. “Como podemos dar capacidades a uma pessoa cega com um relógio, de forma mais privada?”, questionaram-se. O Braille faz parte da resposta à pergunta que espoletou o trabalho de investigação. “Com o aparecimento de novas tecnologias e os leitores de ecrã, as pessoas deixaram de usar tanto o Braille porque têm outra forma de saber o que está escrito”, reflete Hugo, 30 anos. “O nosso objetivo foi também levar este alfabeto para as novas tecnologias e potenciar a literacia em Braille e, eventualmente, a inclusão.”
Tiago e Hugo adaptaram, assim, “métodos de introdução de texto para ecrãs mais pequenos” e estão a dar início à fase de testes de um protótipo a que chamaram Braille Shapes. A ideia é possibilitar o desenho de um caratere Braille com um só gesto, no ecrã do relógio; e nem sequer é necessário ser um “smartwatch” topo de gama. Como a entrada de texto se afigura como “um dos maiores desafios”, quanto mais fácil e rápida melhor. “O Braille, como sistema de acordes, permite uma entrada de texto rapidíssima quando comparado com a exploração de um teclado com 23 letras”, revela Tiago.
Fernando Santos, da ACAPO, aponta, precisamente, a velocidade da escrita como uma das principais desvantagens dos “smartphones”. “Não é possível escrever tão rápido num ecrã tátil como se escrevia antes num telemóvel de teclas. Isto é indiscutível e ponto assente para toda a gente”, sublinha o técnico da associação, cego. Embora, com alguma prática, seja possível utilizar os emuladores de teclados disponíveis para os sistemas operativos móveis, o atraso que se verifica até que a letra premida apareça no ecrã pode ser desencorajador. Se os iPhones já trazem alternativas de acessibilidade nativas, os “smarpthones” que trabalham com Android nem sempre o fazem. Este sistema operativo, “como ‘software’ de código aberto que é, permite aos fabricantes de ‘hardware’ mexer no sistema”. A facilidade com que se adicionam ou retiram componentes pode, todavia, “interferir com a interacção do leitor de ecrã”, que no caso do Android é oTalkBack, refere.
Acessibilidade nem sempre acompanha tecnologia
“Testo um grande número de aplicações e utilizo um grande número delas, mas não sou o utilizador comum”, admite Fernando, para quem a evolução da tecnologia, “muito positiva”, nem sempre o é do ponto de vista da acessibilidade. Se há coisas que, há não muitos anos, estavam vedadas a pessoas cegas — como ler uma ementa de restaurante ou saber a que horas passa o autocarro sem a ajuda de outra pessoa, serviços fornecidos por “apps” como a KNFB Readere a Lisboa Move-me, respetivamente —, outras tornaram-se mais complicadas. Elementos analógicos e tridimensionais foram abandonados, por exemplo, nos eletrodomésticos, e o seu lugar foi ocupado por temporizadores digitais e menus táteis, indecifráveis para cegos, em micro-ondas ou máquinas de lavar.
Aparelhos híbridos — como um modelo de “smartphone” da LG, o H410, que tem um ecrã tátil e um teclado alfanumérico —, podem ser parte da solução. Com sistema operativo Android, explica Fernando, este telemóvel “já traz voz e acessibilidade”. Nuno Oliveira, secretário da ACAPO em Vila Real, trocou um iPhone por um destes novos “smartphones”: ainda se está a adaptar ao funcionamento do aparelho cujas teclas prefere, naturalmente, ao “touchscreen”. “Tudo aquilo que se faz no telemóvel, a própria voz descreve-nos. Onde estamos, se nas mensagens ou nos contactos, tudo”, resume o funcionário da câmara municipal de Vila Real.
Nuno, de 35 anos, ficou cego aos 20 na sequência de um acidente de automóvel no IP4. Aprendeu Braille pouco tempo depois, no Porto, onde também teve formação em “mobilidade e vida diária, metalomecânica e telefones”. Hoje tem um cão-guia e visita, ocasionalmente, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) para testar protótipos criados por uma equipa de docentes. João Barroso e Hugo Paredes, também investigadores no INESC-TEC, desenvolveram uma plataforma digital móvel para garantir orientação e autonomia que pode ser integrada numa bengala branca. O projecto CE4Blind já tem alguns anos e está prestes a ser implementado pela primeira vez. Consiste numa bengala eletrónica que, associada a uma infraestrutura de etiquetas colocadas no pavimento, lê e partilha a informação com o utilizador.
“O cego tem uma bengala, com a eletrónica embebida dentro do tubo, e esta comunica com uma aplicação para ‘smartphone’, que pode ir no bolso”, descreve João Barroso. A informação das “tags” — sobre a existência de obstáculos no passeio, escadas para o metro ou pontos de interesse — é depois transmitida ao cego através de duas formas: vibração no “joystick” da bengala ou áudio. A concretização bem sucedida do projeto depende da colocação das tais etiquetas o que, por sua vez, depende dos municípios. A Câmara Municipal do Porto, através da Provedoria do Cidadão com Deficiência, está interessada em implementar um protótipo “numa zona com 200 ou 300 metros próxima de uma entrada do metro”, o que pode vir a acontecer ainda em 2016, garante João.
A par da bengala, que Nuno Oliveira experimentou e considera “muito útil”, os docentes universitários estão a trabalhar numa outra área do CE4Blind, relacionada com visão artificial. A ideia é utilizar a câmara de dispositivos móveis para leitura de textos e códigos de barras e para o reconhecimento de objetos, através de algoritmos mais ou menos complexos. Trocaram o “smartphone” por um par de óculos com câmara, semelhante ao Google Glass, que integrará o sistema da bengala eletrónica. “Os óculos também farão a comunicação com a aplicação móvel do ‘smartphone’ e as interfaces com o cego serão as mesmas: áudio, para alguma descrição ou leitura de texto, e vibração”, exemplifica Hugo Paredes. O uso dos óculos “é mais agradável para a pessoa cega porque não tem tanto impacto como levar um telemóvel pendurado no peito”.
Uma vez que a autonomia dos aparelhos nos quais correm este tipo de aplicações fica comprometida, a outra instituição de ensino superior envolvida no CE4Blind — a Universidade do Texas em Austin, nos Estados Unidos da América — tem estado a estudar formas de a aumentar. Fundamental, crê Nuno Oliveira, é que estes avanços tecnológicos cheguem a todas as pessoas e não se fiquem pelos laboratórios de investigação e publicações científicas. “O número de pessoas que necessitam de tecnologias de apoio tende a aumentar”, relembra Hugo Paredes, dado o aumento da esperança média de vida e aos problemas de saúde a ele associadas. “Ao desenvolvermos tecnologia para os nossos idosos também estamos a desenvolver para os cegos, aumentando o público-alvo e, consequentemente, o interessa da indústria.”
Exemplo do que falta ser feito encontra-se nos boletins de voto. Nuno, que falou (...) um dia depois das eleições presidenciais de 24 de janeiro último, chegou a participar em testes para um projejcto áudio que permitiria às pessoas cegas votarem sozinhas. O que acontece hoje em dia é que, apesar de existiram boletins de voto com informação sobre as candidaturas escritos em Braille, o quadrado onde se coloca o “X” não está delimitado por nenhuma forma táctil. “Alguém tem que votar por nós. Ficamos sempre na dúvida”, confessa. “Não percebo como é que deixam isto acontecer.”
Tiago Guerreiro e Hugo Nicolau mantêm contacto permanente com a Fundação Raquel e Martin Sain, que se dedica à formação e integração no mercado de trabalho de cidadãos cegos. Os testes dos projectos desenvolvidos pela equipa dos investigadores — que inclui João Guerreiro, do IST, e André Rodrigues, da FCUL, além do apoio financeiro da Universidade de Dundee, na Escócia — são realizados por utentes daquela fundação.
“Passamos muito tempo a falar com as pessoas, a perceber como é que elas usam o telemóvel, recolhemos dados através de um processo muito interativo”, enumera Hugo Nicolau, para quem a imagem do investigador em engenharia informática fechado num laboratório e em frente ao computador não corresponde à realidade. Esta dupla de engenheiros alargou a pesquisa de soluções táteis de acessibilidade a superfícies de maiores dimensões, como mesas interativas. “Blind People Interacting with Large Touch Surfaces: Strategies for One-handed and Two-handed Exploration” foi premiado como melhor artigo científico na conferência internacional “Interactive Tabletops and Surfaces”, no final de 2015. “O nosso objetivo”, sintetiza Tiago, “é pôr a tecnologia ao serviço de bens maiores.”
Fonte: Público
Sem comentários:
Enviar um comentário